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CAPÍTULO II – SOBRE QUE COMUNICAÇÃO DEVERIAM PENSAR OS

2. Radiodifusão pública

2.1 Princípios reconhecidos internacionalmente

Tratamos nesta seção especialmente dos princípios formulados com apoio da Unesco para radiodifusão pública. Vale lembrar que os problemas gerados por sistemas de comunicação demasiadamente concentrados entraram no debate da instituição nos anos 1970-80, com a chamada Nova Ordem Mundial da Informação. As recomendações do Relatório McBride para suprimir barreiras à comunicação, garantir liberdade de imprensa, livre circulação de ideias e pessoas, liberdade aos jornalistas e fim dos monopólios mostraram a força de países “em desenvolvimento” naquele momento dos debates internacionais (também no contexto da crise do petróleo), mas suas diretrizes – que se estendiam a todas as nações – não foram tiradas do papel por força dos países do capitalismo central. Estados Unidos e Grã-Bretanha chegaram, inclusive, a sair da Unesco em meados dos anos 1980, deixando a instituição à míngua. Com a retomada do tema da comunicação pela Unesco, já nos anos 2000, passa-se a adotar a perspectiva da melhoria das legislações locais, em detrimento do debate de uma regulação do fluxo mundial de informação.

Para Mendell e Salomon (2011), ambos especialistas em regulação dos meios de comunicação e consultores da Unesco, as leis sobre radiodifusão devem caminhar em paralelo com a necessidade de proteção da liberdade de expressão, pedra angular da garantia da democracia. Nessa perspectiva, sempre que o livre fluxo de informações e ideias não for permitido, outros direitos humanos, assim como a própria democracia, estarão em perigo. Isto porque os mecanismos participativos dependem do livre fluxo de informações e ideias, uma

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vez que o engajamento dos cidadãos somente ocorre quando a sociedade está informada e tem meios para expressar-se. Segundo os autores, as restrições aos meios de comunicação devem estar previstas em lei de modo transparente, seguindo padrões de clareza e acessibilidade, e as legislações devem ser criadas de modo independente, com o objetivo de limitar a influência de certos grupos políticos.

Em estudo comparativo das possibilidades da radiodifusão pública a partir de oito exemplos representativos no mundo, Mendell (2011)62 busca aspectos que aproximam as experiências e legitimam as empresas analisadas. O principal é a vinculação do veículo à garantia do direito à liberdade de expressão, seguido pelos princípios da democracia e da igualdade. Outras características fundamentais são o pluralismo e a diversidade, para o quê é fundamental garantir mecanismos de independência editorial relativa aos governos e aos partidos políticos no poder63; financiamento público64 e uso de novas tecnologias. Segundo

Mendell (2011), esses aspectos devem ser aplicados para melhor atender a diversidade do público e proliferar a distribuição de conteúdo. Os veículos de radiodifusão pública devem colaborar também com o desenvolvimento tecnológico. O autor trata, portanto, do caráter institucional das emissoras, assim como dos objetivos éticos de sua existência.

O documento Comunicação Pública: Por quê? Como? (UNESCO, 2001), de apenas 20 páginas, sintetiza a atuação da Unesco nesse campo. Ele se pretende um guia para orientar os governos, especialmente os dos “países subdesenvolvidos”, sobre como implantar e desenvolver as melhores práticas relativas ao tema. Os princípios da Unesco estão expressos na Lei que permitiu a criação da EBC. Em resumo,

