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CAPÍTULO III – ABORDAGEM TEÓRICA

4. Os jornalistas como tribo que produz notícia

A formação do campo do jornalismo passa pela profissionalização, o que implica a formação de uma cultura profissional, ou ideologia profissional, ou “‘sistema de crenças’ através dos quais os praticantes dão sentido a sua experiência de trabalho” (TRAQUINA, 2018a, p. 22). A profissionalização é aspecto do habitus, resultado da socialização nos cursos de Comunicação Social e também da convivência cotidiana nas redações.

A pesquisa etnográfica da jornalista Isabel Travancas (1993) com 50 profissionais da imprensa carioca aponta que, para os integrantes desse campo, o sentido de seus “sistemas de crenças” (como diria Bourdieu) extrapola as fronteiras de sua experiência de trabalho, sendo uma marca identitária. Travancas realizou entrevistas e acompanhou os jornalistas no trabalho, em festas e em espaços de lazer. Segundo ela, muitos chegam a colocar-se no papel de “eleitos” que devotam a vida de modo distinto (e superior) ao de outros trabalhadores liberais. Sua

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amostra foi dividida por gerações, entendendo que poderia haver diferenças nas respostas conforme o ponto da trajetória profissional do entrevistado. Mas os depoentes, tanto os mais velhos, quanto os recém-chegados ao campo, relatam que sua “identidade social é definida a partir do ser jornalista” (TRAVANCAS, 1993, p. 15). Travancas conclui que

O mundo dos jornalistas72 (...) é a um só tempo amplo e restrito. Amplo, na medida em que não se resume ao local de trabalho, colegas de profissão e família. A cidade, o país e, em muitas ocasiões, o próprio planeta fazem parte da vida de um jornalista, e de maneira marcante. Por outro lado, ele pode ser entendido como restrito na medida em que é a profissão, e tudo a ela ligado, que vai definir a função destes indivíduos na sociedade (1993, p. 101).

Travancas identifica, em resumo, que os jornalistas compartilham “ideologias individualistas”, “postura blasé diante fatos da vida” e a busca constante de alçar postos e notoriedade por meio da profissão, o que resulta em competição entre colegas e visão meritocrática do mundo. Ao mesmo tempo, desejam exercer a função de homem público, preocupado com o funcionamento da sociedade e o bem comum. Muitos entrevistados disseram que escolheram a profissão por acreditarem em seu papel na formação da cidadania por meio da informação, e em “seu poder de transformação da sociedade, de denúncia e crítica” (TRAVANCAS, 1993, p. 108). Ela defende que a carreira significa para os profissionais mais do que uma ocupação, mas um estilo de vida, do qual resultam certas visões específicas do mundo.

Os achados de Travancas estão longe do isolamento. Diversos outros pesquisadores (HYMES, 1980; ZELIZER; 1993; BOURDIEU, 1998 apud TRAQUINA, 2018a) afirmam que, por serem parte de um campo e compartilharem habitus, os jornalistas são uma “comunidade interpretativa”, ou seja, tem seu enquadramento de referência, ou, como diz Bourdieu, enxergam o mundo com “óculos próprios” (apud TRAQUINA, p. 25). Traquina não questiona essa interpretação, mas prefere dizer que os jornalistas fazem parte de uma tribo73. O termo tem interessante uso metafórico relativo às características do grupo: aproxima da ideia do bricoleur

72 A pesquisadora usa o conceito de “mundo” tendo em vista o sentido sociológico de Howard Becker, ou seja, o mundo é a rede de relações e define a organização social dos jornalistas.

73 Traquina (2018a) apresenta pesquisa dividida em duas partes: em uma fez um levantamento a partir das notícias sobre o tema Aids em jornais de quatro países. Foram pesquisados quality papers de Brasil, Portugal, EUA, Espanha e também um jornal popular português, com o objetivo de compreender os valores que norteavam a publicação de notícias sobre o tema. Além disso, o autor se debruça sobre dados de uma pesquisa realizada com mais de 1,5 mil jornalistas de cinco países sobre como avaliam o valor-notícia e pressupostos da profissão. Pela coincidência no modo de ver os valores-notícia e dos itens que norteiam o trabalho destes profissionais, Traquina propõe que os jornalistas são um tribo – ou comunidade interpretativa – transnacional. Nas palavras dele: “O estudo comparativo de Patterson e Donsbach (1998, projeto MEDIA E DEMOCRACIA) fornece provas empíricas para a hipótese teórica de que jornalistas são uma comunidade interpretativa transnacional. Com base num inquérito representativo de cinco comunidades jornalísticas, é notável a partilha do mesmo “ethos” e conjunto de valores que fornecem um retrato claro de identidade jornalística. As cinco comunidades jornalísticas concordam na definição do papel de seu objeto central de esforço – as notícias – e as funções associadas às notícias com a democracia.” (p. 171)

