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CAPÍTULO I – A FORMAÇÃO DA EBC: ORIGENS, CONSOLIDACÃO E

3. Desmonte – do ‘pré’-impeachment até dezembro de 2018

O registro histórico apresentado mostra como a EBC teve dificuldades para ser realmente uma empresa autônoma. Considerando as ponderações de Ramos (2012), as fragilidades institucionais foram legadas por sua Lei de fundação. Observando as dificuldades econômicas, é notório que a EBC nunca conseguiu ser independente do Tesouro, seja pelas inconsistências do modelo de negócios, incapaz de permitir o aumento da arrecadação pela prestação de serviços, seja por jamais ter recebido os recursos do Fistel, que por Lei deveriam ser destinados à empresa. Apesar de tudo isso, a EBC trabalhava pelo amadurecimento de seu caráter público e dos órgãos que foram criados para garantir autonomia editorial, notadamente o Conselho Curador e a Ouvidoria.

A confusão (real ou proposital) sobre a identidade da empresa entre o público e o estatal/governamental, que foi permanentemente expressa pela imprensa, bem como nos questionamentos sobre a relevância do projeto frente ao que passam a ser considerados altos gastos33, parece ter crescido em meio à crise econômica e política que atingiu o segundo governo Dilma Rousseff e ao acirramento político vivido no país. Mesmo antes de ser consolidado, o processo de impeachment já revelava dificuldades ainda maiores chegariam à

33 Reportagens e editoriais publicados nos veículos comerciais, assim como discursos de parlamentares, entre outras pessoas públicas, geralmente situados à direita do espectro político, fizeram parte do coro da ideia de gastos excessivos com a EBC. Chama atenção a falta de comparações credíveis, por exemplo, com veículos semelhantes aqui ou no exterior, para compreendermos a amplitude dos gastos. A comparação com veículos públicos de outras 16 nações quanto aos gastos per capita, realizada por Pieranti (2018), leva a crer que a acusação pode ser equivocada. O Brasil tem gastos relativamente baixos com seu sistema de comunicação pública, mesmo quando comparado com países tão pobres quanto a Albânia, onde são investidos € 6,55 per capita, contra € 0,84 no caso brasileiro (p. 256-257).

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EBC. Desencadeiam-se a partir desse ponto os eventos que denomino aqui como de desmonte da empresa, apropriando-me de um termo que vem sendo utilizado por órgãos sindicais, entidades do movimento pelo direito e democratização da comunicação e pelo próprio Conselho Curador extinto da EBC (FENAJ, 2017; SJPDF e COMISSÃO DE EMPREGADOS DA EBC, 2018; CONSELHO CURADOR, 2017b).

No dia 3 de maio de 2016, às vésperas de seu afastamento, Dilma nomeou o jornalista Ricardo Melo como diretor-presidente da EBC – o posto estava vago desde fevereiro, período em que a crise política se agravava. No dia 12 do mesmo mês, Dilma foi afastada da presidência da República para investigações e seu vice, Michel Temer, assumiu o cargo interinamente. Com menos de uma semana no poder, no dia 17, Melo, que tinha mandato até 2020, foi exonerado, e o jornalista Laerte Rimoli foi indicado para o posto. Melo recorreu ao STF argumentando que não poderia ser destituído do cargo, na medida em que a Lei que criou a EBC, em seu art. 19, estabelecia nomeação da diretoria-executiva pelo Presidente da República, e determinava que a destituição seria possível apenas nas hipóteses legais, ou se recebesse dois votos de desconfiança do Conselho Curador, no período de 12 meses, emitidos com interstício mínimo de 30 dias entre ambos. A não-destituição visava evitar interferências pelo Chefe do Executivo federal na empresa. O STF garantiu a recondução de Melo ao cargo dias depois, mas por pouco tempo.

