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língua hebraica e a exacerbação de um “advérbio” A primeira coisa que Reis alega para tentar demonstrar, a partir do

“Daniel 8 só pode ser entendido à luz de Daniel 2 e Daniel 7”

Erro 23: língua hebraica e a exacerbação de um “advérbio” A primeira coisa que Reis alega para tentar demonstrar, a partir do

texto em sua forma original hebraica, que não há nenhuma exigência profética que requeira que o “chifre pequeno” de Daniel capítulo 8 seja maior do que os reinos anteriores, medo-persa (carneiro) e grego- macedônico (bode), tem que ver com o que ele julga ser um “advérbio hebraico de intensidade”. De acordo com sua interpretação, este “advérbio

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hebraico de intensidade” só é utilizado para descrever o engrandecimento da Grécia (bode). Logo, segundo seu raciocínio, o maior dos reinos neste texto não é outro senão a própria Grécia, representada pelo bode.

Desta forma, pouco importaria, para ele, se na história Roma foi realmente o maior império nos aspectos geográfico-temporais pelo simples fato de que da perspectiva do texto hebraico o maior deve ser o império de Alexandre o Grande. E uma vez que Antíoco é um rei selêucida cuja origem remonta a este reino, então ele se torna o melhor candidato para preencher essa vaga de “chifre pequeno” no texto bíblico. Noutras palavras, em hebraico, Daniel 8 não demanda que o último dos reinos, no texto, seja o maior. É isto o que Reis chama de “progressão de grandeza” e que, para ele, não é requerida no idioma original.

O texto bíblico, no que diz respeito ao carneiro (medo-persa), ao relatar seu aparecimento (v. 3) e seu desaparecimento (v. 7), descreve seu engrandecimento no verso 4 nos seguintes termos: (1) “nenhum dos animais lhe podia resistir”; (2) “nem havia quem pudesse livrar-se do seu poder”; (3) “ele, porém, fazia segundo a sua vontade”; e (4) “assim se engrandecia [gadal]”. Reis está corretíssimo ao constatar que aqui não há nenhuma palavra específica que funcione como uma espécie de “modificador de intensidade”, o que indicaria uma “progressão de grandeza” deste reino, que é o que ele nega que haja no texto bíblico.

Mas por alguma razão, desatenção ou conveniência, ele indiretamente ignora estas quatro afirmações acerca da grandeza do

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carneiro, o império medo-persa. Todas elas são asserções ou apresentações da sua grandeza. A última delas, a propósito, nada mais é do que uma causa que provoca as outras três. O verbo hebraico gadal

(crescer, engrandecer, se tornar grande), pelo modo como foi empregado no original (modo hifil), indica o quão grande era este reino. Este modo do verbo hebraico simplesmente tem como função indicar a causa de uma ação. Assim, com base nisto, o que se deve entender é que o resultado do carneiro ter se tornando grande (gadal) tem que ver com aquelas três descrições acerca do que ele fez: (1) “nenhum dos animais lhe podia resistir”; (2) “nem havia quem pudesse livrar-se do seu poder”; (3) “ele, porém, fazia segundo a sua vontade”.

Em relação ao bode, o segundo animal da visão e o qual aponta para o reino grego-macedônico de Alexandre o Grande, seu surgimento está registrado no verso 5; o seu fim, por sua vez, no verso 8. Neste espaço ou intervalo (v. 5-8) tudo o que é dito acerca dele ou é uma descrição de si mesmo ou tem relação direta com o animal anterior, o carneiro. Isto torna claro e evidente o modo pelo qual Daniel resolveu descrever as duas entidades representadas. Enquanto o primeiro (carneiro) é descrito em termos do que fez a outros reinos, o segundo (bode) é descrito em termos do que fez ao reino anterior, o primeiro reino na visão (o carneiro), o império medo-persa.

