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Percepção sobre relação entre pautas, fontes e rotinas do trabalho jornalístico e

CAPÍTULO V – CONSTRUÇÃO DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA NA

2. O fazer dos jornalistas na EBC

2.2 Percepção sobre relação entre pautas, fontes e rotinas do trabalho jornalístico e

A maioria (10) dos jornalistas entrevistados disse que percebia apenas excepcionalmente que as pautas, as fontes e as rotinas do trabalho jornalístico eram pensadas considerando-se a cobertura de um veículo de comunicação pública. Nessa resposta, e ao longo das entrevistas, os profissionais elencaram o que consideravam os principais deslizes da empresa, tendo em vista que a EBC faz a gestão de veículos de comunicação pública. A seguir enumero do mais ao menos citado, entre os itens que se repetem com maior frequência:

0 2 4 6 8 10 12

há liberdade para propor não há liberdade/ não me sinto estimulado a

propor

não menciona/ não respondeu

0 1 2 3 4 5 6 7 8

não menciona/não respondeu isso muda conforme a função que ocupo no

veículo

sim, mas resultado ñ corresponde à sugestão sim, mas não tenho mais vontade depende do veículo

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Gráfico 5 – Problemas elencados pelos trabalhadores

Fonte: elaboração própria.

Nesse ponto, retomo Rothberg (2011), que explica sobre a prática da BBC, conforme tratado anteriormente. Em resumo, o autor ressalta que os mecanismos para gerar pluralidade são o centro da estratégia para diferenciar-se das emissoras comerciais e para cumprir seus propósitos como empresa de radiodifusão pública. Para a rede de emissoras do Reino Unido, ainda segundo Rothberg, não há um interesse público monopolizado, mas diversos grupos e setores sociais com diferentes interesses que merecem ser considerados pela mídia pública. Para isso, é preciso tempo para que estejam representados – no caso britânico não se espera representação de grupos e pontos de vista em cada unidade de programação, como em uma só reportagem, mas uma construção do conjunto do conteúdo exibido.

Uma avaliação dos eventuais deslizes da EBC não é tema desta pesquisa. Por isso, não foram diretamente tratados nas entrevistas. Também não é parte do nosso escopo uma análise sobre os formatos da programação. Mas, a partir do diálogo com Rothberg (2011), entendo que esses poderiam ser caminhos importantes para compreender os limites e possibilidades do trabalho desempenhado pelos jornalistas na EBC. Ao acompanhar a programação de modo não- sistemático noto, assim como os entrevistados que, de modo geral, os veículos da EBC não parecem ter formatos diferentes daqueles observados em outros veículos privados, que são os mais “comuns” no país, e aos quais em geral o público brasileiro está habituado. A EBC contratou universidades para realizarem avaliações sistemáticas de seus conteúdos no passado e a questão do tempo das reportagens é abordada nas duas dessas pesquisas consultadas por mim. Na que se refere aos principais jornais da TV Brasil (Repórter Brasil Manhã e Noite e Repórter Visual) para o período 2010-2011, realizado pela equipe da professora Iluska Coutinho (2011), da UFJF, é possível depreender que o tempo médio é de 2'50, tanto para stand ups com entrevistas (cujo uso excessivo é criticado), quanto para outros materiais, como VTs.

0 2 4 6 8 10 12

EBC não deveria se restringir/ dar tanta importância a fontes oficiais

falta ouvir fontes mais diversas EBC não deveria dedicar-se tanto a hardnews atuamos nos moldes dos veículos privados

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Na comparação com o tempo de duração das reportagens da BBC analisadas por Rothberg (2011), o tempo para cada unidade, como uma reportagem, é, então, curto. As do Reino Unido (que ele analisou) tinham em média 8min ou 20min, conforme o programa em que eram exibidas. Na pesquisa sobre as rádios de Brasília para o período 2013-2015, coordenada pelos professores Fernando Paulino e Liziane Guazina (2015), da UNB, que avaliou 2.133 conteúdos, a conclusão é de forte tendência para a produção de conteúdos com curta duração. 51.14% da amostra era de peças com menos de um minuto de duração. Cf. COUTINHO, 2011 e GUAZINA E PAULINO, 2015. Consideradas as limitações impostas pelos formatos, parece escassa a possibilidade de ter rotinas distintas, bem como resultados distintos em termos de enfoques mais aprofundados e maior variedade de fontes, na comparação com os demais veículos, entendendo que para tal seria preciso tempo de produção e para exibição.

