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A relação da percepção dos jornalistas da EBC com os conceitos de habitus/campo

CAPÍTULO III – ABORDAGEM TEÓRICA

3. A relação da percepção dos jornalistas da EBC com os conceitos de habitus/campo

condições disponíveis para a realização da pesquisa, e acabou por influenciar positivamente todo o processo posterior, afinal, resulta a amostra ser composta por um grupo coeso, não apenas pela vinculação ao mesmo espaço de trabalho, mas por ser parte de um campo restrito e com características bastante próprias. Além disso, evidencia a necessidade de reflexão sobre as relações de poder quando se trata da construção social da realidade da EBC.

Na introdução da coletânea de textos Sociologia, de Bourdieu, o sociólogo Renato Ortiz (1983), organizador do livro, faz considerações sobre os três conceitos que assinala como centrais para compreender a lógica do pensamento de Bourdieu: 1) conhecimento praxiológico; 2) campo; 3) habitus. O primeiro dos conceitos é importante para esclarecer uma diferença do pensamento de Bourdieu com relação a outros explorados na presente pesquisa: percepção, a

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partir da fenomenologia, e a Construção Social da Realidade, em Berger e Luckmann (2011). Bourdieu volta a um velho problema filosófico que também Merleau-Ponty e Berger e Luckmann anunciam querer enfrentar: romper a dicotomia entre sujeito e objeto.

Segundo Ortiz, “a praxiologia se distingue da abordagem fenomenológica na medida em que Bourdieu não pretende simplesmente rejeitar o conhecimento objetivista, mas conseguir, uma vez explicitados seus limites, ultrapassá-lo” (1983, p.13). O problema apontado por Bourdieu no objetivismo é que na medida em que os sujeitos constroem uma estrutura social, que está fora deles, temos a sociedade reificada – ou seja, destacada do humano, considerada coisa. Nas palavras de Ortiz, “ao reintroduzir o agente social negligenciado pelo objetivismo, (Bourdieu) não reproduz simplesmente os argumentos desenvolvidos pela escola fenomenológica, mas vai além deles, no sentido de sua superação” (1983, p. 13). A superação é resultado, na praxologia de Bourdieu, da interação que acontece num campo estruturado simbolicamente. Ortiz comenta que, embora o trabalho de Bourdieu se aproxime também de escolas como o interacionismo simbólico (fonte em que bebem Berger e Luckmann), se distingue, mais uma vez, pela ênfase na questão do poder. Um exemplo:

Para Bourdieu, a comunicação se dá enquanto "interação social estruturada", isto é, os agentes da "fala" entram em comunicação num campo onde as posições sociais já se encontram objetivamente estruturadas. O ouvinte não é o "tu" que escuta o "outro" como elemento complementar da interação, mas se defronta com o "outro" numa relação de poder que reproduz

a distribuição desigual de poderes agenciados ao nível da sociedade global (ORTIZ, 1983, p. 13, grifos meus).

Ainda segundo Ortiz,

o campo [para Bourdieu] se define como locus onde se trava uma luta concorrencial entre os

atores em torno de interesse específicos que caracterizam a área em questão. Por exemplo, o campo da ciência se evidencia pelo embate em torno da autoridade científica. (1983, p. 19, grifos meus)

Ou seja, a ação dos sujeitos sofre uma série de condicionamentos pela circunstância de disputa de poder no campo em que estão inseridos. Um campo não é o resultado das ações individuais dos agentes, apesar de a interação ocorrer no campo diante de interesses individuais, relacionados, inclusive, com a necessidade de ampliar seu capital social para tornar-se mais influente, ter mais poder, dentro do campo. Sendo um lugar de dominantes e dominados, num campo os primeiros lançam mão do que podem para manter o status quo, utilizando especialmente processos de legitimação, enquanto os demais manifestam inconformismo para formar uma nova “crença” que substitua a anterior. Esse tipo de estratégia se desenvolve sem que se contestem fundamentalmente os princípios que regem a estruturação do campo - trata- se da luta pela troca de postos de poder, e não pela extinção das lógicas que norteiam o campo (ORTIZ, 1983, p. 23).

