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“Daniel 8 só pode ser entendido à luz de Daniel 2 e Daniel 7”

Erro 19: dar relevância a uma irrelevância

A penúltima alegação de Reis contra a ideia de um “chifre pequeno” romano no capítulo 8 de Daniel tem que ver com o fato de que os romanos só destruíram o templo dos judeus em Jerusalém no ano 70 d.C., momento em que tanto a estrutura quanto os rituais já não significavam mais nada do ponto de vista tipológico. Nas palavras dele – “quando Roma destruiu o templo e a cidade de Jerusalém em 70 A.D., estes já não tinham mais nenhum significado; a cidade rejeitara ao Messias crucificando-o, o véu do Santíssimo se rasgou de alto abaixo, anulando os rituais e o templo nunca foi ‘restaurado’, falhando assim a profecia de Dan 8:14”.

Ou seja, para Reis, o santuário judeu ainda precisava ter algum valor bíblico tipológico para que pudesse ser enquadrado no esquema profético envolvendo o “chifre pequeno” de Daniel 8. Contudo, uma vez que tipologicamente ele perdera seu sentido de existir devido ao sacrifício de Jesus, então sua destruição pelos romanos não pode ter relação alguma com a profecia de Daniel. E, para Reis, em função de o fato da tipologia ter se cumprido completamente em Cristo, a compreensão adventista tradicional em torno de Daniel 8:14 é falha.

Há alguns problemas com este entendimento de Reis. O primeiro deles é uma má compreensão do texto do capítulo 8 de Daniel, o que é grave para quem arvorou fazer uma “leitura próxima” do texto bíblico. Seu argumento leva em conta que era necessário que o templo terrestre tivesse relevância tipológica para se enquadrar nos requisitos proféticos.

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O erro desta abordagem se deve à falta de atenção acerca de dois blocos bem marcantes em relação ao todo de Daniel 8 no que diz respeito às ações do “chifre pequeno”. Neste capítulo, desde o verso 3 até o verso 14 encontra-se o registro de todo o conteúdo da visão. Naturalmente, esta seção abarca todos os símbolos vistos. Do verso 15 até o verso 26, por outro lado, está a intepretação dada por Gabriel a este conteúdo da visão (v. 1-14). O famigerado “chifre pequeno” aparece nestas duas subdivisões do capítulo. Na primeira (3-14), o conteúdo da visão, ele aparece direta e indiretamente entre os versos 9 e 14; na segunda (v. 15-26), a interpretação da visão, entre os versos 23 a 25.

No todo deste esquema, no que diz respeito ao “chifre pequeno”, todas as menções ao santuário (v. 11, 13, 14) não ocorrem na interpretação dada por Gabriel (v. 23-26), mas apenas no conteúdo da visão vista por Daniel (v. 9-14). Isto significa, então, que Gabriel separa o santuário visto na visão da explicação que ele dá a Daniel acerca da atuação deste chifre contra o povo judeu. Noutras palavras, o que anjo explica para o profeta é apenas o que tem que ver com as coisas que ocorreriam com os judeus (v. 23-25). É por este motivo que Gabriel não instrui a Daniel, por exemplo, acerca do tempo em que o santuário foi entregue nas mãos do “chifre pequeno” (v. 13-14) quando fala disto ao final de sua interpretação (v. 26).

Entendido desta maneira, com base apenas no capítulo 8 e não em nenhum outro diga-se de passagem, não é inverossímil concluir que após a aparição do “chifre pequeno” no verso 9, verso que abarca um longo período, pois fala da história desde sua aparição até sua chegada à “terra

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gloriosa” (o que durou anos), a atuação deste chifre, no bloco da visão, não tem que ver com o povo judeu nem com seu santuário. Não é sem propósito que suas ações são direcionadas, nesta seção, não para à Terra, mas para o Céu e lá se concentram (v. 10-14). Logo, por este motivo, conclui-se que o santuário abordado na visão de Daniel, por não ser explicado por Gabriel, não era o santuário judeu, o santuário terrestre, mas um outro santuário (com base apenas neste capítulo), “talvez” o do céu, pois é para lá que o “chifre pequeno” direciona seus ataques e isto extrapola e muito as fronteiras territoriais e identitárias judaicas.