Minha percepção é também a de que a aversão dos entrevistados ao que chamam de “hardnews”, conforme o jargão profissional, relaciona-se à questão do tempo, na medida em que este tipo de conteúdo exige resposta imediata ao desenrolar dos fatos, inibindo, especialmente no caso de redações reduzidas, a chance de aprofundamento de conteúdos, o que incluiria a busca de fontes variadas. Ou seja, a crítica ao formato perfaz também uma crítica a algo próprio da cultura jornalística, descrito por Traquina (2018a), Travancas (1993) e outros autores101, conforme tratei anteriormente: a pressa em dar a notícia em primeira mão. Importante informar que utilizaremos o termo empregado pelos jornalistas com este sentido que eles dão, o do jargão profissional, tratando, então, como hardnews as notícias do dia a dia da política e da economia, que são veiculadas de forma rápida e sem maiores aprofundamentos.

101 Em "Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade", Sylvia Moretzsohn (2002) trata dos processos de produção da notícia submetidas à lógica do "tempo real" do mundo globalizado. A autora trata da contradição inerente à promessa de "dar a verdade em primeira mão", do aparente irracionalismo que toma conta do processo de produção noticiosa diante da crescente competição para chegar na frente da concorrência e dos efeitos da imposição do tempo real sobre a rotina dos jornalistas. A partir desse diagnóstico, procura apontar caminhos para um modo de produzir notícias que rompa com a lógica do fetiche da velocidade. Admitindo que sempre haverá a “hora do fechamento”, aponta que os caminhos para práticas novas no jornalismo podem partir da intenção de ser menos “mistificador” - também no sentido do abandono de outros mitos de sustentação da atividade, como a objetividade e imparcialidade. Moretzsohn sugere uma prática na qual a reportagem deixa claro o ponto de vista de sua enunciação e a de suas fontes, e sugere que o jornalismo precisaria ser “menos conclusivo, menos definitivo; precisaria expor as limitações do trabalho de apuração e aceitar a dúvida como componente deste trabalho. Não a dúvida sobre o fato objetivo – ‘a Alemanha invadiu a Bélgica em 1914’, mas sobre interpretações sacralizadas desse fato, sobre os consensos estabelecidos. Em suma, a dúvida que permite outras interpretações, que está na origem de toda possibilidade de transformação social.” (p.180) Ao final, aponta como resposta à questão sobre a existência de um mercado para um jornalismo como esse que, sim, possivelmente haveria mercado. Essa afirmação é possível diante das crescentes críticas a atividade jornalística já no período daquela pesquisa, realizada há duas décadas. Seria interessante refletir sobre tais argumentos no contexto do jornalismo produzido numa empresa pública hoje, especialmente diante dos depoimentos de seus jornalistas sobre a crescente imposição das rotinas aceleradas de coberturas baseadas em hardnews, sem tempo para aprofundamentos. Tal reflexão se faz especialmente interessante na medida em que, na empresa pública, está posta a perenidade dos fatos como matéria prima das notícias, mas não os desígnios do mercado.

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Portanto, no contexto desse trabalho, hardnews não se contrapõe ao softnews, conteúdos de entretenimento, muitas vezes sobre a vida de pessoas famosas. Como utilizado pelos jornalistas da EBC, poderíamos dizer que hardnews está contraposto a reportagens aprofundadas. A opção por esse formato, o do hardnews, com o sentido de notícias rápidas, também ajudaria a empurrar a cobertura para o acompanhamento e abertura de espaços de fala das fontes oficiais, que, como nos explicam Traquina (2018) e Wolf (2008), costumam ter melhor estrutura para atender rapidamente aos tempos da imprensa. No caso da EBC, o uso sistemático – especialmente se protocolar – das fontes oficiais gera um risco duplo: não apenas de perda de qualidade do conteúdo como de deslegitimação dos veículos como “chapa-branca”, por demonstrar adesão ao governo de plantão. Uma das entrevistadas abordou o tema a partir do que criticou como uma “cultura” da mídia brasileira:

... é mais fácil, você ouve três pessoas, uma da oposição e uma do governo, que é um jornalismo declaratório que contamina toda a imprensa hoje. Sem aferições muito precisas, acho que é substancial [aqui na EBC esse] jornalismo declaratório. É uma cultura da empresa, uma orientação das chefias, que constroem a pauta afinal de contas. Mas também, em certa parte, é cultura dos funcionários, é o que a gente está acostumado na mídia e a gente não está estimulado a quebrar esses padrões, experimentar linguagem ou tema (Entrevista 3).

Nos termos de Bourdieu (2010) seria possível apontar aqui, portanto, uma manutenção de habitus construídos desde a formação dos jornalistas da EBC, muitas vezes feita pensando- se em rotinas de veículos comerciais.

Entre nossos entrevistados, oito mencionaram que a realidade vem piorando no período de desmonte da EBC. Ou seja, disseram que cada vez menos percebiam a preocupação com as especificidades dos veículos em termos da produção de comunicação pública.

[o jornalismo que produzimos na EBC] me parece cada vez mais parecido com as práticas diárias, com a correria do fechamento, de estar ali no quente da notícia, com pressa. Já tivemos momentos que possibilitaram uma contextualização um pouco maior. Isso se perdeu um pouco nos últimos dois anos (Entrevista 5).