O impeachment de Dilma Rousseff foi confirmado pelo Senado em 31 de agosto de 2016. Em questão de horas, o presidente Michel Temer estava em um avião viajando à China. O governo não esperou seu retorno. Coube a seu substituto, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, assinar no dia 2 de setembro a Medida Provisória 744/2016, para “reestruturação” da EBC. Ela trata do fim dos principais mecanismos que visavam garantir sua independência. A partir daí, Melo foi definitivamente retirado do cargo na medida em que a liminar do STF perdia seu objeto: a MP permitiu livre nomeação e exoneração do diretor- presidente pelo presidente da República, a qualquer tempo. Assim, em 8 de setembro, Melo foi novamente destituído e substituído pelo jornalista Laerte Rimoli, que permaneceu no cargo até maio de 2018.34

34 Rimoli alegou motivos pessoais para deixar o cargo, que foi assumido pelo então porta-Voz do presidente Michel Temer, o diplomata Alexandre Parola. O novo presidente da EBC já chegou com a saída prevista para dezembro, visto que Temer já o havia indicado ao posto de delegado permanente do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, Suíça. Mas saiu antes, em outubro de 2018, com exoneração à pedido. Em seu lugar, de forma interina, assumiu Luiz Antônio Ferreira, que naquele momento atuava como Diretor de Administração, Finanças e Pessoas da EBC. O diretor-presidente substituto foi funcionário da Radiobrás e da EBC por 39 anos. Ele se desligou no primeiro Programa de Demissão Voluntária de 2018, mas não saiu da empresa. Permaneceu no cargo nos primeiros meses do governo Bolsonaro.

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A MP 744/2016, convertida na Lei 13.417/2017, além das mudanças quanto a destituição do diretor-presidente, avançou no esvaziamento do caráter público da empresa ao acabar com o Conselho Curador35. O Conselho de Administração também passou a ter nova composição, com seis indicados pelo governo e um pelos empregados (antes, eram quatro do governo e um dos funcionários). Especialistas em Direito Constitucional, como o professor da PUC-SP Jesús Lora Alarcón, e a advogada Tatiana Stroppa, argumentaram que, a MP esvaziava a empresa de seu caráter público e, por isso, a medida seria inconstitucional ao causar o rompimento do princípio da complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal exigido pela Carta de 1988. Alarcón e Stroppa questionaram ainda as razões para a edição da MP, que diz tratar de “garantir maior eficiência à gestão da EBC”, mas cujos mecanismos, segundo eles, na realidade nada têm a ver com gestão, mas com “[aniquilar] instrumentos legalmente criados e que lhe permitiam sua independência perante o governo” (ALARCÓN E STROPPA, 2016). A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, pediu à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei. Na justificativa, a procuradora argumentou que a referida Lei abria espaço para “censura de natureza política, ideológica e artística” e para o silenciamento de vozes divergentes ao novo governo (DUPRAT, 2017).

Diversas entidades da sociedade civil se posicionaram contra a medida, como por exemplo a Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais (Abepec) e organizações pelo direito à comunicação como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a Artigo 19 e o Intervozes. O Conselho de Comunicação Social do Congresso, órgão auxiliar do Parlamento, emitiu parecer contrário à MP e os relatores para a Liberdade de Expressão da ONU e da OEA manifestaram preocupação. Mas não houve indícios de reação popular contra o desmonte36.

35 No lugar do Conselho Curador foi criado um Comitê Editorial e de Programação, órgão consultivo (e não mais deliberativo), composto exclusivamente por pessoas com “notório saber” em comunicação social, o que retira a diversidade e pluralidade que era a marca do Conselho original. Além disso, o novo Comitê teria 11 membros, contra 22 do original, e não há pró-labore pela atividade dos conselheiros, sendo a EBC obrigada a arcar apenas com os custos de deslocamento e hospedagem em Brasília na realização de reuniões mensais. Em comparação com o Conselho, o novo comitê também perdia parte de sua importância administrativa na medida em que não tinha poder na demissão do diretor-executivo. As adições feitas à MP para garantir maior poder de decisão ao Comitê, por exemplo no que diz respeito à linha editorial da empresa, foram vetadas pelo presidente Michel Temer no ato da sanção. O Comitê ainda não foi instalado (cf. BRASIL, 2008; PEDUZZI, 2017).