Em suma, a atuação do “chifre pequeno” é descrita da seguinte maneira nesse capítulo – (1) ele surge de um dos “quatro ventos”, de um dos pontos cardeais (no texto, provavelmente o ocidente), e em seguida se fortalece para o sul, para o oriente e finalmente chega na “terra gloriosa”, a Judeia, onde está Jerusalém, fortalecimento este que deve ter durado anos (v. 9); (2) depois de já estabelecido nesta cidade, sem indicação qualquer de tempo, ele então cresce para o céu, atinge todos os que lá estão e lá ataca um santuário (v. 10-11); (3) em sequência, o povo de Deus e este santuário ficam sob seu poder (v. 12a); (3) em seguida, com o povo de Deus já subjugado e sem este santuário, ele ofusca a verdade e prospera (v. 12b).

Os versos 13 e 14 não descrevem ações diretas do “chifre pequeno”. Nestes versos, este chifre é apenas o assunto da conversa entre dois “santos” na qual um pergunta acerca do tempo de duração destas coisas ao passo que o outro responde que só após “2300 tardes e manhãs” é que

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este santuário seria restaurado (v. 14). E em absoluta conformidade com esta realidade textual do capítulo 8 de Daniel é que a posição tradicional adventista do sétimo dia, afirma que o santuário a ser purificado em 8:14 não é o terrestre, mas o celestial (o livro de Hebreus esclarece) e que em virtude do período histórico abarcado pelos eventos descritos no capítulo, entre outras razões, as “2300 tardes e manhãs” devem ser entendidas como 2300 anos para os quais, neste capítulo, nenhuma explicação é apresentada por Gabriel quanto ao seu início (v. 26).

Esta compreensão faz com que a alegação de Reis, de que a destruição do templo e da cidade no ano 70 d.C. pelos Romanos não se encaixa no cenário profético do capítulo 8 de Daniel em virtude de neste ano tanto a estrutura quanto seus rituais já terem perdido seu valor tipológico, caia por terra ou se torne irrelevante, pois tal valor tipológico para este santuário terrestre simplesmente não é exigido no cenário profético deste capítulo.

Além disso, esta compreensão também lança luz sobre dois pontos relacionados ao capítulo 9. Primeiro, após as súplicas de Daniel, Gabriel, o mesmo do capítulo 8, aparece para interpretar a visão. Porém, posto que tudo já fora anteriormente interpretado acerca deste “chifre pequeno” em relação ao povo judeu (8:23-25), a única coisa restante a ser explicada era o tempo que não fora contemplado em sua explanação (8:26). O anjo então diz que a origem deste tempo começa com o próprio povo judeu, quando a ordem para reconstruir sua cidade, Jerusalém, fosse promulgada

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(9:24-27). Ele, todavia, lembra o profeta de que isto aconteceria em tempos difíceis (9:25).

Segundo, após Gabriel deixar claro para Daniel que este tempo profético começaria com seu povo, ele lembra o profeta de que apesar da cidade e do templo serem reconstruídos, eles seriam novamente arruinados pelo “povo de um príncipe” (9:26), mas somente depois da morte do “Ungido” (9:26), quando ele já tivesse feito cessar os sacrifícios deste santuário (9:27). Este “povo de um príncipe” é em seguida chamado de “assolador”, o que pratica “abominações” (9:27). Não sem motivo Jesus reconheceu esta profecia como se cumprindo naquilo que os romanos fizeram no ano 70 d.C. ao matarem incontáveis judeus e destruírem o templo (cf. Mt 24:15), período em que tanto a estrutura quanto os rituais do templo não tinham mais valor tipológico.

Assim, portanto, a alegação de Reis não tem credibilidade alguma pois não contraria em nada o que assevera o entendimento adventista tradicional. Noutras palavras, Reis está dando relevância (ausência de valor tipológico do santuário) ao que profeticamente já seria irrelevante (os sacrifícios cessariam e o santuário seria destruído).