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Como processo infinito circular, que retorna sobre si mesmo, a vida constitui a elevação à primeira idealidade da natureza: é unidade subjetiva, realização da forma infinita autorreferente, fechada em si mesmo. E precisamente como realização objetiva dessa forma, é encarnação material, aberta ao mundo, do qual depende. O resultado da conjugação do processo ideal fechado com o processo material aberto é a carência, a falta é o que torna os seres vivos “totalidades incompletas” e, portanto, desejantes. Só o vivente sente falta, pois o vivente se diferencia de seu exterior e ainda assim o necessita.

Jonas (2004, p.14), autor de “O Princípio Vida”, também foi capaz de apreender essa dualidade:

O privilégio da liberdade carrega em seus ombros o fardo da necessidade, e significa existência em risco. Pois a condição básica para o privilégio consiste no fato paradoxal de a substância viva, por um ato primordial de isolamento, se haver desprendido da integração geral das coisas no todo da natureza, de haver-se oposto ao mundo, com isto introduzindo na segurança indiferente da posse da existência a tensão entre o “ser e não -ser”. Fê-lo assumindo uma precária independência em relação a esta mesma matéria, que nem por isso deixa de ser indispensável para sua existência. Distinguindo sua própria identidade da de sua matéria do momento, pela qual não deixa de ser uma parte do mundo físico comum. Suspenso, assim, entre o ser e o não-ser, o organismo é dono de seu ser apenas de modo condicional e revogável. Com este duplo aspecto do metabolismo – sua riqueza e sua miséria – o não-ser entrou no mundo como uma alternativa contida no próprio ser; e só assim “o ser” alcança um sentido mais claro: afetado no mais íntimo de si pela ameaça de sua própria negação, o ser tem que afirmar-se, e um ser afirmado é a existência como desejo.

Liberdade, isso é, autodeterminação, para a vida implica em necessidade – autonomia implica em dependência com relação ao ambiente do qual se diferencia. O organismo distingue sua identidade do material por meio do qual a realiza, sem, contudo, deixar de fazer parte (participar) do mundo físico. Com isso introduz-se a tensão entre “ser e não-ser” – o organismo traz dentro de si o negativo, o não-ser como a presença de uma ausência.

Como diz Jonas (2004, p. 14) é “a existência como desejo”. Assim, pode caracterizar a vida, a exemplo de Hegel, por uma série de dualidades e oposições – e o processo vital, em sua totalidade concreta, como a unidade dessas oposições:

Exposta ao mundo, contra o qual e também pelo qual ela precisa afirmar- se. Feita autônoma em relação à sua casualidade, e no entanto a ela submetida. Subtraída à identidade com a matéria, mas dela necessitada. Livre, mas dependente. Isolada, mas necessariamente em contato. Buscando o contato, o qual no entanto pode destruí-la. E por outro lado não menos ameaçada por sua falta. (JONAS, 2004, p. 15).

O mais curioso é perceber o quanto esta visão está próxima de alguns desenvolvimentos recentes na biologia teórica, como Varela (1979, 1991) e Rosen (1973, 1991). Tomemos, por exemplo, a concepção Hofmeyer (2007), influenciada por Rosen. Hofmeyer afirma que a lógica da vida pode ser deduzida de dois postulados básicos:

Postulado 1: Organismos vivos são objetos materiais.

Postulado 2: Organismos vivos são autônomos.

O primeiro postulado, de acordo com Hofmeyer (2007), nos compromete com uma visão da vida intrinsecamente ligada à química – e é equivalente a afirmação de Hegel de que é possível “compreender quimicamente a vida” ou de que “em si a vida está contida no processo químico.”

Refere-se ao aspecto material dos sistemas vivos – e, portanto, diz respeito também à abertura da vida frente à natureza exterior, incluindo aí as relações termodinâmicas com o ambiente, que fazem do organismo um sistema aberto. O segundo postulado afirma que os organismos não são determinados de fora, mas se auto-determinam, se autofabricam, isso é, são fechados à causa eficiente – caracterizam-se pela forma infinita circular que Hegel denomina de “forma do Si” e são, portanto, “uma totalidade arredondada em si” (HOFMEYER, 2007).

Do ponto de vista material e termodinâmico – ou seja, no que se diz respeito, nas palavras de Hegel, às “condições da sua existência”, incluídas aí as condições energéticas, e ao “material do seu processo” – “living systems are open and can

never be fully thermodynamically autonomous; as dissipative structures they depend

on an externally determined Gibbs energy gradient” 148 (HOFMEYER, 2007, p.10).

Quanto ao processo de fabricação, o organismo absorve de fora os “building

blocks” [blocos de construção], a matéria-prima com a qual irá construir a si mesmo,

148

“Sistemas vivos são abertos e não podem ser nunca completamente autônomos termodinamicamente; como estruturas dissipativas eles dependem de um gradiente de energia de Gibbs externamente determinado.”

mas a causa eficiente é por sua vez interna. Pode-se sempre fazer a pergunta de como são produzidas essas causas eficientes, que aqui tomamos como pressupostas. A resposta é que elas precisam ser produzidas no interior do organismo, caso contrário esse não seria autônomo. Mas se postulamos para cada causa eficiente uma nova causa eficiente não é difícil perceber que com isso caímos no que Hegel já chamava de mau infinito, pois é possível continuar indefinidamente nessa progressão. Ou seja, a hierarquia linear de causas eficientes aponta para um regresso ao infinito que é incompatível com a existência de sistemas autônomos reais.

A resposta de Hofmeyer (2007, p.11) não é muito diferente da de Hegel: “In

some way this hierarchy of efficient causation must fold back into itself, must close, must become circular.”149

A hierarquia de causas precisa voltar-se sobre si, constituindo um sistema circular de autodeterminação, fechado quanto à causa eficiente – ainda que aberto à causa material. É possível, portanto, internalizar o processo de produção a ponto de fazer o sistema completamente autônomo (fechado) no que diz respeito a sua própria fabricação (autofabricante), e é precisamente essa organização que o vivente realiza enquanto sistema natural. Mesmo assim, permanecerá sempre aberto no que diz respeito à causa material, devido à sua dependência de entradas do exterior, à necessidade de feeding, alimentação, sem a qual não é capaz manter a própria identidade. A vida é inseparável da carência.

A tensão entre abertura e fechamento é própria do vivente, e garante que sua existência esteja sob constante e inevitável risco, pois para manter sua identidade ele precisa entrar em relação com o não-idêntico. Sua autonomia é acompanhada de sua necessidade quanto à relação prática com a exterioridade – o custo de separar-se da objetividade indiferente é fazer-se dependente dela. O vivente é existência enquanto tensão, pois não há outra maneira de subjetividade fazer-se objetiva.