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A vida é um conceito central para Hegel. Esse fato transparece ao longo de todo o seu sistema. Nosso esforço se concentrou no sentido de dissipar certos mal -

149 “De alguma maneira essa hierarquia de causalidade eficiente tem que dobrar -se sobre si mesmo, precisa fechar, precisa se tornar circular.”

entendidos quanto à filosofia hegeliana. Em primeiro lugar, não é verdade que esteja unicamente preocupada com processos sociais. Encontramos em Hegel uma filosofia da vida profunda e rica, que lança importante luz sobre o estudo dos sistemas vivos, inclusive com algumas lições surpreendentemente atuais, ainda por serem absorvidas. Seus mais importantes princípios apenas recentemente começaram a ser incorporados às ciências biológicas, a partir de teorias relacionais e não -reducionistas como as de Varela ou Rosen.

O conceito de vida de Hegel se aproxima dessas formulações contemporâneas por enfatizar a ausência de separação entre produtor e produto e o caráter circular da organização vital. Os seres vivos são sistemas para os quais o ser e o fazer se confundem. No organismo, cada membro é alternadamente meio e fim, e se conserva por meio dos outros – na causalidade recíproca dos membros a totalidade se reproduz. Esse é o movimento de retorno a si, que dá ao vivente a forma reflexiva da circularidade (em termos hegelianos: a “boa infinitude” da auto-referência). Como enfatizará Hegel, é o princípio de auto-determinação, o dobrar-se sobre si da cadeia causal que evita um regresso ao infinito, que distingue o mecanismo do organismo.

O organismo, no entanto, não é pura infinitude, pois sua real ização material se dá em condições precárias: o vivente necessita de material externo para alimentar seu processo. A natureza exterior é a condição extrínseca de sua autonomia, que é, portanto, sempre uma autonomia dependente. A auto -determinação só pode se realizar materialmente por meio da relação com o outro. O vivente, ao mesmo tempo que é uma totalidade, é também incompleto, marcado por uma falta constitutiva ineliminável. Desse modo, a continuação do processo real do indivíduo exige a relação prática com a natureza exterior. O vivente se lança sobre o mundo e converte a matéria exterior em si mesmo, no que Hegel chama de atividade idealizadora prática. Por isso Hegel insiste repetidas vezes que o idealismo (objetivo) começa já com a vida: a assimilação é a conversão da exterioridade na unidade autocêntrica.

Não por acaso, esse é também, para Hegel, o modelo do conhecimento. Conhecer é assimilar algo inicialmente estranho à unidade da Razão. Por isso a vida é a primeira idealidade da natureza, e o indiví duo orgânico a primeira forma do sujeito – a forma básica do Si. A teoria da vida de Hegel tem consequências, portanto, também para sua epistemologia. O verdadeiro conhecimento está sob a

forma de sistema, na coerência de uma totalidade de momentos correla cionados e mutuamente determinados.

A contra-posição entre o mero agregado e o propriamente orgânico perpassará toda a filosofia hegeliana. Enfatizamos, no entanto, que simplesmente não é o caso que Hegel seja um holista extremado, no sentido de desprezar os métodos analíticos na investigação da natureza, mesmo da natureza orgânica. Para Hegel é preciso passar pelo separado para produzir uma teoria concreta do real . O momento da divisão é incontornável, embora também insuficiente . É necessário analisar o todo, compreender as partes e suas relações, mas sempre mantendo em mente que essas partes existem no contexto de um todo. Uma posição que apenas repete que o todo é maior que as partes (que não saí da totalidade imediata, isso é, que não passa pelo Entendimento), é mero misticismo, e não ciência. A dialética entre Entendimento e Razão – produzir partes e pensar relações, ou dividir o todo imediato e recuperar um todo conceitual – forma o cerne da cientificidade do pensamento hegeliano.

Hegel certamente não é um idealista também se isso significar crença no vitalismo: a vida não é uma propriedade ou substância, mas um processo relacional. O que torna um sistema vivo não é qualquer componente material ou imaterial, mas sua organização circular. A morte ocorre não quando uma alma imaterial abandona o corpo, mas quando a estrutura não é mais capaz de pôr -a-si-mesma e perde sua unidade.