62 São comparados os modelos dos seguintes países: Japão, Tailândia, África do Sul, Austrália, França, Reino Unido e Polônia. O livro foi publicado no Brasil apenas em 2011, em parceria da Unesco com a EBC, mas a primeira edição, em inglês, é de 2000. Não é abordado qualquer exemplo da América Latina porque, segundo Mendell, os serviços do gênero são [ou eram à época da pesquisa] embrionários na região. O autor observa semelhanças e diferenças nos seguintes aspectos principais: a) serviços prestados, por exemplo, quais e quantas emissoras operam em dado território; b) mandato, ou seja, a missão estabelecida legalmente para cada entidade; c) a estrutura de governança, quer dizer, se há conselhos e diretorias e se o modo como são nomeados e organizados espelham maior ou menor independência com relação aos governos; d) financiamento como revelador do grau de independência possível – não apenas dos governos, mas também do modelo comercial (MENDELL, 2011). 63 “A independência editorial é frequentemente promovida pela garantia de uma clara separação entre o órgão diretor, como responsabilidade geral pela organização, e os gerentes e editores, que são responsáveis pelo trabalho diário e pela tomada de decisões editoriais”. (MENDELL, 2011, p.16)

64 O autor argumenta para a centralidade do orçamento público para o bom funcionamento destes veículos assegurando que, não fosse necessário, não haveria necessidade destas emissoras – mercado e regulação eficiente supririam sua falta. Escreve que orçamentos e pagamentos devem garantir a continuidade das atividades das emissoras, com planejamento de longo prazo. Observa que quantidades moderadas e controladas de publicidade comercial podem ser benéficas para evitar manipulação estatal, mas que é preciso, também, evitar as pressões do mercado. A fonte de recursos considerada melhor por Mendell é a da taxa paga pelos telespectadores, mas há uma série de senões a sua instituição, especialmente nos países onde tais serviços não são tradicionais porque aumentam a pressão do público contra a instalação dos veículos, o que também não é desejado (MENDELL, 2011).

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universalidade, diversidade e independência permanecem hoje, como ontem, metas essenciais para a Radiodifusão Pública. A estes três princípios devemos adicionar o quarto, particularmente importante quando o radiodifusor público existe lado a lado com os radiodifusores comerciais: a diferenciação. (UNESCO, 2001, p. 11)

A diferenciação entre atores da radiodifusão, segundo a entidade, se dá ao menos de três maneiras: com a exploração de novos gêneros, foco em nichos da audiência (mesmo que seja recomendado, também, não perder o contato com o todo) e nos temas abordados.

Para Lara (2012), apesar de sujeita a críticas, na medida em que ignora especificidades políticas, jurídicas, econômicas e sociais locais, esta nova forma de atuação da Unesco – a de estimular legislações nacionais – foi central para a retomada do debate sobre regulação da comunicação em diversos países, como no caso dos latino-americanos.

Del Bianco e Curado (2014) produziram análise de 81 artigos disponíveis na biblioteca do Observatório da Radiodifusão Pública na América Latina65, originados de diferentes universidades brasileiras, entre 2001 a 2013, sobre a definição de radiodifusão pública no Brasil pelos pesquisadores do país. Segundo o levantamento, os artigos basicamente aproximam público de não comercial – o que nos remete à construção de um “campo público” de TV, que reunia experiências não comerciais de diversos tipos, iniciativa da sociedade civil em diálogo com o governo que impulsionou o debate e ajudou a gerar o ambiente político ideal para a criação da EBC. De acordo com as pesquisadoras, todos os trabalhos analisados utilizam de interpretação semelhante à de Valente (2009), aqui apresentada: “companhia estatal com uma estrutura institucional que lhe garanta autonomia de gestão e financeira” (p. 94). Temos, mais uma vez, autonomia/independência como centrais para a realização da comunicação pública.

As pesquisadoras observam que, além disso, “o conceito de radiodifusão pública não se limita à sua origem administrativa. O fator de relevância é identificar se as emissoras atendem às demandas educativas, culturais e informativas da sociedade” (DEL BIANCO E CURADO, 2014, p. 6). Elas informam ainda que é possível constatar que os pesquisadores buscam analisar se as emissoras atuam conforme esses princípios e também por aqueles delineados pela Unesco (2001). Com base nesses princípios, os trabalhos analisados costumam concluir que não há emissoras públicas no país.