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O jornalismo, para Bourdieu (1997), forma um campo com lógicas e regras particulares, cuja dinâmica tem grande influência sobre outros campos, como o da política. Segundo ele,

O campo jornalístico impõe sobre os diferentes campos de produção cultural um conjunto de efeitos que estão ligados, em sua forma e sua eficácia, à sua estrutura própria, isto é, à distribuição dos diferentes jornais e jornalistas segundo sua autonomia com relação às forças externas, as do mercado de leitores e as do mercado de anunciantes (BOURDIEU, 1997, p. 102). Portanto, o caráter comercial dos veículos é importante na formação de um campo jornalístico, como descrito pelo sociólogo – a existência de empresas públicas e estatais, não modifica o fato de que o jornalismo, desde a origem do campo com a emergência dos jornais no século XIX, relaciona-se com negócios privados, com maior ou menor regulação e restrições impostas pela atuação do Estado. O poder econômico pressiona todo o campo da comunicação – de maneiras diversas –, o que inclui empresas de radiodifusão públicas como a EBC (por exemplo, o campo econômico pressiona para que não sejam estruturadas em países como o Brasil, ou busca a quebra de monopólios da radiodifusão pública, como em vários países da Europa)71.

Um campo tem autonomia relativa com relação a outros, bem como os agentes dentro de um campo devem ter relativa autonomia em relação aos seus pares. Para Bourdieu (1997), a autonomia de um órgão de imprensa se mede pela origem de sua receita – quão rico é, quem o patrocina, se os recursos vêm apenas das empresas ou se o Estado também é anunciante, ou se financia os veículos diretamente via Tesouro, etc. Já a autonomia de um jornalista em particular depende de sua posição na empresa jornalística, como sua notoriedade, o quão querido é do público, a chance de ser demitido caso vá de encontro aos interesses da empresa, etc. bem como da posição da empresa com relação aos concorrentes.

Bourdieu também considera que a influência do campo jornalístico sobre os demais depende das relações com o polo de poder econômico dos campos (BOURDIEU, 1997, p. 104). O autor pondera que o reforço da influência do jornalismo nos demais campos tende a crescer conforme a fragilidade dos outros campos, no sentido de terem pouco capital específico em suas áreas, por exemplo, capital científico ou literário, etc. É como cresce, por exemplo, a importância de listas de best-sellers, publicadas pelos veículos jornalísticos, nas decisões do campo cultural.

71 O exemplo pode se estender de variadas maneiras e por vários tipos de veículos. No caso brasileiro e latino- americano, um exemplo são as rádios comunitárias e o lobby para que permaneçam pequenas e pobres, que funciona desde a instituição de legislações como a Lei 9612/1988 do Brasil, que basicamente inviabiliza a existência das emissoras, seja pela míngua de patrocínio ou pelas restrições à potência, até a criminalização das emissoras e dos radialistas, tanto por via de processos quanto pelas campanhas de deslegitimação do tipo ‘rádio comunitária derruba avião’. Estes são modos de marginalizar as práticas de comunicação e jornalismo desses emissores dentro do campo.

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O pesquisador Nelson Traquina (2018a), ao investigar os jornalistas como um grupo com interesses determinados pela produção da notícia, o define como construção social realizada por esses profissionais e determinada por uma cultura profissional atrelada ao campo. Traquina traduz campo como um universo relativamente autônomo de relações sociais que implica a existência de um “prêmio” (no caso, a notícia) disputado por agentes sociais diversos e um grupo especializado em produzir esse prêmio, no caso, os jornalistas profissionais, que se colocam como autoridade no tema de construir notícias (diz-se que o jornalista conhece notícia pelo faro) (p.19).

Localizar como e quando o jornalismo passa a se constituir como um campo nos ajuda a compreender o terceiro conceito central no pensamento de Bourdieu, conforme indicado por Ortiz (1983): o habitus. O campo jornalístico passa a existir no século XIX com a emergência da imprensa como mass media, resultado do desenvolvimento do capitalismo e de uma série de consequências como a industrialização, a urbanização e a alfabetização.

As notícias tornaram-se simultaneamente um gênero e um serviço, o jornalismo tornou-se um negócio e um elo vital na teoria democrática; e os jornalistas ficaram empenhados em um processo de profissionalização que procurava maior autonomia e estatuto social (TRAQUINA, 2018a, p. 20).

Como dito, profissionalizar-se é um processo de socialização (secundária, retomando a teoria da Construção Social da Realidade, em Berger e Luckmann), e tem como resultado esperado um status de autonomia e autoridade com relação a outros grupos/campos. Para Bourdieu, o processo de socialização dos profissionais que vão compor um campo é a construção e introjeção do habitus, entendido como

um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações e torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, graças à transferência analógica de esquemas adquiridos numa prática anterior (BOURDIEU 1972/1977 p. 261 apud WACQUANT, 2007, p.9).