Ou seja, até aqui, não há menção de grandeza alguma do bode em sua relação com o carneiro e nem com outro reino. Isto, aliás, pode até ser o prenúncio de um evento histórico já que se sabe que o exército de

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Alexandre, mesmo em menor número (alguns estimam 50 mil soldados), conseguiu derrotar as tropas de Dario III (cerca de 100 mil) na batalha de Gaugamela em 331 a.C. Foi este triunfo, se ressalta, que abriu caminho para a derrocada dos persas e o posterior engrandecimento do monarca grego. Isto condiz exatamente com a previsão de Daniel quando ele afirma que – “O bode se engrandeceu [gadal] sobremaneira [meod]” (v. 8) – após ter derrotado o carneiro. Noutras palavras, ao contrário do carneiro (Média-Pérsia) que já era grande antes do seu encontro com o império sucessor (v. 4), o bode (Grécia) só se tornou grande após sua vitória sobre seu antecessor (v. 8).

O “chifre pequeno”, por outro lado, é descrito no texto bíblico original hebraico de modo peculiar. Ele só entre em cena após a saída por completo de todos os reinos anteriores. No verso 9, no texto semítico literalmente está escrito: “de um deles saiu um chifre pequeno”. Como já demonstrado, este pronome “deles” remete ao substantivo “ventos” no verso 8 e com ele faz coesão. Sabendo disto, então têm-se no texto a entrada em cena deste chifre a partir da saída por completo dos quatros outros reinos subsequentes (“quatro chifres”) ao império de Alexandre representado pelo bode no verso anterior. Isto ainda é reforçado pela interpretação dada à visão por Gabriel no verso 23. O anjo diz ao profeta que “no fim dos reinados deles” é que apareceria o tal “chifre pequeno” como um “rei de feroz catadura [aparência] e entendido em intrigas”. Noutras palavras, este chifre pequeno é descrito de modo a torná-lo independente de todos os demais reinos anteriores representados pelos seus respectivos símbolos. Nesta descrição, contudo, no mesmo verso 8

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há uma menção à força deste reino. Segundo o texto, este chifre se “tornou muito forte [yeter]” para algumas direções da terra antes de chegar à “terra gloriosa”, isto é, a Judeia e especificamente Jerusalém, a cidade do templo.

Pela lógica interpretativa de Reis, todo este modo de expor o surgimento e o desaparecimento dos reinos na visão de Daniel não apresenta nenhuma “progressão de grandeza”. Essa suposta constatação significaria que o último dos reinos, representado pelo “chifre pequeno”, não deve ser considerado o maior de todos eles. Caso houvesse esse engrandecimento progressivo no texto bíblico, raciocina Reis, isto sim favoreceria a opção por Roma como a entidade representada por este símbolo. Por isso, Reis entende que o maior dos reinos é o bode (Grécia). Como já dito, este animal é o único que, ao ter seu engrandecimento descrito, tem um “advérbio hebraico de intensidade por excelência”, como destaca Reis.

Simplesmente, há vários problemas com este seu raciocínio interpretativo, desde o desconhecimento da língua original, o hebraico, passando pela formulação de silogismos que se refletem em sua interpretação e até mesmo uma aparente incongruência de sua opinião com um fato histórico já reconhecido por ele em seu próprio artigo. Para alguém com olhar mais apurado, percepção crítica e conhecimento do texto em sua forma original, a proposta de Reis se mostra como um trabalho feito às pressas, por uma pessoa que dedicou pouco tempo de reflexão sobre o texto bíblico, e que tem pouco conhecimento acerca do que os críticos de seu ponto de vista realmente afirmam e defendem.

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O primeiro erro que indica falta de destreza de Reis tem que ver com a seguinte afirmação acerca do carneiro, uma representação do reino medo-persa. Ele diz: “Primeiramente, o hebraico utiliza a raíz [sic] gadal

(“crescer, grande”) para descrever os personagens aqui; Dan 8:4 diz que [o] carneiro ‘cresceu’ (wehigdîl, 8:4) sem nenhum modificador de intensidade” (ênfase acrescida). Reis está certo aquando afirma que o verbo hebraico para indicar o crescimento do carneiro é o verbo gadal

(flexionado wehigdîl) cujo sentido é “crescer”, “se tornar grande” ou como algumas Bíblias vertem, “se engrandeceu”.

