• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – ABORDAGEM TEÓRICA

1. O conceito filosófico de percepção

compreendida como um espaço estruturado por campos e seus polos de poder econômico e ideológico.

O plano teórico inclui uma abordagem sobre as idiossincrasias dos jornalistas, que fazem e são feitos no espaço do campo jornalístico. Com isso, foi possível compreender que os entrevistados fazem parte de uma tribo interpretativa transnacional (TRAQUINA, 2018a), que tem um modo próprio de ver o mundo e de agir sobre ele, guiada pela produção da notícia. Essa abordagem leva a refletir sobre o jornalismo da empresa pública a partir das práticas dos seus jornalistas.

Diante de especificidades que podem vir a legitimar a existência do serviço público de radiodifusão praticado pela EBC é explorada a possibilidade de haver um “jornalismo público” – que poderia indicar, inclusive, um habitus e um campo novos.

1. O conceito filosófico de percepção

Ao adotar como objeto de pesquisa o que dizem os jornalistas da EBC sobre o sentido, significado e aplicabilidade dos conceitos de radiodifusão e comunicação pública em seu trabalho cotidiano, parto do pressuposto que esse grupo de trabalhadores detém conhecimento advindo de sua experiência e ação. Apercepção que cada um constrói sobre sua ação no mundo expressa esse tipo específico de conhecimento, que resulta da relação não só com a profissão e o mundo em geral, mas com o espaço particular em que atua profissionalmente. Vem daí a necessidade de olhar para esse conhecimento a partir da contribuição da Filosofia sobre a ideia de percepção.

Marilena Chauí (2014) mostra que, do ponto de vista da história da Epistemologia e da Filosofia, desde os gregos a questão do conhecimento é uma preocupação (polêmica) na Epistemologia. Mas apenas na filosofia moderna, ou seja, a partir do século XVII, passa a ser considerada uma disciplina. Trata, afinal, de questões como: seria possível chegar à verdade apenas por meio do raciocínio e da intuição intelectual ou as relações dos humanos com o mundo exterior teriam também um papel na construção do conhecimento? E que papel seria esse? Perguntas desse tipo visam levar a compreender a capacidade humana de conhecer, o que pode passar, também, pelas relações que estabelecemos com o mundo, como o percebemos e como nos percebemos.

As respostas com relação às teorias do conhecimento são múltiplas e, ainda segundo Chauí, podem ser resumidas em três abordagens sobre a percepção: a empirista, em que a percepção é a única fonte de conhecimento; a racionalista, para a qual a percepção não é uma

91

fonte de conhecimento confiável por depender das condições de quem percebe e por poder levar à ilusão e, por fim, a teoria fenomenológica, na qual

a percepção é considerada originária e parte principal do conhecimento humano, tendo uma estrutura diferente da do conhecimento intelectual, que opera com/a partir de ideias. Ou seja, a percepção não é o reservatório de onde sairão as ideias (como para o empirista), nem é uma ideia confusa e inadequada que deve ser corrigida pelo pensamento (como para o intelectualista), pois ela é diferente de uma ideia ou de um pensamento (CHAUÍ, 2014, p. 177).

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que desenvolve a fenomenologia a partir dos trabalhos de Edmund Husserl (1859-1938), fundador da Escola da Fenomenologia, procura explicar porque e como nos constituímos, e ao conhecimento, a partir de nossa relação com o mundo. Para ele, todo o conhecimento parte do fato de que o ser humano tem um corpo que está no mundo: “O homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 6). O sujeito experimenta ativamente o mundo, bem como aos demais sujeitos e a si próprio a partir de seu corpo – do corpo-próprio – e é nessa condição individual da experiência que o conhecimento vai se constituir. Apesar de tratar dos temas a partir de dicotomias (corpo/alma, sujeito/objeto, sentimento/ideia), Merleau-Ponty defende que o conhecimento construído a partir da percepção não se dá numa confrontação de pares, mas pelas relações. As coisas estão no mundo – sujeitos e objetos – e se constituem conforme se relacionam. A partir da crítica à tradição cartesiana, o filósofo francês procura reatar as dicotomias por meio da construção de relações dialéticas para, assim, explicar o modo como conhecemos.

