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Solidariedade e ética, em Enrique Dussel

Da alteridade buscou-se a qualificação de uma solidariedade baseada na percepção do outro enquanto “distinto”, onde a abertura, a relação “face-a- face” exige a postura ética compreendida enquanto um estado constante de atenção à vida: são os homens que são (ou não) éticos (GUARESCHI, 2002). Ser ético implica em respeitar, em responsabilizar-se pela vida do outro. A alteridade é o ponto central da Ética da Vida, defendida na Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, que irá reconhecer, na “vítima”, o outro.

Enrique Dussel49 é um dos principais filósofos da atualidade a tratar a

questão da ética e da política. Seu pensamento parte da consideração do outro pela sua exterioridade, a alteridade e a práxis da libertação se opondo à

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Nascido em 1934, em Mendonza, Argentina, exilado político desde 1975 no México, hoje cidadão mexicano, até 1972 Dussel dedicou-se à Filosofia da Libertação latino-americana, propondo uma maneira inovadora de se pensar a filosofia a partir do cenário e contexto latino- americano (nesse ano publicou o livro Para una destrucción de la historia de la ética I). Em 1973, enquanto lecionava filosofia na Argentina, sofreu um atentado à bomba perpetrado pela extrema direita do sindicalismo (ano da publicação de Para uma ética de la liberación). Sua produção acerca da Filosofia da Libertação se estendeu de 1969 a 1976.

Diante de uma situação insustentável que se instalou, Dussel foi “convidado” a se retirar da Universidade Nacional de Cuyo, em março de 1970, e se mudou para o México, onde encontrou o refúgio intelectual que precisava para continuar seus estudos. Aprendeu inglês e começou um contato com os três continentes, experiência que considera fundamental para a ampliação de sua compreensão histórica. Passou a dedicar-se aos estudos sobre o pensamento de Marx, interpretando-o, sobretudo, para compreender a América Latina, a globalização, a exploração e o capitalismo.

dominação. Em 1998, Dussel apresentou ao mundo uma obra central: a Ética da Libertação na idade da Globalização e da Exclusão (DUSSEL, 2002). No entanto, se, no início, seu principal interlocutor era o oprimido e vitimado latino- americano, atualmente sua obra pretende ser universal, uma vez que afirma ter vitimas do sistema-mundo capitalista por toda a parte, numa compreensão de uma ética ecológica material de libertação50. Em uma de suas obras mais recentes, 20 Tesis de Política, Dussel discorre sobre os princípios políticos de libertação, não se limitando aos éticos, mas já encaminhando a sua teoria para a compreensão política da ética.

Em Dussel, a razão ética – que é a única razão sustentável – nasce da responsabilidade pelo outro. A subjetividade ética resiste a qualquer totalização, é a separação que constitui o sujeito no mundo. Ao tomar consciência do outro, absolutamente novo, recorre-se sobre ele a responsabilidade. Na assimetria da ordem social, a própria vida do outro afeta também a relação do eu com as coisas, com o mundo (DUSSEL, 2002, p. 371). A partir de uma conduta ética, de tomada de consciência, de responsabilidade com o outro51, busca-se compreender o mundo, dele

participar e produzir vida digna para todos. "De fato, para que haja justiça, solidariedade, vontade diante das vítimas, é necessário ‘criticar’ a ordem estabelecida para que a ‘impossibilidade de viver’ dessas vitimas se converta em ‘possibilidade de viver e viver melhor" (Ibidem, p. 382, grifo nosso).

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Uma ética “ecológica” trata a condição de possibilidade absoluta dos seres vivos, exercida, em última análise, no respeito ao direito universal à sobrevivência de todos os seres humanos, especialmente dos mais afetados e excluídos: dos pobres do presente e das gerações futuras, que herdarão, se adquirem uma consciência pronta e global, uma terra “morta” (DUSSEL,

2003, p. 23).

51 A "responsabilidade" pode ser pensada a partir do princípio responsabilidade (JONAS, 2006), onde a responsabilidade de cada ser humano para consigo mesmo é indissociável daquela que se deve ter em relação aos demais. Trata-se de uma responsabilidade que o liga a todos os homens e à natureza que o cerca, numa reflexão que busca atender também o universal. A respeito do princípio responsabilidade, Santos conclui que podemos partir da Sorge (Heidegger), do cuidado que nos torna responsáveis pelo outro, quer seja ele um ser humano,

um grupo social, a natureza etc. Esse outro inscreve-se simultaneamente na nossa contemporaneidade e no futuro cuja possibilidade de existência temos de garantir no presente. A nova ética não é antropocêntrica, nem individualista, nem busca apenas a responsabilidade pelas consequências imediatas. É uma responsabilidade pelo futuro (SANTOS, B. S. 2009, p.