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de Lévi-Strauss, para referir-se aos adeptos do “faça-você-mesmo”, da preferência pela atividade “manual”; pela lógica do concreto; homens e mulheres “de ação”, marcados também pelo “anti-intelectualismo” que é, nas palavras de Bourdieu citado por Traquina, um “constrangimento cultural no mundo do jornalismo” (TRAQUINA, 2018a, p. 24).

No posfácio do livro Sobre a Televisão (1997), Bourdieu aponta que as críticas que recebeu de jornalistas pela palestra que originou essa publicação eram esperadas e, por si, seriam um exemplo da problemática que ele expõe. Em resumo, na palestra que foi exibida na TV pública francesa, o sociólogo se insurge contra a falta de espaço para o pensamento crítico na TV, argumentando ser um problema gerado pelos formatos disponíveis na programação. As críticas recebidas, para o autor, relacionam-se a comportamentos típicos dos jornalistas: transformação de argumentos em acusações, o privilégio do que é visível no mundo em detrimento do aprofundamento em estruturas e mecanismos que fazem com que o mundo seja o que é e, ainda, o interesse por (supostas) conclusões em detrimento dos caminhos argumentativos que levam até elas.

As características elencadas por Travancas e Bourdieu e descritas como parte da identidade profissional do jornalista são resultado da convivência dos sujeitos no campo, de ter um habitus introjetado. Por um lado, dizem respeito aos processos de legitimação da atuação profissional (e do campo). A legitimação do jornalista se dá em relação a legitimação de todo o campo. Um exemplo de fixação deste processo de legitimação é o lugar que ocupam os jornalistas em numerosas produções cinematográficas. No cinema, o jornalista é, muitas vezes, o herói da democracia, responsável por salvar o povo da cobiça e do mau-caratismo dos poderosos através de suas investigações, mesmo que lhes custe a vida, a felicidade, um grande amor. Assim, a dedicação ilimitada à profissão e a necessidade dela ficam justificadas pela adesão do jornalista ao lugar reservado à imprensa na Teoria Democrática. A imprensa deve garantir a livre circulação de ideias, garantindo aos cidadãos os instrumentos para participar do regime democrático. Assim, os jornalistas se constituem como elo entre opinião pública e instituições governantes (uma ideia que rejeita o fato de que o próprio jornalismo influencia na construção da opinião pública). Este elo, nesta construção, contudo, não pode ser neutro: deve desafiar o poder em defesa do cidadão (TRAQUINA, 2018a). Por outro lado, a identidade profissional é construída como resposta às constrições geradas pela rotina de produção das notícias, elemento central ao campo.

Segundo Traquina (2018a), a aparente dificuldade para uma definição do que é notícia pelos jornalistas é um resultado da ideologia do campo: “o jornalista relata, capta, reproduz ou

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retransmite o acontecimento” (TRAQUINA, 2018a, p. 60). Apresenta-se, portanto, apenas como mediador.74 Ao mesmo tempo, contraditoriamente, conhecer os processos de seleção de acontecimentos e produção de notícias é o que de mais básico um jornalista tem que fazer para merecer esse título.

Para que um fato possa vir a estampar o jornal do dia seguinte é preciso que tenha algumas características conhecidas pelo jornalista, mesmo que não enunciadas. Ser verdade – no sentido de ser algo que de fato aconteceu, que tem personagens reais, etc – pode ser a principal característica, e faz, inclusive, parte da base da legitimação do trabalho dos jornalistas. Outra característica central é a emergência do tempo: notícia é uma mercadoria altamente perecível, não apenas porque é preciso obedecer às rotinas de produção das redações, como porque tudo pode mudar rapidamente e há a noção de que os cidadãos precisam ter ciência do fato a tempo de tomar alguma medida cabível em resposta. Ou seja, também a pressa faz parte do panorama de legitimação da profissão. O tempo também determina a realização ou não do “furo” – a notícia em primeira mão, valorizada na competição entre veículos no mercado e entre jornalistas na busca por melhores posições e notoriedade em seu campo. Não por acaso, defende Traquina (2018), a velocidade torna-se em valor proeminente na cultura desses trabalhadores. Travancas (1993) chega a conclusão semelhante.