A tradição cartesiana habituou-se a desprender-nos do objeto: a atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do corpo e a da alma, definindo o corpo como uma soma de partes sem interior, e a alma como um ser inteiramente presente a si mesmo, sem distância. (...) o objeto é objeto do começo ao fim. A consciência é consciência do começo ao fim. Há dois sentidos e apenas dois sentidos na palavra existir: existe-se como coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um modo de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um conjunto de processos em terceira pessoa – “visão”, “motricidade”, “sexualidade” – percebo que essas “funções” não podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por relações de causalidade, todas elas estão confusamente retomadas e implicadas em um drama único. (...) Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (MERLEAU- PONTY, 1999, p.268-9).

Ao abraçar a compreensão do ato de conhecer por meio da experiência da percepção, considera-se a série de relações que se estabelecem para a construção do conhecimento relativo à EBC nesta pesquisa: jornalista da EBC-EBC; jornalista da EBC-jornalista da EBC; jornalista da EBC-pesquisadora; pesquisadora-EBC; etc. Além do entendimento de que o corpo tem existência espacial e tudo que se percebe relaciona-se com o ponto de vista do corpo, Merleau-

92

Ponty constata que a existência do corpo é temporal e, portanto, o ambiente histórico vivido (ou recuperado por mediação) também é constituinte da construção do conhecimento. Assim, devemos observar e descrever o fenômeno – o quê e o modo como os jornalistas percebem seu fazer da comunicação pública –, incluindo todos os fatores que se relacionam e formam o conjunto em que está inscrito o fenômeno.

Por fim, o fato de o corpo no mundo ser temporal agrega à presente pesquisa o

entendimento de que o dizer dos jornalistas da EBC tem relação direta com o fato de terem essa

profissão, ou seja, detêm um modo particular de ver o mundo, relacionado aos códigos e rotinas

da profissão, o que lhes permite atuar em um campo muito específico – o campo jornalístico (BOURDIEU, 1997, 2010) - como uma tribo interpretativa transnacional (TRAQUINA, 2018a). O modo como se relacionam com a dimensão histórica da vida na empresa – a construção da memória nos diversos lugares ocupados por eles naquele espaço, por exemplo a

praça, a editoria, o veículo onde trabalharam – também impacta na percepção dos jornalistas.

Além disso, suas respostas têm a marca do presente (no caso, o momento em que conversamos), tanto no que diz respeito às histórias pessoais quanto ao momento político que atravessava o país, com as incertezas relativas ao destino da empresa e, consequentemente, de seus postos de trabalho. Nas palavras de Merleau-Ponty:

(...) se, por exemplo a consciência que tenho agora de meu passado me parece recobrir exatamente aquilo que ele foi, este passado que pretendo reapreender ele mesmo não é o passado em pessoa, é meu passado tal como o vejo agora e talvez eu o tenha alterado. Igualmente, no futuro talvez não reconhecerei o presente que vivo. Assim, a síntese dos horizontes é apenas uma síntese presuntiva, ela só opera com certeza e com precisão na circunvizinhança imediata do objeto (1999, p. 107).

Segundo Chauí (2014), na tradição filosófica os intelectualistas não compreendem haver diferença entre objeto percebido e objeto pensado. Assim, “tendo como modelo do conhecimento as ideias, consideraram a percepção uma forma menor, inferior e confusa de conhecimento” (CHAUÍ, 2014, p. 178). Contudo, ao compreender o que é um objeto percebido (na fenomenologia) passamos a entender que “o mundo percebido é qualitativo, significativo, estruturado e estamos nele como sujeitos ativos” (CHAUÍ, 2014, p. 175), e a admitir a “ilusão” como “uma forma especial de erro: a ilusão, causada pela confusão entre várias percepções e várias ideias, levando-nos a tomar uma coisa por outra (...) mas que também pode ser causada pelas condições do nosso corpo e do objeto” (CHAUÍ, 2014, p. 177). Adiante, contudo, a filósofa é mais taxativa: na fenomenologia não existe ilusão, o que há são percepções diferentes conforme a posição do corpo em cada momento, já que o que é percebido é observável e não

93

se pode observar de uma única vez todos os ângulos de um objeto (isso é algo que somos capazes de construir apenas em termos de ideia).

