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A solidariedade no ambiente escolar

3. A solidariedade no ambiente escolar e na organização curricular

3.1 A solidariedade no ambiente escolar

A solidariedade enquanto prática curricular educativa implica na participação dos alunos onde eles sejam expostos a situações reais e, a partir desse enfrentamento, aprendam a produzir conhecimento para pensar uma melhor qualidade de vida na sociedade (ecologias do saber). Além disso, ela pode ser compreendida como um aspecto de conduta que favoreça o ambiente de aprendizagem. Pesquisas77 realizadas recentemente pelo MEC, o Instituto

77Aprova Brasil: o Direito de Aprender (2006)

– desenvolvido em 33 escolas, o estudo mostra aspectos relacionados à gestão, à organização e ao funcionamento que poderiam ter contribuído para uma melhor aprendizagem. O Redes de Aprendizagem: boas práticas de municípios que garantem o direito de aprender (2008), apresenta os resultados de um estudo realizado em 37 redes municipais, selecionadas pelo bom desempenho escolar em contexto socioeconômico desfavorável. Melhores práticas em escolas do Ensino Médio do Brasil (2010), desenvolvida para identificar os fatores responsáveis pela efetividade de 35 unidades escolares de Ensino Médio localizadas nos Estados do Acre, do Ceará, do Paraná e de São Paulo, notadamente aqueles relacionados às práticas que as próprias equipes escolares associam ao sucesso escolar de seus alunos.

Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e parceiros, tiveram como objetivo foi identificar características semelhantes entre escolas ou redes de ensino que apresentam bom desempenho78.

Nos estudos desenvolvidos para se identificar os indicadores de qualidade para a mobilização da escola (RIBEIRO, V.; RIBEIRO, J.; GUSMÃO, 2005) e adotado pelo Aprova Brasil (UNICEF, 2006), dos sete indicadores de qualidade utilizados pelo grupo responsável pela pesquisa, quatro estão direta ou indiretamente ligados a valorização das relações solidárias: o ambiente educativo – o respeito, a solidariedade, a disciplina na escola; a prática pedagógica da escola apoiada no trabalho em grupo; a participação dos alunos em projetos especiais (entre eles, os que são voltados à intervenção social); a gestão escolar democrática – o compartilhamento de decisões e informações com professores, funcionários, pais e alunos, a participação dos conselhos escolares.

No estudo Redes de Aprendizagem boas práticas de municípios que garantem o direito de aprender (2010), o poder de se criar relações não lineares, a intensa conectividade entre os seus membros e o clima de compromisso de toda a comunidade estabelecem um processo propício de contínua aprendizagem. Entre as principais atitudes analisadas nas redes, a solidariedade (compreendida como a valorização e o compartilhamento das responsabilidades, oportunidades e aprendizagens) está entre as quatro fundamentais. Todas as escolas desenvolveram o Projeto Político Pedagógico com a participação das famílias, o apoio das secretarias, o compromisso com a educação e a valorização das escolas foi percebida na comunidade. O diferencial nas práticas pedagógicas dessas escolas é a adequação do currículo à realidade da comunidade, o interesse dos professores em se criar situações de aprendizagem contextualizadas. Segundo o levantamento, a formação tem impacto quando os professores empregam seus saberes para tornar as aulas mais interessantes e mobilizadoras; aprofundam sua compreensão sobre o objeto de ensino, potencializando as chances de compreensão pelos alunos; tornam-se mais próximos e parceiros, com uma

78 Os indicadores adotados nessas pesquisas são o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB),a Prova Brasil e as características socioeconômicas.

visão ampla e particular de cada um, em seu contexto, conhecendo suas histórias, seus interesses e as formas de aprender (UNICEF, 2008, p.51). Este reconhecimento da importância de cada um no processo de formação, no desenvolvimento de um trabalho colaborativo onde a corresponsabilidade, o ambiente agradável, o respeito, a participação, a atitude ética são componentes que têm sido apresentados como diferenciais para o bom desempenho no processo de aprendizagem.

