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Da ontologia social à dialética da natureza 17

O próprio esforço por parte de Engels (na pista dos passos de Hegel e de sua filosofia da natureza) de desenvolver uma dialética da natureza, ainda que vítima de certo esquematismo tosco e por vezes pueril, é na verdade uma tentativa de extrapolação, na forma de uma espécie de ontologia geral, para a totalidade do mundo material dos princípios que regem a existência de “qualquer todo orgânico”, aqueles mesmos princípios que vimos identificados por Marx – que, por sua vez, os herdou do organicismo característico do idealismo alemão.

A hostilidade quase generalizada com relação à dialética da natureza, no interior mesmo das fileiras marxistas, tem curiosamente início com o próprio Lukács. Já nele, a rejeição da dialética da natureza se baseia em duas crenças: (1) o método das ciências naturais se mostra inadequado para analisar totalidades dialéticas tais

every social process of production is at the same time a process of reproduction” (MARX, 1981, p.

711).

179“O processo de produção capitalista, portanto, visto como um todo, um processo conectado, ou seja, um processo de reprodução, produz não apenas mercadorias, não só mais-valia, mas também produz e reproduz a própria relação do capital”.

como as formações sociais; (2) essa mesma metodologia (positivista), no entanto, é bem sucedida em explicar os fenômenos naturais – organismos aí inclusos.180

O método das ciências naturais não conhece contradição nem antagonismo. Nessas ciências, os pressupostos atomistas são válidos, e é justamente a absoluta constância de seus elementos básicos que permite previsões quantitativas exatas. Como as propriedades dos elementos já estão inteirame nte dadas, e não sofrem alteração pelo contexto, é possível traçar precisamente suas trajetórias: na natureza não existe novidades, nem propriamente uma história, apenas a combinatória de elementos desde sempre já completamente determinados. A natureza, di ferente da realidade social, seria, portanto, não -dialética, e a tentativa de construir uma “dialética da natureza”, quase que um contradição em termos, só poderia resultar em confusão e contrasensos:

Os equívocos surgidos a partir da exposição de Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – estende o método dialético também para o conhecimento da natureza. No entanto, as determinações decisivas da dialética [...] não estão presentes no conhecimento da natureza. (LUKÁCS, 2003, p. 69).

Uma das consequências políticas dessa ruptura assumida por Lukács em seu influente ensaio foi o crescente distanciamento entre o que se convenciou chamar de “marxismo ocidental” e as ciências naturais. Reedita-se assim no interior da própria tradição marxista o velho contrato moderno, a separação entre ciências do espírito e ciências naturais, entre teoria do sujeito e teoria da natureza.

Se a dialética, contudo, é válida apenas no campo dos fenômenos sociais, como explicar o aparecimento desses? O que justifica esse dualismo e como ele é compatível com o materialismo? Como explicar a gênese do ser humano e a gênese, portanto, de objetos “dialéticos” a partir uma natureza de caráter absolutamente não - dialético, que o precederia? O monista materialista não pode aceitar, evidente mente, que o ser humano caia do céu – perde-se aí o reconhecimento, central tanto em Marx quanto em Engels (reforçado por Darwin), da continuidade histórica entre homem e natureza.

180

Lukács observa que a exatidão da ciência da natureza pressupõe a constância dos elementos, e que essa exigência metódica já havia sido estabelecida por Galileu. Na velhice ele reconsidera esse ponto, afirmando que tal exigência pode ter sido apenas uma fase do dese nvolvimento científico.

Podemos reformular o problema dando-lhe outra solução. Há de fato um sub- conjunto de objetos para os quais uma abordagem reducionista, que analisa o fenômeno em átomos bem definidos, com propriedades imutáveis e já desde sempre fixamente determinadas, funciona bem, e é capaz de fazer significativos progressos na produção de conhecimento. Nesse caso, síntese e análise são procedimentos inversos, que guardam uma equivalência. Esse é o caso dos sistemas físicos simples , e é o caso das máquinas em geral.

