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CAPÍTULO III – ABORDAGEM TEÓRICA

2. Da percepção a Construção Social da Realidade

Para analisar a EBC a partir da percepção, como propõe a abordagem fenomenológica, é relevante dialogar com a concepção de que a realidade é socialmente construída. Assim, damos um salto na direção de construções intersubjetivas e processos de objetivação que se dão em dinâmicas coletivas.

Os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann (2011) tratam, a partir da Sociologia do Conhecimento, do fazer da realidade pela sociedade. Falam de nova Sociologia do Conhecimento porque contrapõe-se a outra, dos anos 1920, constituída na Alemanha em contexto histórico bastante específico (a crise pós-primeira Guerra) e que diz respeito a história dos conhecimentos e dos pensadores. Para eles, a realidade está entendida como os fatos da vida, fenômenos que acontecem independentemente da nossa vontade e a sociedade é o espaço de interação entre indivíduos (há, portanto, diferentes sociedades). Eles defendem que essa nova Sociologia do Conhecimento deve se preocupar com todo o conhecimento produzido (inclusive o senso comum) e não apenas o conhecimento teórico, o que criticam como “intelectualismo” (p. 29). Sendo assim:

a Sociologia do Conhecimento deve acima de tudo ocupar-se com o que os homens “conhecem” como “realidade” em sua vida cotidiana, vida não teórica ou pré-teórica. Em outras palavras, o “conhecimento” do senso comum, e não as “ideias”, deve ser o foco central da Sociologia do Conhecimento. É precisamente este “conhecimento” que constituiu o tecido de significados sem o qual nenhuma sociedade poderia existir (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 29).

Para refletir sobre os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana, Berger e Luckmann apoiam-se na obra do filósofo e sociólogo Alfred Schutz (1899-1959), que também

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desenvolveu uma sociologia do conhecimento tendo a fenomenologia por base. Para eles, os fundamentos do conhecimento cotidiano estão nas relações que se estabelecem entre sujeito(s) e mundo. Entendem que “estar em sociedade significa participar da dialética da sociedade” (BERGER e LUCKMANN, 2011, p. 167, grifo meu). Os processos de exteriorização, objetivação e interiorização acontecem de modo simultâneo em cada indivíduo e no coletivo da sociedade (comparável à relação dialética do corpo/mente/espaço na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty).

Nessa perspectiva, valoriza-se o conhecimento cotidiano, entendendo que “o senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase-científicas sobre a realidade cotidiana” (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 37). E que é a partir deste tipo de conhecimento (e não puramente do proveniente de ideias, abstrações) que se constrói a realidade. Para os autores, o conhecimento do cotidiano está diretamente relacionado com o que o sujeito considera real, e a partir dele são construídas, de fato, as estruturas que sustentam o real. A realidade cotidiana seria organizada a partir de esquemas tipificadores (por exemplo, fulano é francês, negro, homem, bom, etc) que determinam como construímos relações face a face. Em resumo, essas tipificações são contínuas e tornam-se mais complexas ao passarmos de relações face a face para outras mais distantes, mediadas, etc. Qualquer dessas relações intersubjetivas só é possível na medida em que compartilhamos de linguagem, que é o instrumento de objetivação, ou seja, o que torna a dimensão subjetiva de uma pessoa acessível por outros sujeitos. “A linguagem é capaz de ‘tornar presente’ uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do ‘aqui e agora’.” (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 58)

Os processos de objetivação e tipificação resultam na (e da) construção de conhecimento que se dá ao longo da história, de geração em geração, e vai estabelecendo instituições, como são chamados os padrões compartilhados de ações cotidianas nas diversas esferas da vida social. Toda a construção feita por Berger e Luckmann repousa na ideia de que os seres humanos são animais que precisam se desenvolver em sociedade, são o que são por viverem em coletivos, e porque sem essa inter-relação nem mesmo sobreviveríamos aos primeiros meses de vida fora do útero. Os limites biológicos humanos, então, nos tornariam muito diferentes conforme a sociedade em que formos acolhidos ao nascer. Por outro lado, gera efeitos comuns, como o fato de que, para garantir a aprendizagem de geração para geração, é fundamental criar mecanismos de legitimação do conhecimento socialmente construído, ou seja, qualidades para que um ato,

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um processo ou uma ideologia passem a ser aceitáveis e mesmo considerados necessários numa dada sociedade.

O desenvolvimento da institucionalização se dá a partir da socialização, ou seja, da interação entre indivíduos70. Berger e Luckmann dividem os processos de socialização em dois: socialização primária e secundária. Mas é possível pensar em várias etapas de socialização, talvez incontáveis, visto que a socialização secundária por eles descrita carece de estabilidade e é progressiva, realiza-se ao longo da vida do sujeito e por ir fazendo-se, jamais estará completa.

