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Uma estranha inversão da razão

Como afirma Dennett (1993, p. 67): “Uma característica proeminente das visões de mundo pré-darwinianas é um mapa geral de coisas que vai de cima para baixo.” Deus no topo, os seres humanos mais embaixo, animais não-humanos, depois as plantas até as formas mais simples de vida. Nessa grande cadeia do ser, a mente,

157 “Juntos, eles adicionaram tal prestígio ao argumento do desígnio que até o final do século XVIII, foi, conforme aprovado pelas ciências da vida orgânica, o pont o central da filosofia teísta e idealista. O princípio da seleção natural darwiniana corte reto sob essa filosofia. Se todas as adaptações orgânicas são devido simplesmente à variação constante ea eliminação dessas variações que são prejudiciais na luta pela existência, que é provocada pela reprodução excessiva, não há nenhuma chamada para uma força causal inteligente antes de planejar e predestina -los. Críticos hostis cobrado Darwin com o materialismo e com possibilidade de fazer a causa do universo.”

no caso a mente divina, é o primeiro – o princípio (tanto origem quanto explicação) de tudo – e quanto mais abaixo, mais diferente de Deus. O pensamento darwiniano sugere, contudo, inverter essa ordem: tratar a Mente como efeito, não como uma causa primeira – o simples vem no começo, o mais complexo no final, derivado do simples.

Para ilustrar o quão subversiva e perturbadora é essa nova perspe ctiva, Dennett (1993, p. 68) cita uma publicação anônima de um contemporâneo de Darwin enfurecido e enojado frente a tal inversão:

Na teoria com a qual temos que lidar, o artífice é a Ignorância Absoluta; assim, podemos enunciar, como princípio fundamenta l de todo o sistema, que, PARA FAZER UMA MÁQUINA BELA E PERFEITA, NÃO É NECESSÁRIO SABER COMO FAZÊ -LA. Veremos, por meio de um cuidadoso exame, que essa proposição expressa de forma condensada o conteúdo essencial da Teoria, e expressa em poucas palavras t odo o pensamento do Sr. Darwin, que, por uma estranha inversão de raciocínio, parece pensar que a Ignorância absoluta está plenamente qualificada para substituir a Sabedoria Absoluta em todas as realizações criativas.

“Exatamente!” – responde Dennett. A Ignorância Absoluta está de fato qualificada para substituir a Sabedoria Absoluta, a seleção natural “faz” “máquinas belas e perfeitas”, sem, contudo, saber como faz – competência não pressupõe compreensão. Mas essa é de fato uma estranha inversão à luz da tradição, que sempre havia privilegiado a consciência frente à mera existência, o propósito frente à contingência, o plano global frente aos acidentes locais. Essa inversão é um escândalo para a filosofia porque também ela havia se acostumado a partir do pressuposto de que o primeiro é o superior, que há sempre mais “perfeição” na causa do que no efeito, que o efeito é, em certo sentido, sempre menor, deficiente, com relação a causa originária.

Com Darwin se inaugura a possibilidade de conceber que algo nã o precisa ser inteligente para produzir algo inteligente, que o mais complicado pode surgir a partir do mais simples, que o princípio, como nota Jonas (2004, p. 51), não precisa ser em nenhum sentido mais real do que o que dele se segue:

Nesse novo sentido do conceito de ‘origens’ pode-se perceber uma completa inversão da ideia mais antiga da superioridade da causa criadora sobre seu efeito. Sempre se havia suposto que na causa deveria estar contida não apenas mais força, mas também mais perfeição do que n o efeito. O que produz tem que ter mais ‘realidade’ do que o que é por ele

produzido: deve ser superior também em formalidade, para explicar o grau de forma de que as coisas derivadas desfrutam.

Darwin, inadvertidamente, acabou desencadeando uma revolução filosófica a partir da qual foi possível ver que “realizações criativas” podem ocorrer mesmo na ausência de qualquer sabedoria (absoluta ou não) – e, para adicionar insulto a injúria, a própria “sabedoria”, quando existe, é ela mesma fruto de um processo em si ignorante, que a produz sem a representar previamente.

Com isso Darwin elimina o regresso ao infinito da pergunta sobre a origem. O argumento do design se baseia no raciocínio de que, da mesma forma que deduzimos da existência de uma máquina a existência de um designer, uma inteligência anterior que a projeta e a constrói, devemos deduzir da existência de máquinas naturais, os seres vivos, um criador, uma mente primeira que dá forma à matéria, organiza -a desde fora conferindo-lhe propósito. Para produzir algo complexo e perfeito só algo ainda mais complexo e perfeito. Mas nesse momento o naturalista poderia devolver ao teólogo natural a pergunta original: mas como você explica então a existência dessa entidade complexa? Ela mesmo não pressupõe um outr o ser mais complexo ainda – um meta-criador? Pode-se sempre, claro, assumir que tal ser sempre tenha existido, mas nesse caso o problema em questão, a origem da complexidade, não é resolvido, só empurrado um degrau adiante. Por que então se dar ao trabalho , ao invés de simplesmente aceitar que a complexidade da vida sempre existiu?

O pensamento darwiniano não precisa se debater com semelhante problema de regresso ao infinito porque ele vem de baixo para cima, ao invés de cima para baixo – da regularidade sem propósito ao propósito natural:

[Darwin:] Deixe-me começar com a regularidade – a regularidade sem propósito, irracional, e sem objetivo da física – e eu lhe mostrarei um processo que acabará produzindo coisas que exibem não só regularidade como um pro jeto intencional (DENNETT, 1993, p. 68).

Fica assim dispensada não apenas a necessidade de uma mente primeira como qualquer sentido transcendente para a história evolutiva. A evolução não ocorre para produzir certos resultados, ela os produz cegamente, s em representá-los anteriormente. Não só a pirâmide cósmica é implodida, mas também a própria escala natural deixa de ter significado: a evolução não tem orientação progressiva, não

existem formas “inferiores” ou “superiores”, apenas diferentes maneira de ganhar a vida. Não se trata de uma escada a ser escalada, mas de um arbusto retorcido, cada ramo experimentando nas margens quais são as possibilidades existentes de diversificação. A evolução é esse tatear múltiplo pelo espaço de formas, ininterrupto, experimental, expansivo, divergente, sem orientação ou finalidade. À pergunta “Por quê?” (por que essa espécie apareceu? Por que esse órgão surgiu? Por que essa linhagem prosperou?), não se pode dar nenhuma resposta ancorada numa lógica absoluta, em leis transcendentes do progresso. Porque foi possível, naquelas circunstâncias, apenas. O mundo vivo, como resultado dessa constante diversificação, exploração de novas formas de vida e deriva no espaço de formas viáveis, nunca é um todo harmônico, onde cada espécie desempenha um papel pré- asignado. Pelo contrário, qualquer harmonia é provisória e precária, resultante da interdependência generalizada, e não de um plano pré -estabelecido; a cooperação existe, assim como a competição, a predação e o parasitismo. A luta pela existência permanece implacável.