Nesse sentido, ela resgata de Merleau-Ponty uma imagem exemplar e esclarecedora: uma piscina ladrilhada, cheia de água e cercada por um bosque não é nem a soma de estímulos de cores, sons, texturas (como diriam os empiristas), nem as qualidades sensíveis (como líquido, reflexos, etc) de uma realidade distorcida (as árvores podem ser vistas na água, mas não estão ali, diriam os intelectualistas). Para a fenomenologia, a piscina-ladrilhada-cheia-de-água- cercada-por-um-bosque é exatamente isso que se apresenta de forma estruturada. E não há ilusão: por exemplo, o fato dos ladrilhos aparentemente se mexerem devido ao movimento da água é o que se pode observar na cena.

O filósofo Plinio Junqueira Smith (2014), ao tratar sobre o que chama de “conceito comum de percepção”, e sobre a existência ou não de uma relação de causa e efeito entre sujeito e objeto na percepção, também ajuda a fugir da ideia de que a percepção seria apenas algo subjetivo.

Reduzir a percepção à sensação ou à experiência, como parecem fazer alguns filósofos, acaba por não nos fazer entender o que é a percepção, nem o papel que ela pode ter no conhecimento; menos ainda entender de que modo a percepção pode contribuir de maneira racional para guiar as nossas crenças (p. 115).

Assim, é possível inferir não haver erro no que se percebe, mas uma realidade que tem relação com a vivência do sujeito (personalidade, história, afetividade, desejos e paixões) na sociedade em que vive (que dá valor e função às coisas e instituições), o que inclui as expectativas construídas. Portanto, perceber é estar no mundo e gerar interpretações dele – afetivas, qualitativas, valorativas. A construção é por partes e é com outros. E a noção de valor relaciona-se à ideia de que a percepção,boa ou má, sobre uma instituição, passa pela adequação ou não do serviço prestado às necessidades e às expectativas dos indivíduos. Assim, será bom se estiver de acordo com as expectativas e pior na medida que se afasta delas.

No caso desta pesquisa, a percepção dos jornalistas, entendidos aqui como sujeitos do conhecimento, sobre o mundo, mais especificamente, no caso, o pedaço do mundo que é a EBC. A percepção deles é moldada pelo lugar que ocupam na empresa – praça, tempo de casa, função – bem como pelo lugar que a empresa ocupa em sua vivência mais ampla – se sempre quis trabalhar com isso ou nunca confiou nessa proposta, se contribuiu para realizar suas expectativas de carreira, seus sonhos, etc. Assim, é necessário entender a relação entre a percepção e as expectativas dos jornalistas, bem como em que medida estas expectativas se relacionam aos princípios, objetivos e finalidade da EBC, assim como princípios e objetivos

94

que devem ser perseguidos pelas empresas de radiodifusão pública, conforme preconizado pela Unesco (2011).

Ao mesmo tempo, a pesquisa precisa incluir em sua análise a percepção da pesquisadora sobre a empresa e o campo como um dado – especialmente considerando que trabalhou como jornalista na EBC – assim como deve levar em consideração sua percepção relativa aos trabalhadores entrevistados (e, até, sobre os jornalistas da EBC que não foram entrevistados e com os quais se relacionou).

Assim, a EBC se transforma em uma espécie de piscina-ladrilhada-cheia-de-água- cercada-por-um-bosque, que é permeada por relações de poder que também definem quanta água, quantas árvores, etc fazem parte do contexto. Esta piscina que é a EBC é considerada aqui nas dimensões afetivas, qualitativas e valorativas percebidas por seus trabalhadores.