A chamada socialização primária é realizada na infância, e, por meio dela, o sujeito aprende a ser sujeito, aprende a linguagem de sua sociedade e suas estruturas, aprende a fazer parte da sociedade em que está inserido e a participar dela. A socialização primária é bastante determinada pela estrutura social objetiva em que nasceu, como a família, com certa origem étnica, classe social, etc. Contudo, não será integralmente imposta, na medida em que permanecem as idiossincrasias individuais, que dependem, por exemplo, de outros membros da sociedade, fora da família, com quem o sujeito vai aprender a significar o espaço que habita. Aos poucos, as crianças passam a conhecer um mundo básico e a não só identificarem-se com os que as cercam, mas com o “outro generalizado”, ou seja, com toda a sociedade e seus valores.

A formação na consciência do outro generalizado marca uma fase decisiva na socialização. Implica a interiorização da sociedade enquanto tal e da realidade objetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o estabelecimento subjetivo de uma identidade coerente e contínua. A sociedade, a identidade e a realidade cristalizam subjetivamente no mesmo processo de interiorização (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 173).

Berger e Luckmann destacam ainda que, de modo geral, o aprendizado da socialização primária colabora para a manutenção das estruturas sociais, não é questionador do status quo. Uma das razões é a existência de fortes laços afetivos entre a criança e seus familiares. A institucionalização da vida e a constituição de mecanismos de legitimação, portanto, são importantes meios pelos quais as sociedades se estabilizam – e o status quo é mantido. A família, em si (em sociedades como a nossa, por exemplo), deve ser reconhecida como instituição primeira da vida. A objetivação reiterada ao longo da história de gerações chega ao ponto da reificação – quando o sujeito não percebe que ele fez o mundo e pode modificá-lo. A ordem social (segundo dados etnológicos e sociológicos, Cf. BERGER e LUCKMANN, 2011,

70 As teorias de Berger e Luckmann sobre os processos de socialização, conforme explicam, se apoiam no trabalho do filósofo norte-americano George Mead (1863-1931), que contribuiu com a sociologia e a psicologia social no desenvolvimento de um campo que mais tarde seria conhecido como interacionismo simbólico: abordagem que ressalta a importância do indivíduo na construção de símbolos durante as interações entre indivíduos.

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p. 120) é apreendida pelos indivíduos já de modo reificado desde a primeira socialização. Contudo, nem mesmo os processos de socialização primária são definitivos – inclusive porque nem sempre os processos de socialização são completos, há interações diversas, etc.

A “socialização secundária é a interiorização de ‘submundos’ institucionais ou baseados em instituições” (p. 178). É determinada, então, pela divisão do trabalho e distribuição social do conhecimento, entendido aqui como conhecimento especializado. A aquisição da linguagem, fundamental para o trabalho de socialização primária, segue na(s) socialização(ões) posterior(es) na medida em que é necessário novo vocabulário, relacionado à especialização – os jargões profissionais são exemplos de códigos de grupo.

Os mundos apreendidos na socialização secundária são parciais e menos estáveis do que o da primeira socialização, conforme Berger e Luckmann. O processo de interiorização e exteriorização na segunda socialização também depende de alguns aspectos afetivos e normativos, além de um “aparelho legitimador”. A realidade da vida cotidiana mantém-se pelo fato de corporificar-se em rotinas. A criação de um hábito é considerada essência da institucionalização. A convivência, interação entre indivíduos, reafirma continuamente a estrutura básica do cotidiano, a realidade objetiva no geral e a identidade do sujeito. Essas confirmações são feitas a partir do apelo à emoção e também por opiniões cumulativas. As transformações subjetivas relacionam-se tanto a condições conceituais quanto sociais. Um exemplo dado pelos autores torna a ideia mais clara: na conversão religiosa à dada igreja, fulano tem um êxtase religioso (algo da ordem conceitual), mas apenas torna-se realmente convertido mudando a rotina, o que evidencia a necessidade de nova interação social (não por acaso, escrevem, Jesus recomenda que se abandone pai e mãe para segui-lo).

A realidade é, então, socialmente definida a partir das diversas relações construídas pelos sujeitos. As definições são encarnadas, ou seja, indivíduos ou grupos servem como definidores da realidade.

O hábito [entendido como rotinas aprendidas e repetidas pelos indivíduos cumprindo seus papeis na sociedade] e a institucionalização limitam por si mesmos a flexibilidade das ações humanas. As instituições tendem a perdurar, a menos que se tornem ‘problemáticas’ (p. 152-3).

A complexificação do conhecimento na sociedade, e o surgimento de especialistas, faz com que passe a existir um grupo que determina como a vida deve ser – não sem conflitos. O confronto com universos simbólicos distintos implica um problema de poder, a saber, qual das definições da realidade em conflito ficará “fixada” na sociedade. “Quem tem a vara mais comprida tem maior probabilidade de impor suas definições da realidade” (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 143).