O materialismo mecanicista é uma tentativa ontológica de generalizar algo que é válido para essa experiência particular à totalidade do que existe – para a natureza enquanto tal. Mas há também um sub-conjunto de fenômenos para o qual esse tipo de análise logo mostra suas insuficiências. Esses objetos peculiares – que para Lukács não são outra coisa que o sujeito humano e o ser social – são exatamente aqueles que, por serem determinados por relações de auto-referência, não são exauridos por modelos mecânicos: neles, as partes que compõe o todo são essencialmente constituídas pelo todo. Ora, trata-se exatamente do que havíamos chamado antes de sistemas complexos.

A ciência conduzida segundo os hábitos mentais da análise reducionista, habituada na crença da unidirecionalidade da cadeia causal e na indiferença contextual das unidades simples, sempre enfrentou enormes problemas para lidar com a vida, com a subjetividade e com a sociedade. A razão para isso é que esse modo de proceder procura eliminar qualquer apelo à auto -referência, devido a seu caráter gerador de aporias. No entanto, a presença de uma estrutura impredicativa mínima constitui de forma ineliminável o que há de característico nesses três tipos de fenômeno.

A conclusão é que pelo menos alguns ramos da ciência – mais marcadamente as ciências biológicas e as ciências cognitivas – não só permitem uma abordagem dialética como se enriqueceriam com ela. Em estruturas complexas tais como os organismos vivos, o proceder do Entendimento (localmente frutífero na análise de sistemas sem integração organizacional hierárquica) é ainda mais i nadequado, porque a redução de todos os objetos a constituintes simples, tranquilos, e finitos torna os resultados de toda a intervenção prática completamente ininteligíveis.

É o próprio Lukács (1969, p.97), que, mais tarde, irá reconhecer que, já mesmo na natureza inorgânica, “os fenômenos complexos têm uma existência

primária”. Não se trata, pois, de “encontrarmos determinados elementos para depois construirmos certos complexos.” Em particular, no caso da vida, é o organismo inteiro que determina os processos singulares. A natureza peculiar dos organismos vivos, para ser adequadamente entendida, exige (assim como as formas sociai s) a categoria da totalidade: “Os processos parciais só são compreensíveis como partes do organismo completo.” “Uma ciência biológica”, diz agora o velho Lukács, “não é possível se não entendemos a vida como um complexo primário .”

O que caracteriza o materialismo de Marx é a busca por uma compreensão genética da origem e formação desses complexos. Totalidades complexas (ou concretas, como as chamava Hegel) são não agregados de coisas, mas redes de processos. Complexos não caem do céu prontos, possuem uma história. Primeiramente, a história da natureza inorgânica, depois a história evolutiva da natureza biológica, na qual complexos se combinam e se coordenam com outros complexos para formar novos complexos, e por fim, a história cultural e econômica dos complexos sociais.

Como afirma Lúkacs (1969, p.16), a própria sociedade humana é um desses “complexos de complexos”: “O homem é em si um complexo, no sentido biológico; por isso, se quero compreender os fenômenos sociais, devo considerar a sociedade, desde o princípio, como um complexo de complexos .”

Chamamos de “reducionismo” a ideia (normativa, reguladora) de que na investigação científica é necessário sempre proceder explicando o sistema por meio dos seus elementos, e nunca apelando para sistemas superiores. Essa relação é estabelecida como formal, pura e limpa: não haveria nem excessos no sistema nem lacunas nos elementos. Essa postura pode ser tanto ontológica (“fazemos isso porque de fato as coisas são assim”) como heurística (“utilizamos esse procedimento porque é a melhor forma que encontramos de entender os sistemas”). De toda forma, ela nunca foi demonstrada logicamente, ou comprovada empiricamente: é, na melhor das hipóteses, ou uma aposta especulativa ou uma rule-of-thumb. Embora apresente eficácia razoável em certos domínios, permanece como um pressuposto não- fundamentado, e, na maior parte do tempo, bem escondido.

Nas ciências sociais, o postulado que consagra esse procedimento enquanto norma da prática científica racional chama-se “individualismo metodológico”: a sociedade deve ser explicada como uma função das atividades dos indivíduos que a

compõem. Qualquer referência a um todo com poder causal é marginalizada como não-científica, e, em última análise, irracional. O mérito de Marx, e Lucáks o observa muito bem, foi ter posto em suspensão esse postulado sem, contudo, cair no seu oposto irracionalista (negar a validade da investigação analítica, assumir um élan

vital, um espírito, fora do alcance da razão ou inacessível à observação empírica,

etc.). Nossa tese assume que entre o materialismo mecânico e o vitalismo místico sobra ainda um espaço para a atuação da ciência: esse é o espaço da categoria da totalidade, da dialética, da complexidade.