Havendo a consciência sobre a possibilidade de viver melhor, há o compromisso ético intrínseco de fazê-la acontecer, na complexidade das relações sociais que se estabelecem. O sujeito ao qual se deve reconhecer, sobretudo, é a vítima que, em última estância, é o sujeito negado.

A vítima, para Dussel, é o pobre, o que foi, por nós, excluído do sistema. Não se trata apenas de reconhecer a vítima, mas de assumir a responsabilidade pelo outro, num compromisso político consciente:

Sou/somos res-ponsáveis pelo outro pelo fato de ser humano,

sensibilidade aberta ao rosto do outro. Além disso, não é res-

ponsabilidade pela própria vida; agora é res-ponsabilidade pela vida negada do outro que se funda num enunciado normativo: porque devo produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana em geral. [...] A passagem por fundamentação do juízo de fato (“Há uma vítima!”) para o juízo normativo (“Devo re- sponsavelmente torná-la a cargo e julgar o sistema que a causa!”) é agora justificável. (DUSSEL, 2002, p. 379)

A solidariedade em Dussel se refere ao princípio de reconhecer o outro como aquele por quem somos responsáveis, pela sua fome, pela negação de sua vida digna. Este reconhecimento “está me pedindo solidariedade [...] pede, suplica-me, ordena-me eticamente que o ajude” (Ibidem, p. 378). Ser indiferente à fome, à exclusão, é o mesmo que ser conivente com o sistema que a mantém. Assim, a solidariedade é também uma atitude ética e compromisso político. Neste sentido, a proposta de solidariedade enquanto prática educativa sugere uma formação a partir da tomada de consciência, compreendendo, segundo Dussel, tanto os campos políticos quanto ecológicos e seus sistemas, por vontade-de-viver52, consensual e factível, de garantir a

vida plena para todos. Assim, é preciso considerar os três princípios essenciais que atribuem qualidade ética à política: o respeito aos cidadãos (material), o dever de atuar cumprindo a democracia (formal) e o de operar o possível (factibilidade). No limite, a política deveria ser o máximo exercício de produção, manutenção e desenvolvimento da vida em comunidade. O instinto do homem

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A “vontade-de-viver” é a essência positiva, o conteúdo como força, como potência que pode mover, arrastar, impulsionar. Em fundamento, a vontade de adiar a morte, de continuar vivo; a tendência originária de todo o ser humano (DUSSEL, 2007, p. 31).

de querer-viver, a vontade-de-vida, de querer permanecer vivo, faz com que eles procurem estar juntos (DUSSEL, 2007). No entanto, se as vontades dos membros de uma comunidade forem distintas e dispersas, se os interesses forem individuais, múltiplos, isolados, a força do grupo será anulada, pois a competição interna gera impotência para um projeto comum. Por outro lado, quando as pessoas estão alinhadas e organicamente compartilhando a vontade-de-viver-comum, pode-se dizer que essa comunidade se potencializa. Segundo Dussel,

o consenso deve ser um acordo de todos os participantes, como sujeitos, livres, autônomos, racionais, com igual capacidade de intervenção retórica, para que a solidez da

união das vontades tenha consistência para resistir aos

ataques e criar as instituições que lhe deem permanência e governabilidade. [...] Quanto mais participação os membros singulares na comunidade têm, mais se cumprem as reivindicações particulares e comum; [...] o poder do povo transforma-se em uma muralha que protege e em um motor que produz e inova. (DUSSEL, 2007, p. 27)

Desta forma, há poder quando os homens se conectam para exercê-lo (potentia); do contrário, há enfraquecimento. A solidariedade, nesse processo, traz a capacidade de potentia, supera a visão de fraternidade do nós e atribui conhecimento e princípio ético à intenção e à ação, promovendo mais chances de êxito no exercício político, nos projetos comuns, nos quais os outros (as vítimas – ainda que institucionais dos sistemas e das instituições) participem como sujeitos livres e solidários. Para Dussel (2007), o que marca a aparição da política é a passagem da potentia para a potestas (necessária institucionalização do poder da comunidade, do povo, criando diferenciações heterogêneas de funções por meio da qual se torne factível o próprio poder). Assim, enquanto o anarquista deseja com a máxima exponenciação da potentia, o conservador, no campo da potestas, busca a máxima organização institucional exercida como dominação.

A solidariedade incita uma convivência política, uma práxis de intelectual orgânico (Gramsci) que consiga “educar os movimentos sociais em sua autonomia democrática, em sua evolução política, em seus atores

mutuamente responsáveis por seus destinos” (DUSSEL, 2007, p. 119), para que o compromisso seja efetivado.