CPE2 – Ensinar solidariedade? Tem professor que tem isso inserido na postura pedagógica dele. Ele como educador ensina isso em todas as vertentes, através dos exemplos, nas discussões que ele faz, como reage a um fato que aconteceu na sala de aula, vai muito da postura do professor.

Enquanto prática educativa, pensada dentro e fora da sala de aula, a solidariedade favorece a aprendizagem na medida em que todos aprendem a construir sua própria matriz de valores por meio do envolvimento em situações controvérsias, em contextos plurais, nas ações do cotidiano ou, ainda, nos projetos intencionalmente criados como oportunidade para se praticar cidadania. Em outras palavras, são espaços educativos em que a convivência plural e heterogênea é provocada, bem como sentir-se responsável pelo outro, pelo mundo em que vive e ajudar a construí-lo, como autores de suas ações, interfere nas consequências dessa aprendizagem e da intervenção no mundo (HOYOS; MARTÍNEZ, 2004, p.18). Da mesma forma, se o professor não compreende a educação enquanto um processo de formação para a cidadania, sua prática pode distanciar a escola de tal formação, daí a necessidade de um acompanhamento atento e da incorporação da solidariedade no Projeto Político Pedagógico.

CPE2 – Tem professor que diz “eu estou aqui para dar aula”. A própria postura denuncia que ele não tem esse olhar para a cidadania... Mas mesmo assim eu continuo batalhando e incentivando quem faz, porque daí esse professor acaba sendo contaminado por aquela energia que está fluindo, com o tempo ele percebe que está dando resultado.

Esta percepção incita duas questões: a maneira de compreender a educação escolar como algo limitado ao ler, escrever e contar, sem relacioná-la à formação para a cidadania; e a percepção de que o fazer pedagógico compartilhado influencia na prática coletiva. O currículo não pode ser compreendido como fazer isolado. A proposta curricular deve ser compartilhada entre todos. Para que não seja o fazer pelo fazer, o projeto pedagógico ganha escopo e significado quando compartilhado e contextualizado.

CE3 – Diferente do Juruá, a gente procura não ensinar para o nosso aluno a entrar na faculdade somente... queremos formar um aluno que tenha conhecimento da sua tradição. O índio ensina para melhorar a vocação de cada um, daqui vai sair uma liderança, daqui vai sair um pajé, um cacique, e ele precisa ter dentro da escola o momento de aprender a ter a esta postura... e também de aprender história, geografia, matemática... as matérias que são projetadas no currículo nacional. Então é importante para a gente trabalhar as duas coisas... e ninguém melhor do que o próprio mundo para ensinar as crianças da aldeia.

Na cultura indígena, a convivência plural e heterogênea é valorizada; faz parte da proposta pedagógica o intercâmbio cultural e a aprendizagem por meio da integração.

A maneira de se ensinar nas comunidades indígenas tem como princípios indissociáveis a construção do ser, pela observação, pelo fazer, experimentando dentro de uma realidade. A criança indígena vai aprendendo os valores do que é ser etnicamente diferente, ao mesmo tempo em que adquire habilidades para enfrentar os desafios do mundo que a rodeia. A educação indígena é um processo que acontece em todas as dimensões da vida social, não se limitando a um único lugar (sala de aula) ou ainda, ao tempo (séries, idades). (VALENTINI, 2010, p. 41)

O saber em diferentes espaços e tempos é fundamental para a reflexão sobre a realidade em sua complexidade.

Outro aspecto ligado à vida em comunidade, dentro da escola, é a rotina, o hábito. Pierre Bourdieu apresenta o habitus “como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências

passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações” (BORDIEU, 1983, p. 64).

O habitus tece a prática curricular, na medida em que os sujeitos são influenciados pela condução da instituição e vice-versa. As estruturas se cristalizam a partir do habitus que tende a manter a ordem, rejeitando ou refutando as transformações que por ventura a ameacem, protegendo-o de mudanças. No caso da escola indígena, é bom manter o hábito da abertura intercultural, mas, em outros contextos, ele pode ser entendido como prejudicial ao sistema.

