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Solidariedade e consciência política, em Paulo Freire

Pode-se dizer que a base do pensamento de Paulo Freire53 se desenvolve a partir da compreensão do homem enquanto um ser social, portanto, histórico e político, que tem a capacidade de produzir e transformar o mundo, produzindo conhecimento e cultura. Para Freire, não é possível ser humano sem a presença de outros humanos, que o constituíram e o constituem, pois o homem não nasce homem, mas se torna nas mediações que estabelece ao longo da vida. É na presença do outro, na condição de sujeito histórico e político, que a vida acontece, daí a importância do processo formativo na constituição dessa formação humana, que nunca será neutra.

A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo mas com o mundo e com os outros. (FREIRE, 2000, p. 40)

Na relação que se estabelece com os outros é que se forma a consciência sobre ser humano. Neste sentido, o processo formativo é compreendido como um ato constituidor da pessoa humana, social, mas sobretudo política, quer esteja a serviço da inserção crítica no mundo, quer

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Paulo Freire nasceu em 1921, em Recife, numa família de classe média. Com o agravamento da crise econômica mundial iniciada em 1929 e a morte de seu pai, quando tinha 13 anos, Freire passou a enfrentar dificuldades econômicas. Formou-se em direito, mas não chegou a exercer a profissão, seguindo pelo caminho do magistério. Sua primeira grande contribuição foi o desenvolvimento de um método revolucionário de alfabetização de adultos. Em 1963, em Angicos (RN), chefiou um programa que alfabetizou 300 pessoas em um mês. No ano seguinte, o Golpe Militar o surpreendeu em Brasília, onde coordenava o Plano Nacional de Alfabetização do presidente João Goulart. Foi preso, exilado e, ainda no exílio, publicou o Pedagogia do Oprimido. Com a Lei da Anistia, voltou ao Brasil em 1979, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores e, entre 1989 e 1991, foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo. Freire foi casado duas vezes e teve cinco filhos. Foi professor deste Programa de Pós- graduação em Educação: Currículo durante os últimos 17 anos de sua vida.

esteja a serviço da permanência das estruturas injustas (FREIRE, 2000). É por isso que toda prática educativa libertadora, em Freire, partirá do reconhecimento no sentido ético da presença humana no mundo, onde é impossível aceitar, naturalmente, a indiferença, a injustiça, a relação de superioridade entre os homens. Ser ético é compreender-se a partir do outro (alteridade) e atuar socialmente em favor de uma vida digna para todos (ética). A construção do conhecimento-emancipação (solidariedade, na compreensão de Santos), em Freire, mostra-se a partir da relação, mediante respeito e reconhecimento, como modo de estar no mundo de forma consciente, com uma consciência de quem sabe intervir no mundo e não apenas constatá-lo ou se adaptar a ele:

É nesse sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna portanto históricos. (Ibidem, p. 40).

Freire irá frisar a diferença entre estar no mundo e estar com o mundo, o que torna possível aproximá-lo da compreensão do conhecimento- emancipação, no qual, em se fazer história, percebe-se o sujeito como capaz de conduzir a própria história e atuar socialmente, negando a reprodução do conhecimento-regulação como condição. Promover experiências da decisão, da responsabilidade, da solidariedade, da democracia, deve ser o objetivo do currículo. Nunca Freire irá valorar uma educação tecnicista, de treinamento, mas sim em formação, em processo educativo. Nas palavras de Freire:

a necessária formação técnico-cientítica dos educandos por que se bate a pedagogia crítica não tem nada que ver com a estreiteza tecnicista e cientificista que caracteriza o mero treinamento. É por isso que o educador progressista, capaz e sério, não apenas deve ensinar muito bem sua disciplina, mas desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica em que é uma presença. (Ibidem, p. 44)

A consciência crítica e a formação do conhecimento-emancipação em Freire está relacionada a uma atitude, sobretudo, política, de tomada de decisão e da práxis para que outra ordem seja construída. O discurso “morno” da aceitação da realidade como ela é, onde a fome e a miséria sempre existiram e continuarão a existir é o discurso veementemente combatido por ele como o da acomodação, de uma humanização que se isenta da responsabilidade de proteção da própria humanidade (FREIRE, 1996; 2000). O saber-se homem é o saber que permite o reconhecimento da história como possibilidade:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não e predeterminada, preestabelecida. Que o “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é tempo de possibilidades e não de determinismo. (Idem, 1996, p.58)

Embora Freire não tenha vinculado diretamente sua compreensão de educação à pratica solidária, é possível identificá-la como um dos aspectos fundamentais de sua obra. Assim, visando pontuar as principais considerações de Freire sobre solidariedade, destacam-se: a) ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo: a partir da constatação de que estamos no mundo com o outro, em relação (des)construtiva, (in)consciente, e, sobretudo, política, onde as pessoas se educam em comunhão: “a educação autêntica, repitamos, não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo” (Idem, 1981, p. 84). A educação é política e como tal pode formar para a doutrinação ou transformação, quando considera que não se está para o povo ou sobre ele, mas com ele (Ibidem); b) horizontalidade: uma relação solidária não é assistencialismo, pois para que este último aconteça é necessário haver aquele que doa e outro que recebe. Este tipo de relação é desigual e não considera o sujeito que recebe como ator do processo, mas como mero receptor, não gera, portanto, conhecimento-emancipação, apenas passividade que mantém as coisas como estão. Em outras palavras, o assistencialismo, o paternalismo, favorece o status quo; c) diálogo: chave

fundamental da educação problematizadora em Freire (1991), acontece a partir de duas dimensões que partem da solidariedade, do respeito ao outro: “se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica [...] não posso evidentemente escutá-los e se não os escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo” (FREIRE, 1996, p. 136); d) visão crítica: Freire também indica que há formas diferentes de solidariedade e que nem todas são favoráveis ao desenvolvimento político- democrático, uma vez que a passividade assistencialista turva o exercício crítico da responsabilidade, comprometendo a democracia:

Vale ressaltar que a solidariedade na visão de Freire estende- se para o entrelaçamento entre países do Sul, sem excluir dessa interdependência os pobres dos países ricos. Ser solidário, para ele, é assumir o ponto de vista dos “condenados da terra” em favor de uma ética universal do ser humano. (STRECK, 2010, p. 379)

O lugar onde vivemos é um constructo humano, assumi-lo em favor da ética, da vida, da igualdade, das liberdades é acreditar na construção de uma outra ordem possível. Aceitar a relação de desigualdade e tomar atitudes assistencialistas favorece as estruturas dominantes, promove a acomodação e a aceitação dos fatos sociais como condicionantes imutáveis. É neste sentido que, para Freire, a educação é um ato político, uma forma de intervenção no mundo, jamais neutra:

Como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante como o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas. (FREIRE, 1996, p. 110-111)

É nessa tensão entre a “reprodução” (conhecimento-regulação) e o seu “desmascaramento” (conhecimento-emancipação) que a consciência política irá se constituir, a partir de experiências que propiciem a vivência da responsabilidade e da autonomia (FREIRE, 1996). É neste sentido que faz

parte da compreensão da solidariedade aportá-la em um posicionamento político, crítico, consciente, que inter-fere a ordem social, transformando-a.

7. A solidariedade como conhecimento-emancipação, alteridade, ética e