É nesse espaço que acreditamos encontrar a vida, a subjetividade e a sociedade. Nos três casos, observam-se relações impredicativas entre os elementos e o sistema, desequilíbrio interno e automovimento. Nos três o auto-estabelecimento de uma identidade (de uma persistência no tempo enquanto sistema coerente) resulta do entrelaçamento e da interdependência de uma multiplicidade de processos. A consequência é a emergência de um nível autônomo de organização, assim como a diferenciação entre o interior e o exterior. Um sistema é autônomo quando essa separação não é estabelecida externamente, mas é posta pela atividade do próprio sistema: é uma separação que vem do próprio interior, auto -separação – auto- determinação por auto-limitação. O que torna esses sistemas “totalidades orgânicas” é que constituem seus próprios limites – o que, em terminologia hegeliana, consiste no movimento de “pôr os pressupostos”.

5.5 O que significa “materialismo dialético”?

Embora nem Marx nem Engels nunca tenham falado de “materialismo dialético”181

, há de fato algo como um materialismo dialético claramente implícito no projeto teórico de ambos: o compromisso com a anterioridade da natureza frente à consciência, e o casamento da naturalização da noção hegeliana de “totalidade orgânica” (que, por sua vez, descende do “propósito natural” de Kant) com uma

181 O termo jamais aparece em nenhuma obra de Marx ou de Engels. É utilizado por Joseph Dietzgen, em 1887, e também por Karl Kautski, mas só se torna uma expressão corrente na literatura marxista com Plekhanov. Lenin passará a utilizá-lo para denominar a filosofia marxismo, e com Stalin se tornará o nome da doutrina oficial soviética. Argumentamos aqui, no entanto, que seu uso mais produtivo será feito não pelos ideólogos soviéticos, mas pelos cientistas naturais influenciados pelo marxismo, principalmente no ocidente e principalmente biólogos, que o compreenderam como o compromisso com uma ontologia processual e evolutiva – ao mesmo tempo naturalista e não- reducionista.

visão histórica da natureza, com produção de novas formas de movimento. É por isso que se pode dizer que o materialismo dialético é o encontro de Hegel com Darwin: de Hegel a ideia do modo de ser, específico e objetivo, de totalidades auto -organizantes (priorizando a finalidade imanente em detrimento da finalidade externa ) e de Darwin a ideia de que as formas orgânicas não constituem espécies fixas, mas que possuem uma história natural – a espécie humana aí incluída.

Em primeiro lugar, o materialismo dialético é materialista. Parte da convicção ordinária de que há uma realidade independente do Eu, de que há um mundo ma terial que não é criação da consciência, mas com o qual a consciência é obrigada a lidar.

De fato, como observa Lefebvre (1975, p.62), todo “homem normal” atua em sua vida cotidiana de acordo com essa premissa realista básica: “O materialismo põe expressamente, na base de sua teoria do conhecimento, essa convicção ingênua, prática, de todos os seres humanos – inclusive dos filósofos idealistas!”. Em um trecho que nos remete ao argumento da ancestralidade de Meillassoux, Lefebvre (1975), fazendo referência ao materialismo de Feuerbach, chama atenção para o fato de que as ciências naturais, em seu atual estado de desenvolvimento, são capazes de descrever acontecimentos que se deram em épocas pré-humanas, anteriores, portanto, à existência de qualquer observador:

As ciências da natureza [...] nos conduzem fatalmente a uma época na qual as condições necessárias à existência humana anda não existiam, na qual a natureza e a terra ainda não eram objeto de observação para o olho e para a consciência humana, no qual a natureza, por conseguinte, era um ser estranho ao humano. (LEFEBVRE, 1975, p.62).

Quando se trata de materialismo não basta afirmar que há “coisas” independentes da percepção dos sujeitos. Até o idealismo transcendental kantiano postula a “coisa-em-si”, que afeta o sujeito produzindo nele a experiência fenomenal. É preciso ir além e dizer: 1) que a coisa-em-si é natureza; 2) que a natureza é anterior, temporalmente, ao sujeito; 3) que o sujeito é também ele parte da natureza , e que todas suas competências cognitivas são assim naturais.