A vida ocorre em vários níveis organizacionais distintos, e, portanto, seres vivos podem entrar como elementos de um ciclo de vid a mais amplo. Dentro desse conceito de vida expandido destaca-se: o organismo singular, a consciência e a sociedade. São diferentes formas do Si, que, embora com suas peculiaridades próprias, compartilham um mesmo padrão estrutural, na medida em que são ma rcados por uma determinação circular. O princípio da auto -determinação, embora ausente em sistemas mecânicos, estará presente em toda nova instância de um Si.

Certamente, na forma mais baixa da vida, do organismo vivo singular, falta ainda que a autofinalidade seja reflexivamente posta, mas a reflexividade simples, reflexividades das partes uma nas outras que mantém o todo unido, já está aí presente. Não é de se espantar, portanto, que o mesmo problema da dialética entre a parte e o todo apareça nas discussões a respeito de todas as formas do para-si (ou seja, todos aqueles fenômenos que carregam as determinações fundamentais da vida).

A consideração do organismo vivo como um sistema é o conceito fundamental ao qual as ciências da vida não podem se furtar, nem mesmo em nome de um saber analítico e criterioso. O que caracteriza o vivo não é suas partes (ou a composição e constituição delas), mas o fato de que essas partes se relacionam em uma organização específica – de uma maneira determinada e necessária, de acordo com seu conceito. O que define a vida é a matéria, mas a forma. Entende-se a partir daí a rejeição ao materialismo reducionista.

Como se sabe, Hegel exerceu uma influência considerável sobre Marx e Engels, que absorveram porções significativas de seu pensamento dialético trazenndo-as para um quadro geral materialista. Como veremos mais adiante, essa combinação de Hegel com materialismo exerceu, em particular no meio do século XX, considerável influência intelectual, especialmente sobre aqueles pesquisadores que não estavam satisfeitos com a dicotomia entre vitalismo e reducionismo e que gostariam de dispensar a metáfora da máquina sem dispensar o naturalismo junto. Os cientistas que embarcaram no projeto do materialismo dialético, e o assumiram conscientemente como programa de pesquisa, ao tentarem sintetizar, na prática científica, os procedimentos analíticos do Entendimento com uma Razão de pretensões sistêmicas acabavam por ser criticados de ambos os lados: os idealistas os chamavam de mecanicistas e os materialistas os chamavam de holistas obscurantistas. O relato a seguir é particularmente ilustrativo:

O Dr. Haldane considerava -se um organicista, o que implicava em ser antimecanista e, entretanto, não um vitalista místico; nunca apreendi a fundo o que ele queria realmente dizer. Seja como for, isso acarretou alguns duelos. Quando eu descrevia um experimento que exigia explicação mecanística, ele exclamou: - Mas isso é um não-organismo, meu caro amigo, um não-organismo!150

Haldane falava, claro, a partir da perspectiva de um materialismo dialético. Hegel nos oferece as bases do que pode vir a ser uma concepção dialética de vida compatível com um projeto naturalista. Para isso, no entanto, faltaria ainda adicionar mais um elemento: uma teoria da evolução biológica.

150 Citado em Hull (1975).

4 O EVENTO DARWIN

“Origem do homem agora comprovada. – A metafísica deve florescer. – Quem compreender o babuíno fará mais pela metafísica do que Locke.”

(Charles Darwin) “Doubtless the greatest dissolvent in contemporary thought of old

questions, the greatest precipitant of new methods, new intentions, new problems, is the one effected by the scientific revolution that found its

climax in the ‘Origin of Species’.”

