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Da discussão à implementação da penhora de quotas societárias

4.2 PENHORA DE QUOTAS SOCIETÁRIAS

4.2.2 Da discussão à implementação da penhora de quotas societárias

O Decreto n.º 3.708/19, primeiro diploma normativo pátrio a regrar a constituição, o funcionamento e a extinção das sociedades limitadas, não previa a possibilidade da penhorabilidade das quotas societárias por dívidas privadas dos sócios.

Durante muitos anos, por amparo no art. 942, XI, e 943147, do Código de Processo Civil de 1939, foi cediça a não aceitação, por parte dos tribunais brasileiros, da penhora de quotas, afinal, pelo referido dispositivo, os fundos sociais eram absolutamente impenhoráveis

pelas dívidas particulares dos sócios, limitando-se a hipótese constritiva, tão-somente, aos chamados lucros ou fundos líquidos verificados em balanço. Considerava estes, ainda, expressamente, em seu art. 931148 como direitos e ações, para os efeitos de penhora.

A discussão, à época, orbitava em torno da dificuldade em definir-se o que seriam

lucros líquidos, confundidos com os fundos líquidos pelo próprio legislador.

FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA diferenciava fundos e lucros líquidos

do fundo social, que é o complexo de bens do ativo societário envolvendo estoques, créditos e dinheiro. Fundo líquido é a retribuição da contribuição que o sócio fez à sociedade quando do ato de sua dissolução ou liquidação; lucro líquido seria o verdadeiro lucro, como se conhece, proporcionado ao sócio pelo bom resultado da empresa, que fica, muitas vezes, sob a guarda da sociedade, mas pode ser retirado ou reinvestido no fundo social, a depender do desejo do quotista149.

A doutrina do jurista alagoano foi seguida, em muito tempo, pelo STF150, embora a Corte Suprema se confundisse sobre os conceitos de fundos e lucros líquidos, o que não

147 “Art. 942. Não poderão absolutamente ser penhorados:

(...)

XII, os fundos sociais, pelas dívidas particulares do sócio, não compreendendo a isenção os lucros líquidos verificados em balanço;

(...).

Art. 943. Poderão ser penhorados, à falta de outros bens: (...)

II – os fundos líquidos que possuir o executado em sociedade comercial.”

148 “Art. 931. Consideram-se direitos e ações, para os efeitos de penhora: as dividas ativas, vencidas, ou

vincendas, constantes de documentos; as ações reais, reipersecutórias, ou pessoais para cobrança de dívida; as quotas de herança em autos de inventário e partilha e os fundos líquidos que possua o executado em sociedade comercial ou civil.”

149 (ARAÚJO, Alessandra Vasconcellos de; PINTO FILHO, Francisco Bilac Moreira 1997, p. 64.)

150 SOCIEDADES LIMITADAS. PENHORA. A LEI A PERMITE SOBRE OS FUNDOS LÍQUIDOS

QUE POSSUA O EXECUTADO NA SOCIEDADE. E NÃO E POSSIVEL CONFUNDIR COM TAIS FUNDOS LÍQUIDOS AS PRÓPRIAS QUOTAS SOCIAIS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO

CONHECIDO. Grifou-se. (Recurso Extraordinário n.º 75680/GO, Relator: Ministro Luiz Gallotti, Primeira Turma, Publicação: DJ, em 13-4-73).

alterava o veredito: a quota societária vista como um bem impenhorável, afinal, era ao lucro

líquido que o legislador de 1939 fazia referência, disposição, inclusive, seguida pelo Código das Sociedades Comerciais de Portugal, em vigor até hoje151.

Também era corrente invocar-se o contrato social como meio de impedir a penhora quando nele houvesse disposta proibição de transferência de quota sem a anuência dos consócios. Afirmava-se que a quota social integra, antes de compor o patrimônio dos sócios, o patrimônio da sociedade ou fundo social, de modo que penhorá-la representaria constrição sobre direito alheio, que não propriamente do devedor, desprezando, assim, a segregação patrimonial, um dos pilares do direito societário, consagrada no art. 20, caput152, do Código Civil de 1916153.

Com a superveniência do atual Código de Processo Civil brasileiro, por meio da Lei Federal n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973, a doutrina nacional – e, a reboque, a jurisprudência – passou a se inclinar à admissão da penhorabilidade das quotas societárias.

Ocorre que, diferentemente do que se possa imaginar, tal tendência não fora causada por expressa admissão legal da hipótese, mas, sim, pela pura e simples omissão da novel codificação adjetiva quanto à vedação – outrora expressa – inscrita na Lei de 1939, haja vista o teor de seu art. 649.

Além disso, enquanto o art. 720 do CPC facultava, originariamente154, a instituição de usufruto sobre o quinhão do sócio da empresa, o art. 591155 afirmava que a responsabilidade do devedor, no cumprimento de suas obrigações, abrangia todos os seus bens presentes e futuros.

EXECUTIVO FISCAL. PENHORA EM BENS DE SOCIOS DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. - INADMISSIBILIDADE. - SOCIEDADE REGULARMENTE CONSTITUIDA, COM CAPITAL INTEGRALIZADO, "SEM EXCESSOS OU VIOLAÇÕES PRATICADOS PELOS SOCIOS". - INEXISTÊNCIA DE NEGATIVA DE VIGENCIA DO ART. 10 DO D. 3708/19, DO ART. 350 DO CÓDIGO COMERCIAL E DOS ARTS. 134 E 135 DO CTN. - RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO ADMITIDO. - AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. (Agravo de Instrumento n.º 64662/SP, Relator: Min. Rodrigues Alckmin, Primeira Turma, Publicação: DJ, em 21-11-75).

151 Decreto-Lei n.º 262, de 2 de setembro de 1986.

“Art. 183º

Execução sobre a parte do sócio

1 - O credor do sócio não pode executar a parte deste na sociedade, mas apenas o direito aos lucros e à quota de liquidação.

(...).” (Grifou-se).

152

“Art. 20. As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros. (...).”

153 (VEDANA 2009, p. 352.)

154 “Art. 720. Quando o usufruto recair sobre o quinhão do condômino na co-propriedade, ou do sócio na

empresa, o administrador exercerá os direitos que numa ou noutra cabiam ao devedor.” (redação revogada pela Lei Federal n.º 11.382, de 6 de dezembro de 2006).

155 “Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e

Nesse ritmo, não tardou até que o STF, que mantinha posicionamento unânime no sentido de não admitir a penhora das cotas sociais, passasse a aceitá-la, a partir do paradigmático julgado156 relatado pelo Ministro XAVIER DE ALBUQUERQUE.

O indicativo da Suprema Corte brasileira foi, durante anos, reproduzido pela jurisprudência pátria157, culminando-se com a promulgação do Código Civil de 2002, que permitiu, expressamente, ao credor particular de sócio, na insuficiência de outros bens deste, a

execução de seus lucros societários e a liquidação de suas quotas, na forma do art. 1.026,

caput e Parágrafo Único158.

Ademais, o próprio Código de Processo Civil, alterado pela Lei Federal 11.382, de 6 de dezembro de 2006, que deu nova redação ao seu art. 655159 e respectivos incisos, passou a prever, expressamente, a possibilidade de penhora de ações e quotas de sociedades

empresárias.

Sobre o hodierno panorama legislativo e jurisprudencial, merece investigação a subsunção das normas atuais – legislativas e de decisão – à Constituição Federal de 1988. Em outras palavras: a atual sistemática da penhora de quotas societárias fere as liberdades de

associação e contrato, brocardos da livre iniciativa?