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CAPÍTULO V – CONSTRUÇÃO DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA NA

2. O fazer dos jornalistas na EBC

2.5 Percebe interferência política e censura de informação

Diante do contexto de desmonte da EBC e das denúncias que vêm sendo formuladas pelos trabalhadores e seus representantes, perguntei aos jornalistas se já sofreram interferência política e censura de conteúdos na realização de suas atividades. Além de documentar o caso, a questão poderia reforçar (ou refutar) o argumento de que a empresa vem passando por uma fase de desmonte, relacionada com a extinção ou o esvaziamento (que se aplica ao caso da Ouvidoria, como detalharei adiante) de seus órgãos para o controle social. A grande quantidade de relatos sobre interferências ou censuras mostra as dificuldades históricas da EBC para colocar-se de modo editorialmente autônomo frente aos governos, e dá conta também do agravamento do problema a partir de 2016.

Nenhum dos entrevistados disse que a prática nunca aconteceu (consigo ou com colegas), e um deles afirma não ter sofrido censura ou interferência política pessoalmente, apesar de ter acompanhado o desenrolar de situações com colegas. A frequência e o modo como as interferências aconteceram teriam piorado no período de desmonte da empresa, segundo esse trabalhador.

103 Reforçada pela atualização da Lei a partir da MP 744/2016, quando a qualificação de mão de obra passa a figurar também entre os princípios da radiodifusão pública. “XI - formação e capacitação continuadas de mão de obra, de forma a garantir a excelência na produção da programação veiculada." Cf. Lei 13.417/2017, art. 2º.

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Do conjunto da amostra, 13 entrevistados relataram casos104 de interferência ou censura de pautas que desenvolviam pessoalmente. Deste grupo, nenhum relatou serem situações exclusivas do período de montagem da empresa. A maioria (8) disse que censuras e interferências são permanentes, mas que o caráter delas mudou ao longo dos anos, com recrudescimento no período de desmonte. Outros quatro profissionais dizem que são situações que sofreram apenas no período de desmonte da EBC. Somente um deles mencionou que essas situações sempre aconteceram e nada mudou ao longo de sua história na EBC.

Duas pessoas não responderam ou não mencionaram nada sobre o tema.

Gráfico 7 – Interferência política e censura de conteúdos que produz na EBC?

Fonte: elaboração própria.

Elenco alguns dos trechos exemplares dos pontos de vista expostos:

Eu vejo interferência quase igual (ao longo do tempo), mas (mais recentemente) sob o signo do medo. Então era do medo e do silenciamento (Entrevista 1).

Eu nunca lidei e nem vi colegas lidando com orientações do Palácio do Planalto pra determinadas coberturas antes do governo Temer. Depois, comecei a ter esse tipo de notícia da chefia, que dizia de chamadas da Secom-PR porque “desequilibrou” determinada cobertura que não ouvia governo. (...) Alguns núcleos resistem porque a cobertura sempre foi muito diferenciada, como são os especiais da TV Brasil. Afeta mais o hardnews e afeta mais o jornalismo, muito mais do que a programação (Entrevista 2).

Nessa época [do desenrolar do processo de impeachment] existia uma tentativa de ser bem, não sei se equânime é o termo, mas as reportagens contra e a favor do impeachment tinham que ter o mesmo tamanho, mais ou menos a mesma quantidade de falas, a gente tinha essas preocupações e íamos a todas as manifestações, à direita e à esquerda. (...) Agora, quando teve o golpe o conteúdo passou a ser bem controlado, principalmente porque foram épocas de muita manifestação contra o Temer e estava isso em tudo (Entrevista 3).

104 Quase todas as menções à censura e à interferência política foram suprimidas do apêndice A, onde apresentamos a transcrição das entrevistas, por tratarem de casos que identificam os trabalhadores frente a seus pares.

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9

sim, mas apenas no período de montagem da EBC nunca aconteceu, nunca vi é permanente na minha história na EBC, não mudou não menciona / não respondeu sim, mas apenas no período de desmonte da EBC é permanente na minha história na EBC, mas piorou no

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Na minha prática eu percebo que é uma questão de direcionamento de governo mesmo. Desde o

impeachment e de que entrou o governo Temer teve aquela mudança toda dentro da empresa, de

chefias e tudo mais, e eu percebo de um direcionamento mais dia a dia mesmo (Entrevista 5). ... como não cobri nacional, temas mais polêmicos, eu senti pouco isso. Mas senti algo direto por um órgão de governo [estadual] ligar diretamente pra tentar bloquear o trabalho que a gente estava tentando desenvolver. Também fiz muito esporte e cultura, coisa que não era sensível, mas houve caso de ligarem do ministério da Cultura [ainda no governo do PT] por causa de matéria simples, nem lembro o que é. Isso é recorrente e depender de que tá por cima, as pautas mais polêmicas acabam não passando (Entrevista 6).

Eu vivi também, mas não tanto, sabe? [antes do desmonte] Antes também eu estava em outra posição, fazia pautas mais produzidas, de cunho mais social [menos hardnews], mas não que não tenha acontecido (Entrevista 8).