(John Dewey)

A teoria evolutiva joga, e tem que jogar, um papel cen tral em qualquer concepção naturalista de mundo contemporânea. A publicação de “A Origem das Espécies”, por Charles Darwin, é um evento epocal não só no desenvolvimento das ciências naturais, como liberta também uma espécie de “ácido universal”, dissolvendo preconceitos e visões tradicionais arraigadas em praticamente todas as áreas do conhecimento humano. Abre-se então uma das maiores revoluções intelectuais na história do pensamento, ainda em curso, que desbanca paulatinamente o pressuposto da superioridade do fixo, introduzindo um modo de pensamento que, longe de considerar a mudança e a transformação como sinais de defeito ou irrealidade, contrapõe à permanência absoluta uma lógica genética e experimental de aplicabilidade universal.

Se filosofar é fabricar conceitos, é forçoso aceitar que Darwin foi, independente de suas intenções, um dos mais importantes filósofos da modernidade, uma vez que a inovação conceitual que ajudou a deflagrar, longe de se restringir à biologia, tem potencial para transformar n ossa própria ideia de natureza, e, se levarmos a sério a proposição segundo a qual uma filosofia da natureza suficientemente abrangente pode bem servir de ontologia geral, a ideia mesmo de ser enquanto tal. Darwin não dá apenas uma contribuição quantitativ a ao progresso da ciência – sua intervenção teórica altera substancialmente a paisagem intelectual, introduz um novo modo de pensar. E ainda assim, com as notáveis exceções de Dewey, Quine e Dennett, foram poucos os grandes nomes da filosofia contemporânea que assumiram o evento Darwin em toda sua radicalidade e se esforçaram para reinterpretar as velhas problemáticas filosóficas a luz desse novo desenvolvimento teórico.

O objetivo desse capítulo é contribuir para a eliminação dessa defasagem teórica da filosofia acadêmica mostrando como uma concepção geral evolutiva contribui para a revisão, e às vezes até resolução, de velhos problemas metafísicos. Darwin não simboliza o fim da metafísica, pelo contrário: abre a possibilidade de uma metafísica mundana – histórica, contingente, pós-essencialista e monista. Mostramos que Darwin não resolve o problema do design, mas, na verdade, o dissolve. E quando o problema do design é dissolvido muita coisa muda de figura: somos obrigados a repensar a teleologia, a teoria das formas, o estatuto da mudança, a relação entre essência e acidente, e o próprio lugar do ser humano na natureza. Um materialismo comprometido com uma visão evolutiva darwiniana é um materialismo que está preocupado com a gênese histórica das competências biológicas – que, em uma perspectiva monista, incluem também as competências linguísticas, racionais e morais dos sujeitos livres e responsáveis. Essa gênese não é vista sob um prisma de desenrolar progressivo, cujo sentido é a realizção de um fim dado, mas a partir da ideia de uma acumulação de acasos e o empilhamento do que chamamos de “plataformas” (formas de organização que abrem novos espaços de possibilidade). Se o ser humano está conectado à natureza pela evolução das espécies, então é o caso que a moralidade, a racionalidade e a liberdade também evoluíram – é possível traçar em todos esses casos uma história natural. Assim sendo, uma filosofia da natureza que trata da evolução da vida tem obviamente implicações tanto para a filosofia prática quanto para a epistemologia.

Atentos às implicações revolucionárias de uma perspectiva evolutiva, buscaremos descrever, no que segue, como Darwin elaborou originalmente sua teoria da seleção natural e como essa elaboração escapou dos limites da biologia para promover uma inversão generalizada na imagem da escala natural. Sem querer, Darwin subverte um modo arraigado e tradicional de raciocinar: a ideia de que a causa é superior ao efeito, e que o fixo é mais perfeito que o mutável. O advento de uma teoria geral da evolução torna obsoleta, portanto, a concepção de que o verdadeiro real é o que está fora do tempo, fora do processo mundano de corrupção e degradação. Um materialismo evolutivo afirmará justamente o contrário: t udo o que é real está interior da ordem temporal, tudo o que é vivo tem uma história – nada cai do céu. O real passa agora a ser o movimento, o processo contínuo de transformação; o mundo das formas fixas, essências imutáveis, é que o mundo ilusório, abstrato,

uma construção recente de uma espécie animal que passou a habitar um mundo simbólico.