A consciência humana, para a qual o fenômeno aparece, essa consciência que é capaz de conhecer e de fazer ciência, não está fora ela mesma do mundo natural – não só pertence a ele como é um resultado histórico contingente de seu

desenvolvimento. A afirmação radical do materialismo é que a consciência – entendida aqui seja como sujeito transcendental, sujeito do conhecimento, sujeito intencional, agente cognitivo, inteligência, alma etc. – não é um princípio, não é um fato eterno do Cosmos, mas tem uma gênese natural: é uma manifestação local e tardia, um tipo muito particular de movimento da matéria. O idealismo metafísico, como já havia identificado Lefbvre (1975), é simplesmente incompatível com as afirmações das ciências naturais, e acrescentaríamos nós, principalmente das ciências biológicas, que apontam para a gênese evolutiva da espécie humana182.

É o próprio progresso da ciência que trata de descartar a tese teológica e metafísica da fixidez das formas e da precedência do espírito sobre a matéria – no começo não era o verbo, no começo era a natureza, e a evolução da natureza produziu eventualmente seres capazes de pensar e de formular teorias sobre a própria natureza. Essa história pode ser traçada dos processos de auto -organização físico- químicos à origem de sistemas autoprodutores e autoreparadores, da evolução por seleção natural de sistemas biológicos unicelulares até animais que utilizam uma rede nervosa para coordenar comportamentos no tempo e espaço, até a conform ação de uma espécie social que utiliza símbolos para coordenar a conduta de seus membros em atividades coletivas, dando lugar a um nicho simbólico que se modifica cumulativamente por evolução cultural. Para o materialismo dialético, “o crescimento da inteira espécie humana pode e deve ser considerado como um processo natural, sob dois aspectos: um biológico, outro social” (LEFEBVRE, 1975, p. 63). O social está incluído no natural.

O biólogo marxista J. B. S. Haldane (1940) afirma que o trabalho de Darwin provavelmente reforçou as intuições materialistas e realistas de Marx e Engels183. É fato de que as ideias darwinianas tiveram um forte impacto tanto em Marx quando em Engels, e que o materialismo por eles avançado era um materialismo decididamente evolutivo. Marx saudará Darwin como o descobridor do caráter fundamentalmente histórico da vida orgânica, indo ao encontro da tese, já defendida

182“A matéria orgânica, viva, bem como o organismo humano são os produtos de uma longa evolução. A concepção materialista do universo, nos últimos 150 anos, fez progresso que forçam o seu exame e mesmo a sua aceitação. A teoria da evolução – esboçada por Lucrécio, Diderot e Buffon, formulada por Lamarck, tornada científica por Darwin [...] – veio apoiar um pressentimento muito antigo. A espécie humana saiu da natureza. Os seres orgânicos não constituem uma coleção de tipos fixos”. (LEFBVRE, 1975, p. 62).

183 “Darwin´s work left Marx with no doubt that nature was in existence before mind.” (HALDANE, 1940).

pelo próprio Marx na Ideologia Alemão, de que a única ciência é a ciência da história - de que é possível unificar ciências naturais e ciências humanas por meio da compreensão do caráter histórico dos objetos tratadas por ambas e o reconhecimento de que há uma continuidade histórica entre o espiritual e o natural.

A falta de reconhecimento dessa continuidade era de fato o as pecto que Engels encontrava como o mais problemático na filosofia de Hegel. Sua própria tentativa de uma Dialética da Natureza pode ser compreendida como uma releitura darwinizante da filosofia da natureza hegeliana. 184

Apesar de ser frequentemente acusado de determinista e teleológico (no sentido quase teológico do termo), cabe lembrar que o materialismo dialético, fiel à herança darwiniana, não é um a teleologia do incondicionado, ou uma “teleologia do necessário”, para usar o termo de Johnston (2013, p. 110). Não há um final externo que oriente o movimento, nem um ponto de chegada predes tinado; a evolução orgânica não tem objetivos, não tem visão de futuro nem persegue metas fixas. Ao contrário, aceitar o caráter contingente das fontes de mudança, sem um e spírito que dirija ou supervisione o processo de fora, significa também aceitar as consequências de imprevisibilidade e diversidade de trajetórias de desenvolvimento possíveis.