A chamada Teoria do Espelho (Traquina, 2018), uma das diversas tentativas de explicar porque as notícias são como são, está baseada justamente na ideologia da profissão, portanto, intimamente ligada à legitimidade do campo jornalístico. A teoria leva esse nome por entender que as notícias são como são porque a realidade assim as determina. Nela, o jornalista é apresentado como ator desinteressado, honesto e equilibrado, que corre atrás das informações e publica “doa a quem doer”. A objetividade75, que ascende como importante valor da produção

74 Jornalistas da EBC entrevistados para esta pesquisa tem um comportamento diferente. Entendo que assumir que o trabalho do jornalista não é neutro faz parte da legitimação da comunicação pública – fosse neutro, não seriam necessários outros emissores.

75 A crise enfrentada pelo jornalismo no período relaciona-se com a descrença na noção de fato: a sociedade vivia o tempo da propaganda de guerra e o surgimento dos relações públicas, além da ascensão da psicologia que fazia duvidar da mente humana. Schudson (apud TRAQUINA, 2018) mostra que historicamente objetividade não nega o “subjetivismo” como inerente a produção jornalística. O que faz é criar mecanismos de controle para evitar perda da credibilidade. “Apesar de todas as críticas à objetividade, o jornalismo moderno está indiscutivelmente associado a uma noção de equidistância entre o profissional do campo jornalístico e os diversos agentes sociais, atuando com justiça, ouvindo as diversas perspectivas, mantendo a sua independência. Mesmo os proponentes do movimento de renovação do jornalismo norte-americano, o ‘jornalismo cívico’, que encara o valor de objetividade como um inimigo a abater, não encontram uma forma de o substituir e reconhecem que a noção de equidistância é vital para a credibilidade do jornalismo.” (ROSEN, 1993, 2000, apud TRAQUINA, 2018, p. 145) Voltaremos ao tema do jornalismo cívico no próximo tópico.

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de notícias a partir das décadas de 1920-30 nos Estados Unidos, também passa a fazer parte dos valores legitimadores da profissão. Nas palavras de Traquina:

Com a ideologia da objetividade, os jornalistas substituíram uma fé simples nos fatos por uma fidelidade às regras e procedimentos criados para um mundo no qual até os fatos eram postos em causa. [Tais procedimentos servem para] assegurar uma credibilidade como parte não interessada e se protegerem contra eventuais críticas ao seu trabalho (2018, p. 140-1).

O ethos dominante, os valores e as normas identificadas com um papel de árbitro, os procedimentos identificados com o profissionalismo, fazem com que dificilmente os membros da comunidade jornalística aceitem qualquer ataque à Teoria do Espelho porque a legitimidade e a credibilidade dos jornalistas estão assentes na crença social de que as notícias refletem a realidade, que os jornalistas são imparciais devido ao respeito às normas profissionais e asseguram o trabalho de recolher a informação e de relatar os fatos, sendo simples mediadores que reproduzem o acontecimento na notícia. (2018, p. 151).

Os problemas explicativos da Teoria do Espelho começam, contudo, com a constatação de que o trabalho dos jornalistas é também uma tarefa de seleção e edição da “realidade”, afinal, a matéria prima das notícias – acontecimentos, fatos – é tendencialmente ilimitada e imprevisível, enquanto a quantidade de notícias necessária é finita e estável, como nos lembra o sociólogo italiano Mauro Wolf (2008). Portanto, os jornalistas não podem ser apenas mediadores. Além disso, a realidade precisa ser descontextualizada e recontextualizada no processo de produção da notícia, outra razão pela qual a realidade percebida via mídia não poderá – considerando-se a percepção como na fenomenologia – ser a mesma que a percebida diretamente. O processo de recontextualização dos fatos em notícia (o modo como serão contadas, ou “empacotadas”, para usar um jargão cada vez mais comum) também tende a levar em conta a imagem que o jornalista tem do seu público – que é absolutamente difusa e pouco informada (WOLF, 2008).

