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Marx e complexidade: sujeito e estrutura na ontologia social dialética

Com seu célebre ensaio “O que é o marxismo ortodoxo?”, Lukács (2003, p.79) lança-se na defesa da concepção dialética de totalidade, como base do único método capaz de “reproduzir a realidade no plano do pensamento.” Para Lukács (2003), quando se trata de marxismo, o que importa é o método, e o que torna o método de

Marx estranho às ciências positivas de seu tempo é centralidade com a qual brinda a categoria da totalidade.

De acordo com Lukács (2003, p.104), o método dialético se distinguiria precisamente pelo “predomínio metódico da totalidade sobre cada aspecto”, por considerar os fenômenos parciais como elementos imersos em um todo e codeterminados por ele:

A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova. (LUKÁCS, 2003, p. 104).

Ao insistir na unidade concreta do todo e na concepção de realidade como devir, a rigidez dos conceitos é dissolvida e a causalidade unilateral é substituída pela ação recíproca. Como observa Lebowitz (2009, p.43):

Marx’s starting point, accordingly, is to develop an understanding of society as a ‘connected whole’, as an organic system; it is to trace the intrinsic connection and to reveal the ‘obscure structure of the bourgeois

economic system’167.

A tentativa de captar a totalidade pela teoria – de modelar, ou seja, de transpor para o pensamento, as relações internas que constituem a “estrutura obscura” – é, para Marx, precisamente do que se trata o esforço científico. O objetivo é explicitar como a diversidade de determinações que constituem uma totalidade concreta conectam-se de forma orgânica, e não meramente acidental. Nesse sentido, Marx, sem recusar a pretensão de cientificidade, distancia -se do tradicional empirismo inglês para mostrar-se um herdeiro da filosofia alemã, retomando o espírito da abordagem hegeliana, tal como expressa no prefácio da Fenomenologia do Espírito: “o verdadeiro é o todo”.

Convém notar, contudo, que nem Marx nem Hegel se mantêm no todo imediato: a investigação científica não deixa a totalidade na forma imediata como a encontra, mas procede à sua análise. O próprio Hegel (2002, p.32), também na

167“O ponto de partida de Marx, portanto, é desenvolver uma compreensão da sociedade como um todo conectado, como um sistema orgânico; é rastrear a conexão intrínseca e revelar a estrutura obscura do sistema econômico burguês”.

Fenomenologia, qualifica o momento do separado como “essencial”, e assevera que a “a atividade do dividir é a força e o trabalho do Entendimento, a força maior e mais maravilhosa.”

A consideração da totalidade, e, portanto, da insuficiência do Entendimento, convive lado a lado com o elogio desse mesmo Entendimento: é necessário passar pelo separado. Seguindo essa tradição, Marx caracteriza se u próprio método como uma síntese de intenções holísticas e procedimento analítico:

Thus, if I were to begin with the population, this would be a chaotic conception [Vorstellung] of the whole, and I would then, by means of further determination, move analytically towards ever more simple concepts [Begriff], from the imagined whole towards ever thinner abstractions until I had arrived at the simplest determinations. From there the journey would have to be retraced until I had finally arrived at the population again, but this time not as the chaotic conception of whole, but as a rich totality of many determinations and relations . 168 (MARX, 1973, p. 100).

A tendência holista do pensamento dialético distancia -se de uma fixação romântica por um todo que é misteriorisamente “maior que as partes”, e sem maiores reverências à totalidade imediata procede impiedosamente à análise, abstraindo componentes particulares e buscando reconstruir teoricamente a organização segundo a qual esses componentes se articulam no funcionamento efetivo do sistema em questão.

Como explica Lukács (2003), não se trata de suprimir a análise e fixar-se apenas na totalidade simples (que é a resposta irracionalista , romântica, ao reducionismo científico), mas realizar a tarefa científica sup erando o Entendimento por dentro, isso é, retornar à totalidade a partir dos elementos produzidos mediante abstração:

O isolamento – por abstração – dos elementos [...] é certamente inevitável. O que permanece decisivo, no entanto, é saber se esse isolame nto é somente um meio para o conhecimento do todo, isto é, se ele se integra sempre no contexto correto de conjunto que ele pressupõe [...]. ( LUKÁCS, 2003, p. 107).

168

“Se começássemos pela população [determinações superiores, concretas], teríamos uma concepção caótica do todo, então precisaríamo s, por meio de uma maior determinação, procedermos analiticamente em direção a conceitos cada vez mais simples, do concreto imediato para abstrações mais finas até que cheguemos nas mais simples determinações. Daí a jornada deve ser refeita até retornarmos às determinações superiores novamente, mas agora como uma totalidade rica de muitas determinações e relações.”