Mas, por outro lado, ele está errado quando sugere que pela falta de um “modificador de intensidade” específico no texto, um advérbio de intensidade, por exemplo, a própria ideia acerca da intensidade da grandeza deste reino é comprometida. Talvez Reis desconheça o fato de que, no hebraico, não há a obrigatoriedade de se empregar nenhuma palavra específica como em outros idiomas (grego e português, por exemplo) para indicar a intensidade de uma ação, normalmente os advérbios de intensidade (muito, sobremaneira, bastante etc.).

Neste idioma, uma das formas de indicar a intensidade de uma ação é a repetição de termos ou de ideias já que, como se sabe, pelo menos os

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que estudam esta língua, o léxico hebraico é pobre em advérbios.9 Assim,

não parece ser metodologicamente sensato depositar toda a sustentação de uma interpretação na presença de uma palavra hebraica que primariamente é um adjetivo (meod), que pode ser um substantivo, mas que também pode exercer a função de advérbio de intensidade no texto desde que alguns requisitos sejam cumpridos como, aliás, é o caso em Daniel 8:8. Em relação ao carneiro, por exemplo, a intensidade da grandeza está explícita por meio das já mencionadas afirmações – (1) “nenhum dos animais lhe podia resistir”; (2) “nem havia quem pudesse livrar-se do seu poder”; (3) “ele, porém, fazia segundo a sua vontade” – da quais a última – “(4) ‘assim se engrandecia [gadal]’” – é apenas uma causa (verbo no modo hifil) que provoca as ações enumeradas acima.

O segundo erro de Reis tem que ver com o menosprezo dado a outros vocábulos até mais importantes para a interpretação do que o advérbio de intensidade meod, tão exacerbadamente valorizado por ele. É o que se observa em sua fala: “A diferença marcante entre as três expressões de grandeza é que meod (‘abundantemente, sobremaneira’) descreve apenas o bode, e nunca o carneiro ou o ‘chifre pequeno’. Esse fato é de extrema importância porque meod é o advérbio hebraico de intensidade por excelência”. Noutros termos, para Reis, tudo depende da presença ou da ausência da palavra hebraica meod para descrever o

9 A pobreza deste idioma em advérbios, em realidade, constitui-se sua riqueza posto que

para superar esta realidade limitante outras formas de expressar ideias adverbiais foram desenvolvidas.

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engrandecimento dos reinos em detrimento de outras palavras com características até mais relevantes para descrever estes mesmos engrandecimentos.

Em termos sintático-gramaticais, o vocábulo mais importante numa oração dificilmente será um advérbio, seja ele de intensidade ou não. Por definição, uma oração é um grupo de palavras combinadas cujo núcleo é o verbo. Ou seja, na oração, tudo gira em torno de um verbo, e a maneira como são utilizados já auxilia o ato interpretativo. Logo, é a partir do modo como os verbos hebraicos foram empregados que se tem a chave para a interpretação acerca da possibilidade de uma “progressão de grandeza” no texto. Se textualmente comprovada, essa possibilidade forçará o intérprete a concluir que o “chifre pequeno” é o maior dos reinos.

Advérbios, por sua vez, estão a serviço dos verbos. E ainda que sirvam para modificá-los, dificilmente serão a chave para se entender as orações que, por definição, dependem dos verbos. Isto ainda é reforçado pelo fato já mencionado de neste idioma bíblico existir pobreza de advérbios, e ideias adverbiais poderem ser transmitidas mesmo sem a presença de um advérbio específico. O caso da descrição da grandeza do carneiro (v. 4) é um exemplo disso. Assim, portanto, Reis precisará de algo maior do que a exacerbação de um “advérbio” para evitar a “progressão de grandeza”, a qual exigiria que o “chifre pequeno” seja considerado o maior dos reinos no texto hebraico de Daniel 8.

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