A transformação da matéria-prima acontecimento no produto notícia é um processo de seleção e organização a partir dos chamados critérios de noticiabilidade. “Não há regras que indiquem que critérios têm prioridade sobre os outros; mas os critérios de noticiabilidade existem, duradouros ao longo dos séculos.” (TRAQUINA, 2018a, p. 93) Além disso, “notícias são marcadas em diferentes sociedades democráticas por similitudes significativas devido aos valores-notícia partilhados que são parte importante da cultura jornalística” (TRAQUINA, 2018a, p. 25). Todos esses processos estão incorporados nos jornalistas pela construção do habitus.

Uma forma de apresentar os critérios de noticiabilidade é por meio da organização em valores de seleção e construção. Os valores de seleção, para Wolf, estão divididos em “critérios substantivos que dizem respeito à avaliação direta do acontecimento em termos da sua importância ou interesse como notícia” e “critérios contextuais” – que estão ligados ao contexto

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da produção da notícia e não ao fato em si (2008a, p. 75). Já os critérios de construção dizem respeito ao que deve ser realçado e omitido na apresentação do material. Apresentamos a seguir (Quadro 10) uma síntese de critérios de noticiabilidade. Há outros critérios e formas de apresentação, mas os apresentados por Traquina (2018a) já são suficientes para ajudar a refletir sobre 1) atrás do quê correm os jornalistas – ou seja, o que pode virar notícia?; 2) veículos com objetivos diferentes deveriam ter critérios diferentes de noticiabilidade? e 3) se a construção de outros critérios de noticiabilidade deveriam resultar em (ou ser resultado de) novos habitus e novas culturas profissionais, o que poderia derivar, inclusive, em novos formatos de noticiário.

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Quadro 10 – Síntese de critérios de noticiabilidade

VALORES-NOTÍCIA DE SELEÇÃO VALORES-NOTÍCIA DE

CONSTRUÇÃO

Critérios substantivos Critérios contextuais

 Morte

 Notoriedade (do personagem)

 Proximidade (em termos geográficos e culturais)  Relevância (p/ a vida do

público)  Novidade

 Tempo (atualidade; efeméride como gancho ou retomada de um assunto)  Notabilidade

(acontecimentos são mais valorizados do que problemáticas – cabem melhor nos espaços do jornalismo). Entre os registros de notabilidade: quantas pessoas envolve, a presença de personalidades, inversão da normalidade, falha (acidentes; excesso / escassez).

 Inesperado “what a story!”, enorme acontecimento que subverte rotinas

 Conflito e controvérsia (violência física ou

simbólica, especialmente se inesperada, como entre políticos)

 Infração / crime quando violentos, insólitos, escândalos.

 Disponibilidade (a cobertura é fácil de fazer? Há meios financeiros, tempo, etc? Tenho boas fontes disponíveis?  Equilíbrio (se já foi

publicado há pouco pode perder valor)

 Visualidade (fotos? Vídeos?)

 Concorrência (veículos procuram não deixar de dar as mesmas informações que os concorrentes ao mesmo tempo em que lutam pelo “furo”.)

 Dia noticioso (Molotch e Lester, 1974) – notícia cabe ou não conforme o conjunto de fatos do dia.

 Simplificação (clichês, estereótipos e ideias simples são preferíveis a ambiguidade)

 Amplificação

 Relevância (para a vida das pessoas)  Personalização (ter personagem)  Consonância: inserção da novidade em contexto já conhecido.

Fonte: elaboração da autora, com base em Traquina, 2018a.

A partir desses critérios, firmou-se uma cultura sobre como formatar as notícias. Não podem ser nem excessivas e nem insuficientes para a configuração desejada. Para que um fato possa ser notícia de TV, por exemplo, serão necessárias imagens. Precisam ser geradas por fatos que possam ser registrados, o jornalista precisa chegar a tempo de “pegar” o acontecimento, é preciso ter as fontes certas e disponíveis para dar as informações corretas a tempo de a notícia ir ao ar, etc. Esses e outros condicionamentos, ou amarras, fazem com que a produção de notícias determinem e sejam determinadas pelas rotinas dos jornalistas de modo “estrito e vinculador” (WOLF, 2008). Entendemos, então, que valores-notícia colaboram para a construção do mundo dos jornalistas, seu habitus, e que as rotinas geram uma espécie de

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engrenagem que move as redações a partir de restrições – de tempo e condições materiais disponíveis.