O cerne da questão é que não é possível compreender adequadamente um elemento a não ser levando em conta o contexto sistêmico n o qual ele se encontra inserido e do qual depende. Marx lembra-nos constantemente que categorias simples podem adquirir significados substancialmente distintos dependendo do sistema global em que se encontram inseridas. Isso quer dizer que a essência da coisa não está definida de uma vez por todas apenas pelo que ela seria em si, tomada isoladamente como uma substância auto-subsistente e indiferente ao contexto, mas que a coisa mesma recebe novas determinações a partir d as circunstâncias nas quais se encontra. Nesse sentido, deparamo-nos com uma efetiva e radical negação do atomismo, que, contudo, não desemboca em um holismo obscurantista e impotente frente ao todo. O que está em jogo é justamente a capacidade de captar a s inter-relações dinâmicas dos membros em sua inserção em uma totalidade igualmente dinâmica.

Tomemos um exemplo da economia, para ilustrar o que significa na prática tal atitude teórica: o dinheiro, como meio de circulação, existe historicamente antes do s bancos e do próprio capital existirem, assim como também o capital aparece antes do sistema assalariado tornar-se hegemônico, mas em ambos os casos essas categorias econômicas ocupavam papéis absolutamente diferentes na totalidade do sistema social. A dependência sistêmica da significação dos elementos particulares em relação ao conjunto estrutural é ilustrada por Marx da seguinte maneira:

Um negro é um negro. Somente em certas condições torna -se um escravo. Uma máquina de tecer algodão é uma máquina de tecer algodão. Somente em certas condições ela se torna capital. Separadas dessas condições, ela é tão capital quanto o ouro em si é dinheiro ou o açúcar, o preço do açúcar . (LUKÁCS, 2003, p. 85).

Em “O Capital”, Marx aplica conscientemente sua metodologia, resultando em uma obra com pretensões científicas que apresenta a peculiaridade de ser ao mesmo tempo investigação histórica e estrutural, diacrônica e sincrônica, que considera explicitamente as inter-relações entre diferentes níveis de causalidade e discute como a interação entre elementos individuais resulta em padrões globais, que por sua vez, conduzem a alterações constitutivas desses mesmos elementos.

Não por acaso, os biólogos Lewontin e Levins (2007, p.185) reconhecem nessa obra a primeira tentativa de uma investigação sistêmica sobre um objeto complexo:

Perhaps the first investigation of a complex object as a system, was the masterwork of Karl Marx, Das Kapital. When he chose the commodity as the ´cell´ of capitalism, he didn´t present it as th e ´atom´ of the economy, as a fixed and unchanging object that determines the whole, but as a point of convergence of all the economic phenomena, at the same time determined by the whole and determining it. And he was not timid about changing his focus, sometimes to ´capital´ as such, sometimes to production or labor. These shifts of point of view would have been very confusing if it weren´t for his clear sense of dialectical methodology.169

É justamente por Marx considerar simultaneamente a causalidade horizontal na emergência sistêmica e a causalidade vertical orgânica, reconhecendo tanto no nível do sistema como no nível de seus elementos uma realidade efetiva irredutível, ambos gozando de igual dignidade ontológica, que sua teoria pode tanto ser reivindicada pelo estruturalismo althusseriano como pelo individualismo metodológico do “marxismo analítico”. Tais leituras discordantes são possíveis porque a tensão já está presente no próprio Marx, que leva em conta tanto determinações de baixo para cima como determinações de cima para baixo. O ponto de partida metodológico são sempre os “indivíduos concretos socializados” – nem uma estrutura que paira magicamente por cima dos indivíduos reais, nem indivíduos atomizados alheios à causalidade estrutural.