O sociólogo Löic Wacquant (2007) defende que o habitus não é a réplica de uma estrutura social dentro de cada indivíduo, mas “gravações” em camadas construídas, de modo irregular, ao longo dos anos. Assim, o habitus ajuda a explicar porque pessoas de contextos diversos podem ter concepções de mundo parecidas e pessoas de mesma origem podem ter modos de ver o mundo diversos. Portanto, não é coerente e unificado. Habitus pode ter a ver com mudança, tanto quanto com estabilidade e perpetuação – dependerá também da posição do sujeito em seu campo.

A professora da Faculdade de Educação da USP Maria da Graça Jacintho Setton (2002) define o habitus como

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um instrumento conceitual que me auxilia pensar a relação, a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade dos sujeitos. (...) Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente (p. 61).

Ao analisar como a constituição do habitus passa, na sociedade contemporânea, também pela assimilação de conteúdos da mídia – assim como pela família e escola –, Setton lembra que, para Bourdieu, o habitus é durável no tempo (portanto, ajuda a perpetuar comportamentos na sociedade), mas não é eterno pois muda conforme o sujeito se relaciona com novas percepções do mundo em seu redor.

Pensar a relação entre indivíduo e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. (...) deve ser visto como um conjunto de esquemas de percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam (BOURDIEU, 1992, p. 101 apud SETTON, 2002, p. 63).

Não é demais frisar a relação de interdependência entre os conceitos de habitus e campo. Trata-se de uma relação dialética entre sujeito (habitus individual) e sociedade (estrutura do campo social em que está o sujeito). Assim, o conceito de habitus valoriza o sujeito como produto da história, como figura ativa que tanto introjeta a organização do campo social como o modifica, por suas ações. Habitus aponta para comportamentos relativamente (mas não obrigatoriamente) homogêneos graças a sua relação com o conceito de campo. Por exemplo, pessoas do campo jornalístico, como os trabalhadores que ouvimos na EBC, por compartilharem uma cultura profissional vivem situações semelhantes. Isto gera tendência a pensar e agir de modo semelhante individualmente. Vale sublinhar, de todo modo, que aqui falamos de tendência: retomando, inclusive, a noção de corpo em Merleau-Ponty (1999), é preciso não perder de vista que o sujeito está no mundo, relacionando-se com diversos campos e não apenas vivendo as influências daquele a que se filia como profissional. Também por isso, nem o campo nem o habitus estão estagnados: eles podem mudar na história. O problema é que a dinâmica de sua composição mútua campo/ habitus pode ser um componente a retardar mudanças possíveis.

Wacquant (2007) enumera uma série de pesquisas baseadas no habitus para mostrar que o conceito é útil para investigações empíricas: por serem observáveis, as características do habitus ajudam a entender o campo e, a partir dele, a sociedade.

para Bourdieu a noção [de habitus] é, em primeiro lugar e acima de tudo, um modo estenográfico de designar uma postura de investigação, ao apontar um caminho para escavar as categorias implícitas através das quais as pessoas montam continuadamente o seu mundo vivido, que tem informado pesquisas empíricas em torno da constituição social de agentes competentes numa gama variada de quadros institucionais (WACQUANT, 2007, p. 14).

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Um dos exemplos citados por Wacquant é de uma pesquisa realizada por ele mesmo na qual “dissecou a produção do nexo de competências, categorias e desejos incorporados que compõem o boxe profissional como um ofício corpóreo masculino no gueto negro americano”. A pesquisa mostrou que a construção desse habitus (e de seus esquemas cognitivos e motivacionais) acarretava, além do domínio da técnica por cada pugilista, “a inscrição coletiva na carne de uma ética ocupacional heroica no interior do microcosmo do ginásio de boxe” (2007, p. 15).

Seguindo essas lógicas para compreender as percepções dos jornalistas da EBC sobre a comunicação pública desenvolvida na empresa é preciso, portanto, compreender o habitus dos jornalistas e localizar os profissionais em seu campo, reconhecer que constroem o mundo social (o que inclui a EBC) de modo ativo por meio da incorporação de “modos de fazer” da sua profissão, bem como de outros processos de socialização – inclusive os do ambiente da formação de uma empresa pública de comunicação, com suas peculiaridades. Contudo, não devemos esquecer que esses mesmos jornalistas são também feitos pelo mundo real e pelas disputas de poder e ideológicas nos outros campos em que circulam, não dependendo as mudanças e estabilidades encontradas exclusivamente de vontades individuais. Bourdieu (2010) escreve em resposta à questão “porque é tão importante falar do campo jornalístico e não dos jornalistas?” que, abandonando a lógica da responsabilização individual, podemos por foco na “estrutura do campo jornalístico e os mecanismos que operam por dentro dele” (p. 42).