CPE1 – Nem todo mundo está aberto a inovações. Tem professor que prefere trabalhar de modo disciplinar, ele tem o esquema dele de dar aula, ele tem convicção e crenças, e se dedicam para um trabalho que acreditam de fato, ele tem aquela concepção dele e não acha que está errado. Na verdade não esta porque ele entende assim. Cabe a nós que somos coordenação ficar cutucando o tempo todo, tentando provocar um movimento contínuo para que ele comece a mudar, comece a pensar outras coisas... Aqui na escola já foi muito mais distante... mas com dois, cinco, sete anos isso entra no discurso deles, leva tempo.

O espaço escolar é formativo, lastreado por uma cultura colaborativa e por práticas participativas que são as condições necessárias para a identificação de necessidades de crescimento que leva à interiorização de novos habitus. A mudança de hábito, quando desejada, é um processo compreendido como de médio ou longo prazo, e requer um trabalho de persistência dentro da escola ou fora dela.

CPE2 – Teve mãe que veio aqui brigar comigo, “para com essa história, pelo amor de Deus, eu trabalho fora e tenho que ficar separando lixo?” Porque é isso, mudar uma rotina dá trabalho e a gente tem que instituir essa rotina com os pais dos nossos alunos e na escola também, é um trabalho muito repetitivo. É preciso ter muita persistência.

Tal mudança é uma das principais dificuldades apontadas pelos sujeitos desta pesquisa para se constituir um clima mais favorável ao conhecimento-solidariedade, na ordem da execução das atividades, das ações, dos comportamentos, dos valores. As ações repetidas com frequência criam

uma pauta que logo pode ser reproduzida com economia de esforços e que é apreendida como pauta pelo agente (BERGER; LUCKMANN apud GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 86).

CPE1 – A mudança de hábito é muito complicada, nós colocamos em todas as salas de aula o cesto azul do papel, além do cesto que já havia e toda vez a gente precisa cuidar para que ninguém jogue as coisas no cesto de papel. A todo momento tem que repetir para eles o que é certo e o que não é.

CPE3 – O nosso aluno que faz um trabalho superbacana na comunidade, trata malo colega do lado, joga o lixo no chão da escola, isso me dá muito incômodo, mudar uma mentalidade é um esforço, é um trabalho muito difícil.

PE4 – Eu acredito nesse contato direto... logo que um aluno chega para me cumprimentar eu olho nos olhos dele, o recebo com sinceridade, “seja bem-vindo aqui”. Ele ao me cumprimentar já demonstra que não me rejeitou. Eu acho que falta isso, falta essa troca, essa solidariedade baseada em ver, escutar, respeitar o outro.

As práticas pedagógicas consolidadas não se alteram por discursos externos e podem reproduzir práticas discriminatórias, repressão, censura, individualismo, muitas vezes criando um ambiente desfavorável para o trabalho pedagógico e para a aprendizagem. Os modos de gestão e os processos de condução favorecem o desenvolvimento de ciclos reprodutivos dentro da escola, o que tornaria difícil interromper, por exemplo, a lógica participativa de um ambiente colaborativo, respeitoso, bem sedimentado. Disponibilizar o conteúdo produzido de maneira didática não significa oferecer um modelo arcaico de educação, uma vez que a humanidade precisa ter acesso ao conhecimento produzido para partir dele e avançar.

Ao que acrescentaria que é sendo um professor justo que ensinamos a nossos alunos o valor e o princípio da justiça; sendo respeitosos e exigindo que eles também o sejam, ensinamos o respeito não como um conceito, mas como um princípio que gera disposições e se manifesta em ações. Mas é preciso ainda ressaltar que o contrário também é verdadeiro, pois, se virtudes como o respeito, a tolerância e a justiça são ensináveis, também o são os vícios como o desrespeito, a

intolerância e a injustiça. E pelas mesmas formas. (CARVALHO, 2013, p. 55)

O que caracteriza solidificação do currículo é a reprodução de velhos hábitos que já não trazem benefícios (GIMENOSACRISTÁN, 1999). Significa dizer que a concepção de educação determina a prática, o fazer pedagógico, a colaboração, o respeito ou, ainda, a solidariedade, em menor ou maior grau, no grupo; fortalece ou enfraquece o poder de coesão em torno de um projeto comum.