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Hegel toma como ponto de partida para sua filosofia da vida a conceituação de Kant a respeito dos organismos na Crítica do Juízo. Na terceira crítica, ao refletir sobre as questões ligadas à finalidade no interior da natureza, Kant esboça um contraste importante entre a teleologia externa, encontrada nos artefatos mecânicos, e a teleologia intrínseca, própria dos organismos vivos. Em contraste com um mero artefato, no qual as partes até fazem referência a uma totalidade (uma ideia na mente do produtor), mas são produzidas independentemente e organizadas de fora, no organismo todas as partes precisam ser pensadas, simultaneamente, como resultado das ações das outras partes e existindo em função das outras partes.

Um objeto da natureza que apresenta essa estrutura d e produção recíproca das partes é, para Kant, não só um ser organizado, mas um ser auto-organizante – o que Kant denomina de “propósito natural”:

In such a product of nature every part exists by means of the other parts, but is thought as existing for the sake of the others and the whole, that is as an (organic) instrument. […] but also its parts are all organs reciprocally producing each other. This can never be the case w ith artificial instruments, […]. Only a product of such kind can be called a natural purpose, and this because it is an organised and self-organising being. (KANT, 2007, p. 164). 22

Kant rompe com o modelo de teleologia externa, e propõe uma concepção de organismo bastante aparentada, em linhas gerais, com a teoria contemporâne a da autopoiese. Ao fazer isso, Kant vai além da noção de finalidade transcendente, hegemônica na modernidade, e recupera, como Hegel bem observa, a ideia de finalidade interna já presente em Aristóteles. Kant, no entanto, encontra problemas para compatibilizar esse conceito de finalidade com a ideia de natureza que retira da física.

22 “Num tal produto de natureza cada parte existe por meio das outras partes, mas é pensada como existente por causa das outras e com o todo, que é como um instrumento (orgânico). [...], Mas também as suas partes são todos órgãos que produzem mutuamente uns aos outros. Iss o nunca pode ser o caso com instrumentos artificiais, [...]. Apenas um produto de sse tipo pode ser chamado de um propósito natural, e isso porque ele é um ser organizado e auto -organizante”.

Em particular, Kant identifica o que chama de “antinomia do juízo teleológico”: o dilema entre as demandas da física Newtoniana, de acordo com as quais todos os objetos naturais devem ser entendidos em termos puramente mecanísticos, e nossa experiência em lidar com o reino biológico, que nos força a pensar em termos de causas finais.

De um lado, o fenômeno da vida parece nos forçar à ideia de “propósito natural”, no qual o todo é causa e efeito de si mesmo, uma estrutura causal – diz Kant – que não encontra nada análogo no resto da natureza. Por outro lado, a própria ideia de um ser auto-organizado, que produz a si mesmo, parece estar, afirma Kant, para além da inteligibilidade; um ser natural animado por fins parece um absurdo, e a ideia mesmo de vitalidade contradiz a própria essência da matéria, que, para Kant, aqui inteiramente fiel a Descartes e Newton , é ser inerte.

Já Hegel, ao passo que louva Kant pelo resgate da noção de teleologia interna, ao mesmo tempo crítica o que vê como hesitação na posição kantiana. O limite do conceito de vida presente em Kant encontra-se precisamente no fato de que Kant é incapaz de pensar na finalidade dos organismos a não ser por analogia com a finalidade das operações mentais dos sujeitos humanos. A noção de propósito natural torna-se então somente um princípio regulativo. Pior: Kant acaba retrocedendo a uma espécie de esquema “físico-teológico” para sua aplicação, interpretando os organismos e suas partes “como se” fossem produtos de design. Ao dar esse passo, porém, fica comprometida justamente a concepção inovadora de vida como propósito natural expresso por sistemas auto-organizados e auto-organizantes. A ideia de propósito natural é prontamente reduzida a apenas uma instrumentalização da metáfora da máquina.

Há uma questão de fundo: são os próprios compromissos teóricos fundamentais do sistema kantiano que o força a não avançar pelo caminho que abriu. Pesa, sobretudo, o medo do naturalismo. Kant não apenas considera como absurda qualquer explicação naturalista para a origem dos organismos, como também é o caso que sua metafísica implícita o torna mais simpático à hipó tese de criação ex nihilo por uma vontade inteligente.

É justo dizer que a Crítica do Juízo é o verdadeiro ponto de partida do idealismo alemão, e não por coincidência Hegel a considerava a obra mais importante da modernidade. Para Hegel, com o conceito d e finalidade interna, Kant

havia ressuscitado a “ideia em geral”. O problema é que apesar de ter sido dado um passo crucial, em Kant trata-se ainda tão somente de um princípio regulativo. O que Hegel almeja é desenvolver o insight kantiano em uma verdadeira ontologia da vida.

Hoje é possível assumir a tese de que a dificuldade que Kant encontrou em naturalizar a vida deve-se, antes de mais nada, à estreiteza do paradigma físico vigente em seu tempo, que considerava a matéria como essencialmente inerte. Kant estava certo ao insistir em uma forma lógica distinta para os juízos teleológicos (que se aplica quando estamos lidando com seres vivos), assim como na tese da irredutibilidade do fenômeno orgânico a explicações de caráter mecanístico. Estava errado, no entanto, ao acreditar que a própria natureza se esgota em explicações mecanísticas. Kant não estava preparado para admitir, como Hegel fará em seguida, que a vida já é idealidade no interior da natureza – precisamente porque, para Kant, era importante manter a separação estrita e absoluta entre o ideal e o natural.

Por meio de uma reinterpretação naturalística, o conceito kantiano de auto - organização adquire uma força ontológica real, mas ao custo de se tornar mais “dogmático” – a vantagem teórica é, no entanto, abrir espaço para ver, contra Kant, a subjetividade em continuidade com a natureza. Deve-se nesse ponto, portanto, pôr Kant de cabeça para baixo: não é que o sujeito projeta na natureza seu próprio modo de agir em relação a fins como um “princípio regulativo”, de modo a fazer sentido dos organismos. Na verdade, o contrário: é apenas por que o sujeito é já desde sempre um organismo que ele pode experimentar a finalidade – o sujeito é ele mesmo, antes até de ser um sujeito que conhece, necessariamente um “propósito natural”. Ou seja, o sujeito do conhecimento é um organismo, e só a vida pode conhecer a vida.

Como observa Michelini (2012), a vida em si é, para Hegel, “a forma mais básica da subjetividade”. A subjetividade se inicia com a vida – essa é a tese de Hegel que assumimos aqui até as últimas consequências. O pensamento e formas superiores de atividade mental, tal como encontramos em seres propriamente conceituais, são formas desenvolvidas da atividade vital. Pensar é algo que um ser vivo faz, e qualquer ser sapiente é, antes de mais nada, um vivente. No organismo, encontramos a subjetividade em sua forma minimal, o que torna possível a vida ser a ponte entre natureza e espírito, e o ponto pelo qual devemos começar a tarefa de naturalizar o espírito. Como forma mínima do Si, a vida oferece também o modelo

mais simplificado, e, portanto, o mais indicado para compreender a estrutura geral do sujeito.