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Os peritos em legitimação podem atuar como justificadores teóricos do status quo, mas podem aparecer também como ideólogos revolucionários. (...) [E por isso] a transformação social deve sempre ser compreendida como estando em ação dialética com a “história das ideias” (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 165-6).

Ao retomar a história da comunicação não comercial no Brasil, na linha que vai das emissoras educativas e estatais à EBC, é possível refletir brevemente sobre a sua constituição nos termos da teoria da Construção Social da Realidade. Os leitores, ouvintes e telespectadores dos veículos mais tarde herdados pela EBC, bem como os trabalhadores daquelas empresas, construíram, ao longo de gerações, percepção e conhecimento sobre as emissoras. Paralelamente, também foram construídos como sujeitos, de forma dialética com o mundo que habitam, e com mecanismos de legitimação mais ou menos maduros, que permitiam a existência e permanência dessas instituições de comunicação. A cada mudança institucional houve novas conformações sobre o que são as empresas, e a partir daí a necessidade de novos processos para sua legitimação. Do ponto de vista da Construção Social da Realidade, portanto, a soma das antigas instituições na EBC e sua legitimidade como produtora de comunicação pública não podem ocorrer de forma instantânea. A partir dessa matriz de pensamento, podemos dizer que era preciso tempo de aprendizado entre gerações para a construção e introjeção de novos valores – os da comunicação pública. Esse é mais um aspecto para compreensão das dificuldades ao longo da trajetória da empresa em sua montagem, período que é interrompido a partir do seu desmonte.

Assim como a percepção é afetada, segundo a leitura da fenomenologia, pelo lugar e pelo tempo do corpo no mundo; a construção da realidade também dependerá do espaço e do tempo que ocupam os sujeitos no mundo. Para Berger e Luckmann, como a descrição do processo de socialização primária já apontava, o conhecimento depende das experiências pessoais e também da área de atuação do sujeito. Esse elemento é o dos chamados “papéis sociais”, relevantes na Sociologia do Conhecimento pois a partir deles pode-se entender o funcionamento das instituições.

A análise dos papeis tem particular importância para a Sociologia do Conhecimento porque revela as mediações existentes entre os universos macroscópicos de significação, objetivados por uma sociedade, e os modos pelos quais estes universos são subjetivamente reais para os indivíduos. [Para isso precisamos indagar] os modos pelos quais o indivíduo, em sua atividade social total, se relaciona com a coletividade em questão. Esta pesquisa será necessariamente um exercício de análise de papéis (BERGER E LUCKMANN, 2011, p. 165-6).

No caso da presente pesquisa, cuja opção metodológica para captar a percepção dos funcionários da EBC foi de um recorte restritivo aos jornalistas, é relevante refletir sobre o lugar

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que eles ocupam no mundo como grupo profissional. Para o sociólogo Pierre Bourdieu, (1930- 2002) esse grupo é constituinte e constitui o “campo jornalístico”.

Em linhas gerais, um campo para Bourdieu é um espaço simbólico onde os indivíduos constroem a realidade em sua relação com o ambiente e entre sujeitos. Os campos têm polos de força, notadamente econômico e ideológico, que determinam a existência de relações desiguais em seu interior. Neles, ocorrem lutas para transformar ou conservar o campo de forças. Por meio da estrutura de um campo, os sujeitos constroem, determinam e legitimam representações e interesses compartilhados. Porque fazem parte de um campo, o campo jornalístico, os jornalistas (se) percebem, (se) tipificam e constroem a realidade: a própria, a daqueles que consomem seus produtos e também a realidade da empresa onde trabalham. Nas palavras de Bourdieu:

[Um] ‘campo’ [é] entendido ao mesmo tempo como campo de forças e campo de lutas que visam transformar esse campo de forças. As análises as quais submeti campos tão diferentes como o campo artístico ou o campo religioso, o campo cientifico ou o campo dos partidos políticos, o campo das classes sociais ou o campo do poder, inspiravam-se na intenção de estabelecer as leis gerais dos universos sociais funcionando como campos. E também, claro, as condições econômicas e sociais que devem ser preenchidas para que um universo social possa funcionar como campo, por oposição, de um lado, aos simples agregados amorfos de elementos (indivíduos, instituições, etc.) simplesmente coexistentes e, de outro, aos aparelhos (ou instituições totais), mecanicamente submetidos a uma intenção central (BOURDIEU, 1983, p. 44-5).

Segundo Bourdieu (1983, 1997, 2010), o campo jornalístico, pelas características de seu funcionamento em termos de atração, repulsão e dependência dos polos econômicos e ideológicos dos demais campos, possui uma dinâmica específica no mundo.

3. A relação da percepção dos jornalistas da EBC com os conceitos de habitus/campo