Para esta pesquisa, sendo o documento da Unesco um norteador de princípios, parece bastante claro que nem sempre os estandares propostos nele serão alcançados – percepção que parece, inclusive, estar considerada no próprio documento. O texto deixa claro que esse ideal precisa ser perseguido, mas que seria difícil, ou até ingênuo, supor que pode ser completamente

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alcançado em qualquer contexto. Mesmo a britânica BBC, o caso mais reverenciado no mundo, não espera de si total independência, mas lança mão de mecanismos para manter “um braço de segurança” (UNESCO, 2001). Outras afirmações no mesmo sentido: “Radiodifusores públicos devem providenciar informação que permita aos ouvintes acessar a informação para formar a ideia mais justa possível dos eventos; se não objetiva, a informação deveria ser ao menos imparcial” (UNESCO, 2001, p. 16, tradução nossa) e “O objetivo é fazer a relação entre público, radiodifusor e governo tão transparente quanto possível e desencorajar qualquer tentativa de interferência por parte do governo” (UNESCO, 2001, p. 22, tradução nossa) 6667. Nesse sentido,

não soa justo dizer, por exemplo, que não temos emissoras públicas no Brasil pois não alcançamos o disposto no documento. Avaliação desse tipo poderia ser feita, talvez, em caso de concluir que não há, nem mesmo, a busca por alcançar tais princípios.

No quadro a seguir há uma síntese da correspondência entre alguns dos princípios de funcionamento da EBC, elencados no art. 2º da Lei de criação da empresa, e também algumas de suas competências, com as características recomendadas pela Unesco.

66Original: “Public broadcasters must provide information enabling listeners to form the fairest possible idea of

events; if not objective, the information should at least be unbiased.” (p.16) “The goal is to make the relationship between public broadcasting and government as transparent as possible and discourage any attempt by government to interfere.” (p. 22)

67 Original: “Public broadcasters must provide information enabling listeners to form the fairest possible idea of

events; if not objective, the information should at least be unbiased.” (p.16) “The goal is to make the relationship between public broadcasting and government as transparent as possible and discourage any attempt by government to interfere.” (p. 22)

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Quadro 8 – Correspondência entre princípios: Unesco – EBC UNESCO PRINCÍPIOS DA EBC68 (art. 2º) COMPETÊNCIAS DA EBC (art. 8º)

Universalidade II - promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo;

I - implantar e operar as emissoras e explorar os serviços de radiodifusão pública sonora e de sons e imagens do Governo Federal;

II - implantar e operar as suas próprias redes de Repetição e Retransmissão de Radiodifusão, explorando os respectivos serviços;

III - estabelecer cooperação e colaboração com entidades públicas ou privadas que explorem serviços de comunicação ou radiodifusão pública, mediante convênios ou outros ajustes, com vistas na formação da Rede Nacional de Comunicação Pública;

Diversidade III - produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; IV - promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente;

V - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família;

VI - não discriminação religiosa, político partidária, filosófica, étnica, de gênero ou de opção sexual;

IV - produzir e difundir programação informativa, educativa, artística, cultural, científica, de cidadania e de recreação;

Independência VIII - autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de

conteúdo no sistema público de radiodifusão; e

IX - participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira.

VIII - exercer outras atividades afins, (que lhe forem atribuídas pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República)69 ou pelo

Conselho Curador da EBC; e (Revogado pela Medida Provisória nº 744, de 2016 / posterior Lei nº 13.417, de 2017 por conta da extinção do Conselho Curador)

Diferenciação I - complementariedade entre os sistemas privado, público e estatal; Fonte: elaboração da autora.

68 A numeração é a original dos incisos na Lei 11.652/ 2008.

69 No art.8, os incisos VI e VIII acabam por afastar a EBC de seu ideal de autonomia ao lhe outorgar obrigações tais como a “transmissão de atos e matérias do Governo Federal”, como visto em Ramos (2012).

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