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4.3 DESTITUIÇÃO DE ADMINISTRADORES

4.3.3 Destituição por justa causa

4.3.3.1 Excesso de poderes

Não sendo os poderes dos administradores das sociedades limitadas inscritos entre os arts. 1.060 e 1.065 do Código Civil, seguem-se as regras supletivas das sociedades simples para se investigar que tipos de excessos administrativos podem, objetivamente, conduzir ao afastamento daquele por justa causa.

Nesse sentido, o art. 1.015197, Parágrafo Único, do diploma substantivo civil, dispõe que o administrador atua com inequívoco excesso de poderes quando:

a limitação estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade, isto é, no contrato social;

tratar-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Na primeira hipótese, tem-se o devido respeito à livre iniciativa manifestada pelos quotistas associados. Se o contrato social previu que o administrador não pode, sem o consentimento dos demais sócios, contratar, por exemplo, operações de crédito, tem-se, aí, uma limitação intransponível.

Diante de uma necessidade congênere, deve o administrador submeter o seu intuito à deliberação dos demais quotistas, por assembleia ou reunião, sob pena de agir com excesso de

poder, o que justificaria o seu afastamento por justa causa.

A segunda, refere-se à teoria dos atos ultra vires, de origem anglo-saxônica datada do no final do século XIX, cujo objetivo era evitar desvios de finalidade na administração de sociedades por ações e preservar os interesses dos investidores. Na época, as operações evidentemente estranhas aos negócios societários eram consideradas nulas, o que, invariavelmente, prejudicava os terceiros de boa-fé que, confiando na palavra do administrador – representante legal da sociedade –, firmavam, com esta, contratos diversos198.

197 “Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da

sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.

Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II - provando-se que era conhecida do terceiro;

III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.”

A primeira previsão da teoria dos atos ultra vires no Brasil se deu no Código Comercial, cujo art. 316199, hoje revogado, afastava a responsabilidade da sociedade em nome coletivo por débitos oriundos de atividades estranhas ao seu objeto social.

No seio das sociedades limitadas, o Decreto n.º 3.708/19 também rechaçou, embora de forma indireta, os atos ultra vires, perpetuando a solução dada pelo Código Comercial e pelo direito anglo-saxão às querelas de responsabilização dos administradores, conforme a redação de seus arts. 14200 e 16201.

Ademais, o art. 1.015, Parágrafo Único, do Código Civil de 2002, manteve a responsabilização pessoal do administrador, contra quem deve o terceiro prejudicado se insurgir.

Albergando a manifestação legislativa, em 2005, o Conselho da Justiça Federal, no curso da III Jornada de Direito Civil202, aprovou o Enunciado n.º 219, pelo qual “está

positivada a teoria ultra vires no Direito brasileiro”, com as seguintes ressalvas pertinentes ao tema deste trabalho: (i) o ato ultra vires não produz efeito apenas em relação à sociedade; (ii) sem embargo, a sociedade poderá, por meio de seu órgão deliberativo, ratificá-lo; (iii) o Código Civil amenizou o rigor da teoria ultra vires, admitindo os poderes implícitos dos administradores para realizar negócios acessórios ou conexos ao objeto social, os quais não constituem operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade.

Aliás, consolidando esse entendimento, remete-se a relevante acórdão do Tribunal

de Justiça do Estado do Paraná (TJPR)203.

199 “Art. 316 - Nas sociedades em nome coletivo, a firma social assinada por qualquer dos sócios-gerentes, que

no instrumento do contrato for autorizado para usar dela, obriga todos os sócios solidariamente para com terceiros e a estes para com a sociedade, ainda mesmo que seja em negócio particular seu ou de terceiro; com

exceção somente dos casos em que a firma social for empregada em transações estranhas aos negócios designados no contrato.

Não havendo no contrato designação do sócio ou sócios que tenham a faculdade de usar privativamente da firma social, nem algum excluído, presume-se que todos os sócios têm direito igual de fazer uso dela.

Contra o sócio que abusar da firma social, dá-se ação de perdas e danos, tanto da parte dos sócios como de terceiro; e se com o abuso concorrer também fraude ou dolo, este poderá intentar contra ele a ação criminal que no caso couber.” (Grifou-se).

200

“Art. 14. As sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, responderão pelos compromissos assumidos pelos gerentes, ainda que sem o uso da firma social, si forem taes compromissos contrahidos em seu nome ou proveito, nos limites dos poderes da gerencia.” (Grifou-se).