Para Daniel Bensaid (1999), Marx, como herdeiro de uma ciência alemã que resiste à racionalidade exclusiva da ciência positiva, aponta em direção a uma “mecânica orgânica”, sendo quase como um precursor de Prygogine, Bertallanfy e das contemporâneas teorias do caos e das catástrofes. Efetivamente, a originalidade de Marx encontra-se no seu projeto de analisar os sistemas econômicos, e o capitalismo em particular, como um todo orgânico .170 Totalidades orgânicas, ao contrário do que pode passar sua caricatura ingênua, n ão são nem homogêneas nem harmoniosas. Justo ao contrário, são constituídas por momentos que se diferenciam um dos outros, marcadas por inescapáveis tensões internas e desequilíbrios, mantendo, contudo, certa coerência enquanto totalidade processual – na medida em

169“talvez a primeira investigação de um objeto complexo como um sistema, foi a obra-prima de Karl Marx, Das Kapital. Quando ele escolheu a mercadoria como ´célula´ do capitalismo, não a apresentou como o ´átomo´ da economia, como um objeto fixo e imutável que determina o todo, mas como um ponto de convergência de todos os fenômenos econômicos, ao mesmo tempo determinado pelo todo e o determinando. E Marx não era tímido sobre a mudança de seu foco, às vezes para o 'capital' como tal, às vezes, para a produção ou para o trabalho. Essas mudanças de ponto de vista teriam sido muito confusa se não fosse por seu senso claro de metodologia dialética”.

170 “His goal was to grasp capitalism as an organic system, a ´structure of society, in which all

que são capazes de reproduzir dinamicamente a própria organização . Como afirma Lukács (2003 p. 83-84):

[...] a categoria da totalidade não reduz, portanto, seus elementos a uma uniformidade indiferenciada, a uma identidade; a manifestação de sua independência, de sua autonomia [...] só se revela como pura aparência na medida em que eles chegam a uma inter -relação dialética e dinâmica e passam a ser compreendidos como aspectos dialéticos e dinâmicos de um todo igualmente dialético e dinâmico.

De acordo com Marx, o modo de produção é também um todo integrado, cuja unidade não é estática, e consiste na relação entre momentos diferentes que se refletem uns nos outros. A essa totalidade concreta, de processos que reproduzem estruturas organizadoras (que por sua vez canalizam e restringem tais processos), Marx atribui, muito adequadamente, a denominação de “todo orgânico”:

The conclusion we reach is not that production, distribution, exchange and consumption are identical, but that they all form the me mbers of a totality, distinctions within a unity. […] Mutual interactions takes place between different moments. This the case with every organic whole . 171 (MARX, 1973, p. 99).

O que caracteriza um todo orgânico, como enfatiza Lebowitz (2009, p.51), é o movimento de “pôr os pressupostos”: “In Marx´s dialectical analysis, a central

requirement will be to demonstrate that what was mere a premise and a presupposition […] is itself reproduced within the system – i.e., is a result.”172

Essa noção de sistema, uma totalidade estruturada de momentos interdependentes que se codeterminam, e devem ser, portanto, apreendidos em sua unidade (uma relação orgânica, enfatiza Marx, e não meramente acidental), e em particular a noção de uma totalidade que põe seus próprios pre ssupostos, já estava presente em Hegel, e é mobilizada por Marx para compreender o funcionamento da economia capitalista. 173

171 “A conclusão a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e cons umo são idênticos, mas que juntos constituem membros de uma totalidade, diferenças no seio de uma unidade [...] Uma mútua interação se dá entre diferentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo orgânico”.

172“Na análise dialética de Marx, um requisito central será demonstrar que o que era mera premissa e pressuposto [...] é ela mesma reproduzida dentro do sistema - ou seja, é um resultado”.

173 Marx (1973, p. 278): “While in the completed bourgeoius system every economic relation presupposes every other in its bourgeois economic form, and everything posited is thus also a presupposition, this is the case with every organic system. This organic system itself, as a totality,

Podemos encontrar, pois, em Marx, o conceito geral de “todo orgânico” como um sistema de momentos dinamicamente interdependentes e circularmente concatenados – de forma que é o conjunto dos momentos, em seu funcionamento coletivo, que forma o contexto que dá significado, e constitui a condição de existência, para cada momento particular.

Marx repete assim um movimento tipicamente hegeliano ao considerar a formação social também como uma unidade refletida: as partes são definidas pelo todo, ao mesmo tempo em que esse todo é não só premissa, mas também resultado, uma cristalização histórica da interação entre as partes. Para Marx, os hom ens formam a sociedade, mas são também formados nela. Logo, o ponto de partida metodológico da análise social tem que ser, pois, a ação socialmente determinada de indivíduos concretos. A sociedade, como um todo, é produto do desenvolvimento histórico, mas marcada por dinâmicas próprias de automanutenção – essas dinâmicas operam em um nível supra-individual, segundo uma lógica que frequentemente escapa aos indivíduos, mas que ainda assim condiciona suas ações e determinam suas existências.

