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Em 1959, o biólogo Ernst Mayr chamou atenção para outra importante contribuição de Darwin ao pensamento que também possui implicaçõe s profundas para a filosofia. Trata-se de mais uma maneira pela qual o pensamento darwiniano ameaça frontalmente a metafísica tradicional: de acordo com Mayr (1984), Darwin substitui o pensamento tipológico pelo pensamento populacional. O pensamento tipológico se origina a partir da necessidade de classificar a ordem da natureza, de arranjar a diversidade dos seres em tipos distintos, de acordo com suas diferenças qualitativas. Mas esses tipos logo passam a ser tomados como a explicação para as semelhanças entre as entidades particulares naturais: os indivíduos são vistos então como expressões mundanas de um mesmo tipo. Mayr (1984, p.158) conecta então ao essencialismo em filosofia:

Typological thinking no doubt had its roots in the earliest efforts of primitive man to classify the bewildering diversity of natu re into categories. The eidos of Plato is the formal philosophical codification of this form of thinking. According to it, there are limited number of fixed,

unchangeable ‘ ideas’ underlying the observed variability, with the eidos

variability has no more reality than the shadows of an object on a cave wall. 159

Segundo o pensamento tipológico (ou essencialista), para além e acima dos indivíduos particulares que compõem uma espécie, exist em as formas, de caráter normativo, que determinam o que o organismo deve ser. Como afirma Dewey (2007, p.144):

This formal activity which operates throughout a series of changes and holds them to a single course; which subordinates their aimless flux to its own perfect manifestation. […] To it Aristotle gave the names, eidos. This term the scholastics translated as species. 160

Aí está a chave, aponta Dewey, para entender o escândalo diante da combinação, hoje para nós aparentemente inofensiva, que Darwin estampou logo no título de sua obra: “A Origem das Espécies”.

Para Dewey (2007), a filosofia oficial da Europa dos últimos 2000 anos estava baseada nessa noção clássica de espécie que carregava intrinsecamente a ideia de propósito, de um princípio regulativo que, enquanto força espiritual extra-mundana escapa à percepção, mas que poderia ser capturada pela razão, uma força espiritual fora do ciclo de geração e corrupção que garante a estabilidade do inteligível frente ao inconstante fluxo natural:

The conception of eidos, species, a fixed form and final cause, was the central principle of knowledge as well as of nature. Upon it rested the logic of science. Change as change is merely flux and lapse; it insults intelligence. Genuinely to know is to grasp a p ermanent end that realizes itself through changes. 161 (DEWEY, 2007, p.144).

159 “Pensamento tipológico, sem dúvida, teve suas raízes nos primeiros esforços do homem primitivo para classificar a desconcertante diversidade da natureza em categorias. Os eidos de Plat ão é a codificação filosófica formal desta forma de pensar. De acordo com ele, há um número de fixo, "idéias" imutáveis subjacente à variabilidade observada, com os eidos (idéia), sendo a única coisa que é fixa e real limitado, enquanto que a variabilida de observada não tem mais realidade do que as sombras de um objeto na parede de uma caverna.”

160

“Esta atividade formal, que atua em todo uma série de mudanças e prende -los a um único curso; que subordina o seu fluxo sem rumo para a sua própria manifestaçã o perfeita. [...] Para que Aristóteles deu os nomes, eidos. Este termo os escolásticos traduzido como espécies.”

161 “A concepção de eidos, espécies, uma forma fixa e causa final, foi o princípio central do conhecimento, bem como da natureza. Sobre ela desc ansou a lógica da ciência. Alterar como a mudança é apenas fluxo e anuladas; insulta a inteligência. Genuinamente saber é de agarrar um fim permanente que se realiza através de mudanças”.

Em um mundo darwiniano, como vimos, existem regularidades compartilhadas pelos membros de uma espécie, mas essas regularidades perdem o estatuto de normas transcendentes que definem o que os indivíduos particulares devem ser, para serem rebaixadas ao nível de meras semelhanças de família, probabilidades estatísticas numa população, resultantes do princípio de hereditariedade.

Como enfatiza Mayr (1984), cada organismo é composto de características únicas, e podem ser descritos coletivamente apenas em termos estatísticos. Não é a norma que antecede os indivíduos, e garante a unidade da espécie, pelo contrário: apenas os indivíduos que compõe a população possuem realidade, a “norma” é nada mais que uma abstração estatística. Como conclui Mayr (1984, p.158):

The ultimate conclusions of the population thinker and of the typologist are precisely the opposite. For the typologist, the type (eidos) is real and the variation an illusion, whil e for the populationist the type (average) is an abstraction and only the variation is real . 162

Como Jonas (2004, p.56) enfatiza, o darwinismo desempenhou um papel de destaque na tendência antiplatônica da ciência moderna, ao completar a “eliminação das essências imutáveis, com isto sinalizando a vitória final do nominalismo sobre o realismo, que tinha seu último bastião na ideia das espécies naturais .”

A implicação filosófica é dupla, e trataremos de desdobrá -las nas duas seções seguintes. E primeiro lugar, elimina-se a noção teleológica de espécie, e com isso a noção teleológica de natureza: não há nada que a natureza deva ser; em certo sentido, não há nada natural na natureza, na medida em que não há mais um parâmetro transcendente pelo qual se pode julgar a variação. A natureza é tudo o que ocorre, pura variação, não faz sentido falar de variação natural contra a natureza. Espécies não possuem uma “natureza” no sentido de que é “natural” que elas sejam de tal e tal forma – o que tem consequências para a própria ideia, filosoficamente relevante, de “natureza humana”. Em segundo lugar, uma vez que é exatamente a variação que torna o processo evolutivo possível, é só na medida em que a hereditariedade não é perfeita (o não-normal aparece, e não pode deixar de aparecer) que o mecanismo da seleção natural pode funcionar. Toda a espécie começou como algo que escapou à norma: os desvios, os erros, são a matéria-prima do processo evolutivo.

162

“As conclusões finais do pensador populacional e do tipologista são precisamente o oposto. Para o tipologista, o tipo (eidos) é real e a variação de uma ilusão, enquanto que para a popula cionista o tipo (média) é uma abstração, e apenas a variação é real”.

O pensamento darwiniano reconhece na variação um elemento positivo. Enquanto no pensamento tipológico a espécie é (real, verdadeira, atemporal) e a variação não é (a variação é o mero contingente, temporário, acidental, não -genuíno), para o pensamento darwiniano a variação é uma condição para a criatividade da natureza. O novo só surge do erro.