201 “Art. 16. As deliberações dos socios, quando infringentes do contracto social ou da lei, dão

responsabilidade ilimitada áquelles que expressamente hajam ajustado taes deliberações contra os preceitos contractuaes ou legaes.” (Grifou-se).

202 (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL 2005, p. 65.)

203 AGRAVO RETIDO - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - POSSIBILIDADE - INTELIGÊNCIA

DOS ARTIGOS 130 E 330, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL1. Não ocorre cerceamento de defesa em face do julgamento antecipado da lide quando a matéria em discussão não necessita de dilação probatória. 2. Agravo retido desprovido. APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO -

COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - SÓCIO ADMINISTRADOR SEM PODERES PARA A REALIZACAO DO NEGÓCIO JURÍDICO - ATO "ULTRA VIRES" - ABUSO DE PODER -

Malgrado tal realidade, doutrinadores da lavra de ANDRÉ LUIZ SANTA CRUZ

RAMOS204, OSMAR BRINA CORRÊA-LIMA205 e FÁBIO TOKARS206 rejeitam a opção pela citada

teoria no direito brasileiro – apesar de não negarem a sua aplicação. Para eles, em razão do dinamismo inerente às atividades econômicas, seria muito difícil se analisar, em todas as transações negociais, se os poderes dos administradores lhe permitem firmar aquela relação jurídica específica. A solução, no caso, para evitar a insegurança jurídica, seria reconhecer a responsabilidade societária pelos atos ultra vires, assegurando, a esta, o direito à demanda regressiva em face do administrador que atuou com excesso de poderes.

De fato, não se pode olvidar que a tendência do direito comparado vem sendo pela erradicação da teoria dos atos ultra vires. O Código Comercial francês207, o Código das Sociedades Comerciais português208 e a Lei de Sociedades de Capital espanhola209 evidenciam essa realidade.

Apesar disso, a solução dada pelo legislador à gestão dos atos ultra vires não vilipendia aquele que negociou com o administrador fraudulento, pois o ato é válido. Apenas a sua reparação não se dará em face da sociedade, por expressa previsão legal e contratual, para as quais o negociador deveria ter atentado antes da concretização do negócio.

Veja-se que a positivação da teoria dos atos ultra vires presume que, sendo público o acesso ao contrato social arquivado na Junta Comercial do Estado federativo, o terceiro deve ser diligente na averiguação dos poderes do administrador com quem pactua. Não pode o eventual credor beneficiar-se, no futuro, de sua leniência, opondo-se em face da sociedade empresária limitada.

E não se venha alegar que isso gera uma dificuldade na dinâmica empresarial, mormente em uma época marcada pela onipresença da internet, agilizando a averiguação de praticamente qualquer tipo de informação societária diretamente nos endereços eletrônicos das Juntas Comerciais.

O fato é que o legislador fez uma escolha que, embora discutível, é válida, devendo ser respeitada.

INTELIGÊNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 1.015 DO CÓDIGO CIVIL. 1. De acordo com a teoria "ultra vires" adotada pelo nosso ordenamento jurídico no artigo1.015 do Código Civil a sociedade somente se vincula

aos atos praticados por seus administradores caso tenham pertinência com o seu objeto social. 2. Apelação

cível desprovida. Grifou-se. (Apelação Cível n.º 6672159, Relator: Desembargador Guilherme Luiz Gomes, Sétima Câmara Cível, Julgamento: 12-4-11).

204 (RAMOS 2009, p. 377-378.) 205 (CORRÊA-LIMA 2006, p. 68-70.) 206 (TOKARS 2007, p. 284-285.) 207 Artigo 223-18. 208 Artigo 260.º. 209 Artigo 234.

Naturalmente, a validade da escolha legislativa deve ser analisada sistematicamente. Imagine-se que João, Administrador da PPGD LTDA., firmasse um contrato de fornecimento de produto evidentemente estranho aos negócios da sociedade com a CCSA LTDA., sendo sua atuação respaldada por José e Maria, os demais quotistas, seja por aquiescência expressa ou tácita, v.g., omitindo-se quanto a uma conduta que os beneficiou diretamente.

Diante da cobrança do cumprimento da obrigação avençada por parte da CCSA LTDA., não poderiam os quotistas alegar impossibilidade de cumprimento, por incidência do art. 1.015 do CC. Acaso isso ocorresse, patente seria o venire contra factum proprium, desprestigiando-se o princípio da boa-fé, cláusula geral do direito civil-empresarial brasileiro inscrita no art. 422210 do diploma substantivo civil. Nesse mesmo sentido, julgou o STJ211.