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“Daniel 8 só pode ser entendido à luz de Daniel 2 e Daniel 7”

Erro 24: ignorar a força dos verbos hebraicos

Entendido o fato de que, em hebraico, há pobreza de advérbios e que ideias adverbiais podem ser transmitidas a despeito da presença de palavras específicas que exerçam esta função sintática, é necessário que se reconheça que os verbos são as palavras mais importantes para determinar esta questão interpretativa acerca de qual dos reinos neste capítulo foi o maior.

E quando se fala em verbos hebraicos, certas peculiaridades deste idioma no que diz respeito à esta classe de palavras devem ser minimamente entendidas e compreendidas. Diferentemente do português cujas orações gramaticais tendem a começar pelo sujeito (quem pratica uma ação) para só então os verbos serem introduzidos (a ação praticada pelo sujeito) e serem seguidos por complementos, em hebraico, a prática mais comum é começar a oração gramatical pelo próprio verbo. Por exemplo, em português se diz: eu interpreto o texto de Daniel. Em hebraico, se diria: interpreto eu o texto de Daniel. Nada mais plausível do que começar a oração gramatical pelo verbo já que ele é a palavra mais importante da oração.

Isto tudo só ratifica a importância que este idioma dá a esta classe de palavras além de ajudar a entender por que a ênfase de Reis na presença de um advérbio para descrever o engrandecimento do bode (v. 8) não deve ter primazia interpretativa. Os verbos, neste idioma, não possuem como característica marcante o tempo da ação (passado,

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presente e futuro), coisas com as quais os ocidentais estão bastante acostumados em virtude dos sistemas verbais de seus idiomas terem esta propriedade. Nesta língua semítica, o verbo tem como principal particularidade seu modo. Essa característica do emprego hebraico dos verbos deixa a questão do tempo da ação em segundo plano.

O tempo do verbo, em hebraico, é determinado pelo contexto, mas tendo como ponto de partida a natureza da ação, se completa (perfeito) ou se incompleta (imperfeito). Noutros termos, a partir do modo como os verbos em hebraico foram utilizados na descrição do engrandecimento dos três símbolos (reinos) mais enfatizados em Daniel 8 (carneiro, bode e “chifre pequeno”) tem-se uma chave interpretativa para auxiliar na constatação ou não da presença de uma “progressão de grandeza” neste capítulo e até perceber por que razão o profeta utilizou uma palavra com função adverbial para descrever o engrandecimento do bode (v. 8).

No que se refere ao carneiro, o primeiro animal e que representa o reino medo-persa, os verbos que mais descrevem suas ações, como já apresentados, estão expostos no verso 4. A fim de que estas marcas verbais hebraicas fiquem bastante visíveis, aqui está uma tradução formal, mais próxima possível do idioma de origem, o hebraico, sem preocupação com à fluência do português, o idioma de destino: “vi eu o carneiro que chifrava para oeste, norte e sul e todo animal não resistia-lhe nem ninguém se livrava de suas mãos. E ele fez conforme sua vontade e se engrandeceu”. Preste atenção nestes dois verbos grifados em itálico, os

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seguintes verbos flexionados: “ele fez” (fazer) e “se engrandeceu” (engrandecer-se).

No hebraico, estes dois verbos possuem uma estreita relação semelhante à relação de causa e efeito em virtude do modo como eles foram empregados no texto profético. O primeiro verbo, flexionado como “ele fez” está num modo chamado qal; o segundo deles, “se engrandeceu”, no modo hifil. Enquanto verbos em modo qal indicam ações diretas, verbos no hifil indicam a causa dessas ações diretas. Ou seja, enquanto o

qal (“ele fez”) é um efeito provocado por uma causa, o hifil (“se engrandeceu”) é a causa que provoca este efeito. Dito isto em outros termos e de forma a interpretar este fato, a razão de no texto hebraico o carneiro “fazer” as coisas conforme sua própria vontade é porque ele “se engrandecia”. Simplesmente, o engrandecimento do reino persa consistia em fazer o que bem desejava. Assim, note como há uma ideia adverbial embutida no relacionamento entre estes dois verbos já que por “advérbio” se entende aquilo que altera algo no sentido de um verbo em particular.