Já vivi muitas vezes [censura de material ou interferência política]. No auge do impeachment, as manifestações, as matérias eram muito editadas, cortadas as falas mais fortes das aspas que a gente coletava, as matérias sobre manifestações eram podadas. (...) [pergunta: Mas isso era nas manifestações contra ou a favor ou os dois lados, um em cada momento?] Vem desde antes do

impeachment (...) se criou um medo de cobrir, tinha interferência desde o governo Dilma. Por

exemplo, medo de usar a palavra "golpe", mesmo quando está entre aspas, havia esse receio. Havia (dessas coisas), como recentemente houve, a orientação pra não cobrir o caso Marielle. Tinha orientações do tipo "não usa a palavra golpe", enfim, evitar certas terminologias (Entrevista 14).

São situações de diversos períodos, há situação daquele momento [PT] que estava defendendo a comunicação pública e a EBC, mas não abria mão de pressionar, mas hoje segue acontecendo, pautas que não entram. Então hoje chega a ter palavras e expressões vetadas. Pautas que também não podem entrar (Entrevista 10).

Os entrevistados demonstraram a percepção de que as relações hierárquicas são muitas vezes conflituosas nas redações da EBC. De modo geral, os editores não têm cargos de chefia ou funções na empresa, no entanto acabam tendo certo poder frente aos colegas na medida em que têm sob sua responsabilidade a finalização dos processos de produção dos conteúdos. O próprio Manual de Jornalismo (2013) da EBC, como também já sublinhamos, lega aos editores grande responsabilidade sobre o conteúdo veiculado.

Além de dizer que o editor é o responsável pelo que se publica em termos de padrões de qualidade (por exemplo, de som e imagem), o manual destaca a edição como a “última etapa para se evitar o automatismo, fazer escolhas a serviço do cidadão, com o objetivo de dar-lhe uma abordagem diferente dos procedimentos rotineiros, visando a prover-lhe de elementos que subsidiem seu discernimento e senso crítico” (p. 46, grifo meu). Os relatos sobre censuras e interferências políticas na construção dos conteúdos indicam, em vários dos casos reportados nas entrevistas, que é na fase da edição que tais modificações acontecem ou se completam. Como detalhe, um dos entrevistados aponta que frequentemente editores são trabalhadores com mais experiência profissional (justificado pela responsabilidade da posição). Isto poderia

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implicar ser esta uma ocupação privilegiada para os trabalhadores herdados da Radiobrás, mas seriam necessários outros levantamentos para afirmá-lo.

Resta apenas um comentário com relação ao grifo “abordagem diferente dos procedimentos rotineiros”, no parágrafo anterior. Interessante como a frase denota a expectativa de que as redações teriam uma rotina única em todos os casos – pouco importa se para produzir conteúdo público ou com fins comerciais. Daí cabe legar ao editor, no último passo da linha de produção da notícia, a responsabilidade de quebrar rotinas a partir do material que lhe trazem para publicar. Esta concepção, num documento relevante como o manual, revela que não é proposto ao conjunto da redação – e da grade de programação – outro modo de agir, adequado a um jornalismo público, o que implicaria novas rotinas a todos os profissionais envolvidos, e não apenas aos editores.

Elencamos a seguir a percepção de jornalistas entrevistados frente a modificações no conteúdo na última etapa da produção, efetuadas, portanto, pelos editores, bem como comentários que ecoam as tensões nesta relação.

Também vi interferência de [reportagem] sair da minha mão de um jeito quase pronta, e no ar, eu ouvir que entrou 45 segundos de sonora. Ninguém, produtor, repórter, sabia que isso ia existir (Entrevista 1).

já aconteceu comigo e com outros colegas de editor vir dizer diante da matéria apurada por mim... editor diz que "G1 tá dando outra coisa" ou "UOL tá dando outra coisa", e eu, "ué, eu apurei, o que eles estão dando não é a realidade". Então, assim, nem é sempre a chefia que comanda, a própria visão da produção do trabalho, os editores que às vezes são quem pauta ... (Entrevista 6) eu tenho uma percepção muito clara de quando essa interferência política ficou maior. É claro que nunca deixou de ter, de uma certa forma, mas eu não sentia isso [no meu trabalho, ouvia os comentários]. No meu primeiro ano de EBC eu me sentia muito livre (...) e era muito respeitada a minha edição. (...) Teoricamente não tem porque editar tanto [excluir partes] de um material que a gente disponibiliza pra população. (...) [Pergunta: uma edição que esvazia o sentido acaba te prejudicando como profissional, não é?] É uma obstrução do meu trabalho (Entrevista 13). Eu já vi acontecer em trabalhos de colega, muito explícito, quanto a deixar de cobrir ou desestímulo a coberturas que a gente vinha fazendo por razões políticas. (...) eu tive uma intervenção importante [CONTA história sobre edição de reportagem sobre manifestação de rua que tirou o sentido político real do ato]. Isso foi muito criticado [pelos colegas na redação] e foi tratado internamente e eu não tenho problema nenhum em dizer que as chefias imediatas acataram a crítica, embora não tenha sido desfeito em termos de resultado [que chega ao cidadão, como por exemplo, uma errata] (Entrevista 16)