O problema, portanto, com as abordagens do individualismo metodológico e do estruturialismo não é que estejam erradas, mas que são insuficientes, unilaterais. Em uma abordagem estritamente estruturalista, que se refere somente aos processos macro-econômicos de uma perspectiva formal (estruturas e relações formalmente independente dos indivíduos concretos e de suas aspirações particulares), falta uma teoria do sujeito, uma teoria de como a dinâmica relacional é efetivamente implementada ao nível individual. Não basta identificar as relações estruturais, é necessário também dar conta de como interação local de indivíduos, que do ponto de vista da consciência podem muito bem estar inteiramente alheios à lógica da totalidade, produz e reproduz padrões globais (que, por sua vez, impõem restrições ao comportamento individual).

A tensão interna do sistema só é possível no curto -circuto entre dois níveis distintos que se co-determinam. Ora, mas para que se co-determinem é necessário que sejam diferentes (ainda que “diferentes no seio de uma unidade”); isso é, subsistam em autonomia e dignidade ontológica. Uma análise puramente estrutural, has its presuppositions, and its development to its totality consists precisely in subo rdinating all elements of society to itself […].”

ainda que anti-reducionista, não vai além do mecanicismo – isso é, não capta o todo como tensão. Para tanto, é necessário ainda a noção propriamente dialética de “totalidade incompleta” ou “totalidade cindida”.

A verdadeira contradição não pode ser encontrada nem na perspectiva da estrutura nem na perspectiva do sujeito, mas unicamente na relação entre estrutura formal e singularidade. O todo nunca consegue determinar completamente as partes – há um excesso na parte que não pode ser encaixada harmoniosamente no todo, que não se resume à sua posição topológica nesse todo, e dessa forma contribui para o próprio movimento do todo. Em outras palavras, a parte é a sua posição no todo, mas também é sempre mais que isso, nunca se reduz integralmente aos seus aspectos funcionais no movimento de reprodução – o que garante que esse movimento nunca é tranquilo, e sempre pode dar errado.

A conclusão é que não há um nível de análise privilegiado. A investigação de sistemas complexos precisa levar em conta tanto o nível da totalidade quanto dos elementos constituintes, e compreender a mútua determinação de um sobre o outro. Uma teoria verdadeiramente materialista da sociedade tem que dar conta tanto das circunstâncias sociais dos indivíduos, assim da produção dessas circunstâncias mesmas pelos próprios indivíduos. Há um curto -circuito hierárquico, o nível meta está também incluído: os indivíduos são ao mesmo tempo prod uto e produtores. Marx (1977, p.118) o ilustra esse ponto em suas célebres teses sobre Feuerbach:

A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado.

Se por um lado, o estruturalismo perde de vista o ser humano ativo (enquanto sujeito), o individualismo metodológico, por outro, parece esquecer justamente das circunstâncias, ou seja, das estruturas sociais com as quais indivíduos particulares se defrontam e que condicionam suas ações. Marx, em resposta antecipada, explica:

Os economistas expressam isso do seguinte modo: cada um busca seu interesse privado e apenas seu interesse privado, e assim, sem o saber, serve ao interesse privado de todos, ao interesse geral. […] A ironia dessa afirmação não vem do fato de que quando cada um busca seu interesse privado, se alcance a totalidade dos interesses privados, ou seja, o interesse geral. Dessa frase abstrata se poderia deduzir, com mais acerto, que cada um cria obstáculos à realização do interesse do outro, de modo que, em

lugar de uma afirmação geral, essa bellum omnium contra omnes pode resultar em uma negação geral. O aspecto central é o seguinte: o interesse privado já é um interesse socialmente determinado, que só pode ser alcançado em um contexto fixado pela sociedade e com os meios que ela oferece. Trata-se de interesses particulares, mas seu conteúdo, assim como sua forma e os meios para a sua realização, depende das condições sociais que são independentes de todos. (RODOLSKY, 2001, p.173).

O que há de se enfatizar aqui é justamente o emarenhamento das “circunstâncias” com a atividade efetiva dos elementos singulares. A categoria da totalidade só faz sentido se as ações dos elementos se articularem de forma não trivial na constituição de uma universalidade na qual todos estão inseridos (imersos, como que em uma “substância social”), e se essas condições universais, por sua vez, possuírem eficácia causal sobre o comportamento desses mesmos elementos.

Há, portanto, uma relação de mútua dependência e co -determinação entre todo e parte, de modo que nenhum dos polos é dispensável, e assim não podem ser ignorados na investigação do sistema – nem a parte é uma mera abstração, nem o todo é um epifenômeno.