... antes, tinha sempre alguém temeroso, mas sempre aceitava (pautas) desde que você desse os lados mais amplos, ouvisse o governo. Depois você percebe que passou a não ser dado a licença pra fazer. Muito ligado a manifestação, movimentos sociais, que a gente conseguia dar, passaram a não virarem pauta porque achavam que os atores não eram importantes. Você repercutir uma notícia com entidade da sociedade civil, alguma ação do governo, passou a ser menos praxe (Entrevista 6).

A escolha de pautas e fontes já houve diferenças grandes. A gente procurava muito as universidades, valorizar a diversidade, os temas eram muito de questões de cidadania, consciência crítica mesmo. Já foi muito diferenciado. Hoje em dia é diferente, mas não no sentido de ser comunicação pública, mas por aproximar-se de um chapa-branquismo mesmo (Entrevista 9).

Alguns trabalhadores ponderaram que, eventualmente, a preocupação com a comunicação pública seria deixada de lado institucionalmente, mas realizada pela insistência

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dos jornalistas. Em meio às relações conflituosas com as chefias, como dito, os jornalistas buscam “brechas” para atuar sem submeter-se tanto às hierarquias, agindo conforme consciência. Da mesma forma, alguns dizem lançar mão de negociações e barganhas com as chefias imediatas no sentido de garantir a realização, mesmo que parcial, do material em que acreditam.

Três jornalistas nos disseram que sim, pautas, fontes e rotinas do trabalho jornalístico são pensadas considerando-se a natureza pública do veículo. Mas não deixam claro de que forma. Contudo, dois desses profissionais também fizeram ponderações sobre problemas que afastariam a rotina de produção do fazer comunicação pública (o que soa como certa contradição): um criticou atuação como veículo privado, o outro diz que não deveria dedicar- se a ouvir tanto fontes oficiais e fazer hardnews. Assim, contabilizamos de acordo com suas respostas diretas, mas entendemos que talvez pudessem fazer parte do grupo majoritário, para quem “excepcionalmente” o conteúdo é pensado para veículos públicos.

Um dos entrevistados foi categórico ao dizer que não percebe a preocupação de ações diferenciadas considerando-se veículo de comunicação pública. Essa pessoa opinou que a EBC atua nos moldes de veículos privados, dedicando-se demasiadamente às notícias de consumo rápido e sem ouvir fontes diversas.

Um entrevistado não falou sobre o tema.

Gráfico 6 – Pautas, fontes e rotinas são pensadas para comunicação pública?

Fonte: elaboração própria

Um último registro quanto a diferença de pautas, fontes e rotinas considerando-se o caráter dos veículos diz respeito ao apelo ao sensacionalismo. Todos os profissionais que lidam

0 2 4 6 8 10 12

não tem relação não menciona / não respondeu Sim, tem relação menção à piora do quadro com desmonte da EBC às vezes preocupa-se em ser diferente pq é veículo

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com imagem que entrevistamos102 fazem comentários semelhantes, apontando o que percebem como um importante diferencial dos veículos da EBC na comparação com os comerciais. Aqui esclareço que as nossas fontes estão evocando uma noção de jornalismo sensacionalista baseada no senso comum, vinculando o termo ao tipo de comunicação que é realizada pelos jornais e programas de rádio e TV populares, que usam e abusam de estratégias que amplificam sensações, por meio de exageiros, imagens violentas e até mentiras. Agrimani Sobrinho (1995) define o ingresso no terreno sensacionalista pela linguagem que "preconiza um envolvimento do sujeito com objeto. O sensacionalismo não admite distanciamento e explora o conteúdo emocional da notícia" (p. 152). A visão desses jornalistas da EBC pode ser interpretado num campo de compreensão do sensacionalismo que trás consigo certo preconceito com a mídia popular e uma noção elitista de cultura, conforme Amaral (2005) - e muitas vezes se esquece de que notícias sensacionalistas também são publicadas pela imprensa considerada como de referência, "sempre que há interesse do publisher em dar conotação 'emocional' a um acontecimento." (AGRIMANI SOBRINHO, 1995, p. 152) Assim, entendo que as fontes da presente pesquisa na EBC identificam como “sensacionalismo” a cobertura cotidiana dos casos de polícia em veículos e programas populares e afirmam que tal formato não faz parte de modo algum de seu trabalho na EBC, o que foi avaliado de forma positiva no sentido da realização da comunicação pública.

Ah, tem diferença que nós não fazemos, por exemplo, sensacionalismo, violência, né? Eu acho isso fundamental, superimportante. Enquanto tem emissoras que divulga muito sensacionalismo. Já EBC não tem nada disso (Entrevista 11).

Tem uma grande diferença. É como se fosse um viés mais humanizado das pautas. A gente não tem pernas pras coisas muito pontuais, notícias na linha do sensacionalismo, assassinatos, acidentes nas estradas, essas coisas (Entrevista 13).