É o próprio Engels (1979, p.180) que reconhece e destaca o uso que a teoria darwiana faz da contigência, isso é, que Darwin “apoia-se na mais ampla base de azar que se possa imaginar.” É nas variações aleatórias que surgem nos indivíduos, devido à falibilidade do mecanismo hereditário (como todo mecanismo material, nunca imune a erros e distorções), que se baseia o processo de transformação gradual das formas vivas:

São exatamente as infinitas, acidentais diferenças existentes entre os indivíduos, dentro de cada uma das espécies [...] as que obrigam a discutir

184 Como nota Johnston (2013, p. 110): In Anti-Dühring, Engels identifies Hegel´s pre -Darwinian categorical rejection of notions of evolution qua natural history as the major flaw, the Achilles´heel, of his Naturphilosophie . For both Marx and Engels, Darwinian evolutionary theory is a scientific event shattering for good the idea of nature as ahistorical, as nothing more than an endless, eternal repetition of the same recurring cycles (an idea arguably held to by Hegel in hi s Philosophy of Nature). Darwin´s historicization of nature, then so new and open to future potential paths of advance, itself entices Marx and Engels to imagine the possibility of a single systematic unification of the human and the natural sciences on a solidly materialist basis (as opposed to Hegel´s allegedly idealist systematization). Moreover, Engels points to Darwin as providing the most convincing evidence of all for the thesis that nature in itself is objectively dialectical. He also observes that Marxist dialectics in general – this would include its Naturdialektik – is not a teleology of the necessary (just as Darwinian evolution is contingent and non -teleological).”

as bases anteriores de toda a regularidade em biologia, o conceito de espécie na sua anterior rigidez e invariabilidade metafísica. (ENGELS, 1979, p.180).

Linhas “duras e fixas”, conclui Engels (1979), são incompatíveis com a teoria da evolução. Também as espécies biológicas estão incluídas no incessante fluxo de formas naturais, um dos resultados do qual foi o surgimento, por azar, da espécie humana, sem que esse fosse consequência de qualquer necessidade metafísica. O ser humano, e assim todo o domínio do espiritual, é fruto de uma história natural que não tinha por finalidade seu aparecimento.

Compreender a gênese da espécie humana é compreender que não estamos “situados fora da natureza”, “mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, o nosso sangue, o nosso cérebro”, diz Engels. E tanto mais a ciência seja capaz de explicar e esclarecer essa pertença

tanto mais os homens se sentirão unificados com a natureza e tanto mais terão a consciência disso, tornando -se cada vez mais impossível sustentar essa noção absurda e antinatural que estabelece a oposição entre espírito e matéria, entre o homem e a Natureza, entre alma e corpo. (ENGELS, 1979, p.224).

Essas afirmações se encontram em um manuscrito inacabado no qual Engels trata diretamente do problema da hominização, sua te ntativa de combinar Darwin com a dialética para dar conta da evolução das características tipicamente humanas por meio do trabalho e da cooperação social . 185

A teoria de Engels da evolução humana vale a pena ser revisitada porque possui dois elementos interessantes: primeiro, é uma teoria da coevolução dos seres humanos com seus produtos e atividades – as sociedades de hominídeos criam determinadas necessidades (de produção de artefatos, por exemplo), as quais precisam subsequentemente se adaptar. Assim, acaba por lidar diretamente com o que chamamos de “deslizamento funcional” (a ser tratado mais pormenorizadamente no próximo capítulo): uma determinada estrutura biológica, como a mão (no caso analisado por Engels), pode desempenhar diversas potenciais funçõe s, e, de acordo com a interação do organismo com o seu meio, antigas funções podem ser

185

A “Humanização do Macaco pelo Trabalho”, afirma Johnston (2013, p. 117), é “the closest Engels comes to supplying Marx’s historical materialism with its required dialectical -but-naturalistic

abandonadas tornando possível que a mesma estrutura seja cooptada para outros usos, passando assim a estar exposta a outras (novas) pressões seletivas. A ideia de