36 Ao contrário, parecem crescentes a desconfiança e a divulgação de informações equivocadas sobre a EBC em fóruns e redes sociais na internet nos últimos anos. Pesquisa futura poderia melhor compreender a construção narrativa que amarra a empresa ao petismo, o que justificaria a sua destruição, conforme o projeto de governo eleito em outubro de 2018.

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Outras medidas internas tomadas a partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff abalaram, de diversas formas, a necessária autonomia. A Comissão de Empregados da EBC e do Sindicato dos Jornalistas do DF denunciaram que a missão de “produzir comunicação pública” foi retirada do plano estratégico da empresa, sendo substituída por produzir “comunicação”. Além disso, o Conselho de Administração tentou mudar o perfil da Agência Brasil, que passaria a reproduzir apenas "notícias de Estado" (SJPDF, 2018).

Em 1º de setembro de 2017, um ano depois da medida legislativa que alterou a estrutura da empresa, o Conselho Curador destituído lançou nova nota pública em que elencava os efeitos da medida. Citavam relatórios da Ouvidoria que denunciavam “excesso de governismo” e “defesa incondicional das propostas do governo” nos veículos públicos. Os ex-conselheiros relataram “desrespeito ao telespectador e à sociedade” com a falta de informação sobre o desligamento do sinal analógico da TV aberta, que “levou a um aumento de 56% nos chamados recebidos pela Ouvidoria” (CONSELHO CURADOR, 2017b).

Diante do recrudescimento do clima político do país e da crescente polarização de forças políticas desde o pré-impeachment, e especialmente em 2018, ano de eleições presidenciais, a EBC se viu frequentemente ameaçada de fechamento e privatização – discurso que ganhou força na campanha eleitoral. A empresa, e mais especificamente a TV Brasil, emissora que desde a fundação foi associada ao petismo e marcada pelo apelido “TV Lula”, foi diretamente ameaçada de fechamento pelo candidato do PSDB, Geraldo Alckmin (BENÍCIO, 2018) e pelo então candidato do PSL, Jair Bolsonaro, que seria eleito. Em sua primeira entrevista pós- eleição, à TV Record, Bolsonaro confirmou a intenção acabar com a TV Pública e privatizá- la37 sob a justificativa de ser cara demais e não dar retorno em audiência (SOUZA, 2018; RIBEIRO, 2018).

Do ponto de vista da presente pesquisa, o movimento mais concreto do desmonte da EBC depois da destituição do Conselho Curador tem relação com enxugamento do quadro. Foram realizados dois Programas de Demissão Voluntária (PDV) em 2018. Somados, os PDVs resultaram no desligamento de 353 pessoas, ou o equivalente a 14,2% dos trabalhadores (tomando como base comparativa outubro de 2017). Em ambos não houve previsão de substituição por meio de concurso público, visto que o objetivo anunciado era a readequação

37 Souza (2018) e Ribeiro (2018) são exemplos da repercussão da primeira entrevista do presidente-eleito Jair Bolsonaro, concedida à TV Record. Tratam-se de reportagens em sites de notícias sobre televisão. Repetem o que acompanhei na mídia em geral: dão “relato" do dito por Bolsonaro. Não apontam os dados errados informados por ele, como o orçamento da TV Brasil, que segundo Bolsonaro custava R$ 1 bilhão, quando o valor não confere nem com o orçamento global da EBC. Ao invés de esclarecer o público sobre o real custo da empresa, no caso do relato de Ribeiro temos inclusive a palavra "prejuízo" caracterizando o montante supostamente investido na EBC.

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da estrutura organizacional da EBC frente à crise orçamentária. Isso se daria a partir do redimensionamento da força de trabalho, com redução de custos da empresa.

Na próxima seção seguimos refletindo sobre a montagem e o desmonte da EBC, porém tendo como foco o papel legado aos trabalhadores. Essa análise é central para o desenvolvimento dessa pesquisa ao compreendermos que a percepção deles se relaciona com o espaço de trabalho que compartilham e constroem historicamente e, também, com o momento em que as entrevistas foram realizadas.