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Da intencionalidade biológica à intencionalidade semântic a

Varela quer derivar o fenômeno da cognição, para ele coextensivo com a própria vida, do caráter incompleto e “faltoso” do vivente enquanto totalidade em movimento. Curiosamente, tanto Varela quanto Hegel não só ligam vida à falta, a partir de uma análise do organismo como “totalidade incompleta”, como ligam também vida à cognição, ambos afirmando a tese da continuidade entre vida e mente. A semelhança entre Varela e Hegel não apenas aponta para a relevância e atualidade de filosofia da vida hegeliana como também, o que para nós é até ainda ma is interessante, abre a possibilidade de atualizar Hegel a partir de uma reinterpretação naturalista, mais alinhada com a ciência contemporânea. Tal naturalismo dialético seria uma contribuição ao esforço de articular teoricamente uma imagem geral da natureza na qual a teleologia, a normatividade e a intencionalidade façam sentido.

A absolutização da categoria do mecanismo, e a consequente tentativa de exaurir a natureza inteira a partir desse modelo, ou seja, o projeto de mecanização do mundo natural que se confunde parcialmente com o impulso revolucionário da ciência moderna, resulta em última instância ou em um reducionismo fisicalista, que parece negar a realidade do sujeito, ou em dualismo, que opõe sujeito e natureza (e põe o sujeito fora da natureza).

Precisamente por essa razão, para Hegel, a vida é, e precisa ser, mais genérica que o mecanismo – a vida é, por assim dizer, um conceito maior, que não cabe no mecanismo. Nessa perspectiva, o orgânico não é um tipo especial de sistema mecânico; pelo contrário, a vida é a categoria mais universal, a partir da qual o mecanismo aparece como algo pobre de determinação. Ao contrário de assumir a metáfora da máquina, e interpretar o ser vivo como uma máquina especial (muito complexa), Hegel conclui que a máquina é que é pobre demais – a máquina é um organismo degenerado, um sistema organizado, mas incapaz de se construir e de se reparar. A máquina, insiste Hegel, não é o único modelo racional para pensar a natureza: com a vida, a natureza se idealiza, o conceito se encarna – a vida é o

processo de pôr seus pressupostos, o ser vivo é um “propósito natural”, que se auto - organiza.

O organismo é plástico, criativo, se autodiferencia e persiste como uma unidade do múltiplo por meio do trabalho incessante de autofabricação a partir do outro, assimilando o outro. Jogado no mundo, engaja-se com o outro a fim de suprir sua precariedade, sua falta constitutiva que advém do caráter paradoxal de ser ao mesmo tempo aberto e fechado. Essa relação prática com o exterior, a fim d e manter a unidade precária do interior, é a mais mínima manifestação do fenômeno cognitivo. Mesmo o pensamento teórico mantém, em outro nível de complexidade, a forma básica da assimilação.

Eis por que a questão da vida é de uma importância central para o projeto de uma ontologia especulativa renovada. Nenhuma ontologia pode ser considerada completa, nem sequer satisfatória, se não é capaz de dar conta de sua própria possibilidade – se não demonstra como é possível que, de dentro do Cosmos, possa- se conhecer e expor a estrutura do Cosmos. O problema da ontologia naturalista predominante, dominada por pressupostos mecanicistas, é assumir um sujeito que conhece o mundo e o descreve como mecânico – ao passo que essa mesma descrição não é capaz de incluir o próprio sujeito, que precisa, desse modo, permanecer fora do mundo.

Esse tipo de materialismo é, por assim dizer, contemplativo: o universo é visto de fora, por um Eu que não se inclui, nem pode se incluir, no que contempla. O principal desafio do naturalismo, portanto, é incluir na paisagem teórica que apresenta o ponto no qual a articulação de seu próprio discurso é possível: o ponto no qual a natureza se dobra sobre si e aparece para si mesma. Para o materialismo evolutivo a resposta é contar uma história de como o movimento da matéria, originalmente não-intencional, produziu formas novas de organização resultando primeiro na evolução da agência básica e, com o empilhamento de sucessivas plataformas, chegou enfim, sem que precisasse chegar, ao nível da inte ncionalidade semântica.

No universo mecânico, o conhecimento da natureza do universo, mesmo de sua natureza mecânica, é um mistério, pois não fica claro como uma entidade intencional pode aparecer, ou mesmo ser possível, em seu interior. A dimensão normativa do sujeito que conhece aparece como absolutamente estranha e

incompatível com a causalidade mecânica exaustiva do mundo natural. Qualquer lógica com pretensões ontológicas, como é o caso da lógica hegeliana, precisa da vida porque é com ela que primeiro aparece a possibilidade do sujeito, de um agente.

Com a vida, uma forma básica de normatividade emerge na própria natureza, e onde antes existiam apenas “acontecimentos” agora passam a ocorrer também “ações”. Se o naturalismo pretende ser uma proposta coerente com sua própria existência (enquanto proposta elaborada e defendida racionalmente por um sujeito que faz parte do mundo natural) ele precisa oferecer uma naturalização da agência e uma explicação para sua gênese natural. Sem agência não pode existir nem conhecimento nem ação ética; um sujeito é, por definição, algo que pode agir no mundo.

A forma mais básica de agência encontra-se expressa na vida – e por isso a noção de vida é tão central para a ontologia hegeliana. Do ponto de vista de uma metafísica naturalista, compreender como funciona e como surge o organismo, ou seja, reconstruir empiricamente a história natural da vida é o primeiro passo para naturalizar (sem eliminar) o sujeito. E investigar a gênese histórica do sujeito é o primeiro passo para apreender como é possível a emergência da dualidade matéria - mente no seio da imanência da natureza.

Obviamente, o conhecimento propriamente conceitual, a racionalidade em um sentido mais elevado, é não apenas contínua, mas também descontínua em relação à “cognição básica do si biológico” (Varela) ou à “atividade prática idealizadora do ser vivo” (Hegel). Tanto nesse quanto naquele a intersubjetividade joga um papel decisivo na passagem da vida puramente biológica para o conhecimento propriamente dito, que abre a esfera do estritamente espiritual. Em Hegel, o conhecer é a Ideia que se relaciona a si mesmo enquanto Ideia, ou um universal que tem por determinação a universalidade mesma.

Assim, o que se requer é a transição de uma intencionalidade meramente biológica (a dialética externa organismo -mundo) para a intencionalidade semântica, que é encontrada no pensamento humano. A intencionalidade semântica está em continuidade com a intencionalidade biológica, evolui a partir dela e tem nela seu pressuposto material indispensável, mas é mediada pela formação de um universal intersubjetivo, que se dá apenas com o aparecimento da linguagem simbólica.

De acordo com nosso registro naturalista, é importante notar que a linguagem, por sua vez, é ela também um produto da natureza, pressupõe uma comunidade de sujeitos e deriva, portanto, da natureza social e cooperativa da espécie humana, ela mesmo também o resultado de um processo de evolução por seleção natural. A origem da linguagem se encontra na produção de um ni cho simbólico que co-evolui com o cérebro de determinados primatas à medida que a necessidade de coordenar comportamentos no contexto de uma vida social complexa força o desenvolvimento de uma rede de signos convencionais culturalmente transmitidos.

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