A imposição de controles administrativos e pragmáticos para que o ato de noticiar seja transformado numa rotina (e a própria existência de uma rotina) são, portanto, fatores geradores de perda de autonomia pelos jornalistas em seu campo de atuação. A partir dos anos 197076, as teorias que buscam explicar o funcionamento do universo das notícias ganham novas preocupações: deixam de centrar-se nos canais e passam a questionar sobre a relação jornalistas/empresas de mídia/sociedade. Em resumo, passamos a compreender que

é impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e os media noticiosos que devem “refletir” essa realidade, porque as notícias ajudam a construir a própria realidade. (...) a linguagem neutra é impossível (...) os media noticiosos estruturam inevitavelmente a sua representação dos acontecimentos, devido a diversos fatores, incluindo os aspectos organizativos do trabalho jornalístico (Altheide, 1976), as limitações orçamentais (Epstein, 1973), a própria maneira como a rede noticiosa é colocada para responder à imprevisibilidade dos acontecimentos (Tuchman, 1978) (TRAQUINA, 2018, p. 170).

Estudos realizados a partir de abordagem etnometodológica nas redações (Tuchman, 1978) mostraram a centralidade das dinâmicas de redação nos processos de produção das notícias. A própria organização da redação das empresas jornalísticas, bem como as editorias existentes em cada veículo, tornam-se moldes para seleção dos acontecimentos que serão transformados em notícias.

Portanto os jornalistas conhecem (mesmo que sem se deter em explicações científicas a respeito) o que é notícia e quais os critérios de seleção, produção e edição de materiais porque tudo isso é parte do habitus que adquiriram ao longo de sua formação e vida profissional. Além disso, o compartilhamento de um habitus tão específico transforma os jornalistas numa tribo interpretativa que vê o mundo e as notícias com “óculos” específicos. No entanto, sua autonomia com relação a produção de notícias é relativa: tanto pelas já sublinhadas constrições do mercado e da política sobre seu campo, quanto pela natureza pouco objetiva dos critérios que definem a fabricação de seu produto, a notícia. Neses caso, contra o caos de opiniões são criadas hierarquias nos espaços de trabalho e um controle rígido de rotinas:

Para prevenir o caos, a aplicação dos critérios relativos às notícias requer consenso entre os jornalistas e, sobretudo, uma organização hierárquica em que aqueles com mais poder possam impor sua opinião sobre os critérios relevantes para uma determinada notícia” (Gans, 1979, p. 82 apud Wolf, 2008, p. 204).

76 Motivadas pelo pensamento de Gramsci sobre ideologia; a natureza problemática da linguagem na escola semiótica francesa (Barthes) e a escola culturalista britânica (Hall et. al.), Cf. TRAQUINA, 2018.

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Por meio de manuais de jornalismo elaborados pelos veículos de comunicação é possível captar os valores-notícia e critérios de noticiabilidade de determinada empresa – porque por meio do manual elas os anunciam, bem como a seus valores. A EBC registra em seu manual (desde o título) a busca da verdade, nomeada como “valor soberano” e norte de toda a produção jornalística. Segundo o documento,

A EBC considera que jornalismo é espaço público por onde são transferidas informações relevantes, com potencial para alterar a realidade, que se sucedem no tempo e no espaço, objeto de interesse da coletividade e abrangidos pelos seus critérios de cobertura (EBC, 2013, p.21). A expressão "são transferidas" esconde o processo de seleção e edição, que começa com a definição do que seja uma "informação relevante", o que passa por saber sobre para quem, para qual público, dado tema interessaria. Além disso, voltando aos critérios de noticiabilidade, a seleção tem em conta as constrições que surgem no processo de transformar acontecimento em notícia: formato da redação, tempo e dinheiro disponível para fazer, etc. Colocando-se assim, a EBC esconde a deformação própria do processo de transformação do fato em notícia gerada pelas rotinas. Curiosamente, assumir esse fato poderia colaborar com a própria legitimação de sua existência – também é na impossibilidade de neutralidade no processo de construção da informação que se apoia a noção de que é preciso imprensa plural, com financiamentos diversos, etc. Ao evitar fazê-lo, busca localizar-se no campo do jornalismo a partir dos mesmos valores de legitimação, notadamente a busca pela verdade, dos demais veículos.

Apesar de apresentar-se sob mesmo valor soberano que concorrentes, por meio de seu Manual de Jornalismo, a EBC procura se diferenciar priorizando temas e enfoques que seriam ignorados pelos demais, valorizando a voz e o olhar do cidadão. O manual não aborda o problema prático da disponibilidade dessas fontes diferenciadas quando há imposição de