Em relação ao bode, que representa o império greco-macedônico de Alexandre o Grande, este mesmo fenômeno verbal hebraico ocorre no texto bíblico, todavia, desta vez, com a utilização de uma palavra específica que exerce uma função adverbial na oração gramatical, a palavra meod. Isto, obviamente, como o próprio Reis reconhece, indica uma diferença em relação ao engrandecimento dos dois animais, já que os verbos para descrever este engrandecimento de cada um dos reinos é exatamente o mesmo, o verbo gadal (“crescer”, “engrandecer”, “se tornar grande”).

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Porém, lembre-se de algo aqui já mencionado e a ser recordado agora novamente.

Diferentemente do carneiro que tem seu engrandecimento descrito de modo independente de qualquer outro animal (v. 3-4), quase toda a descrição textual do bode, presente entre os versos 5 a 8, com exceção do verso 5 e a parte final do verso 8, tem a ver com sua relação com o símbolo anterior, o carneiro. É somente no final desta relação entre estas duas entidades que o bode é descrito como tendo se engrandecido “sobremaneira” (meod). Para Reis, a presença desta palavra adverbial no texto para se referir ao bode é o que faz toda diferença e o que determina este reino (Grécia) como o maior. Mas como será possível perceber em instantes, a força desta palavra se deve primeiro à força dos verbos hebraicos já que, como se sabe, advérbios estão à serviço dos verbos e não o contrário.

Seguindo a mesma estratégia didática a fim que se entenda o relacionamento entre os verbos hebraicos, aqui está uma tradução do texto original de maneira mais formal possível, mantendo a estrutura do idioma de origem sem, contudo, sacrificar o entendimento no idioma de destino. Objetivando enfatizar os verbos mais relevantes para este assunto, esta tradução partirá do final do verso 7 e início do verso 8: “[...] e não existia quem livrasse o carneiro de suas mãos [...] então a cabra macho, o bode, se engrandeceu muito”. Novamente, observe os verbos destacados em itálico, o verbo “não existia” (existir) e o verbo “se engrandeceu” (engrandecer-se). Porém, também perceba que o último deles vem

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acompanhado do advérbio de intensidade “muito”, meod em hebraico. Assim como no verso 4 na descrição do carneiro, a relação entre estes verbos é uma relação de causa e efeito pois eles também estão no modo

qal (efeito) e hifil (causa). Logo, enquanto “não existia” (qal) é um efeito provocado por uma causa, “se engrandeceu” (hifil) é uma causa que provoca este efeito. Ou seja, não existia ninguém capaz de salvar o carneiro (persas) das mãos do bode (gregos), ideia presente no modo qal

(“não existia”), por causa de seu engrandecimento, ideia presente no modo

hifil (“se engrandeceu”).

Isto condiz perfeitamente com toda a maneira como o bode é descrito no texto. Quase toda sua apresentação é uma descrição daquilo que ele fez ao carneiro. Ademais, isto também ajuda a explicar por que o emprego do advérbio de intensidade meod (“muito”) é necessário. Em face do fato de que o bode (Grécia) derrotou o carneiro (Pérsia) que já era grande pelo que fizera (v. 4) e o mesmo verbo é empregado para descrever ambos os engrandecimentos (gadal), dos impérios persa e grego, a única maneira de mostrar que o bode se tornou grande pelo que fez ao carneiro já que ele é majoritariamente descrito pelo que fez a este animal, é mostrar que seu engrandecimento foi maior. E Daniel escolheu fazer isto pelo emprego da palavra meod que no texto funciona como advérbio. Isto é, o engrandecimento da Grécia vem pelo que ela fez à Pérsia, mas foi seu engrandecimento maior que lhe permitiu derrotar este reino.

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Disto se conclui, e Reis é o primeiro a concordar com este desfecho em função da tese que defende quanto a esta questão em particular, que na relação entre os dois primeiros animais, o carneiro e o bode, entre persas e gregos, há marcadamente uma “progressão de grandeza”. Resta agora apenas saber se esta grandeza progride para o próximo reino, o “chifre pequeno”, o que favoreceria a opção por Roma como entende a posição tradicional, ou se ela termina por aqui o que ajuda quem opta por Antíoco como é o caso de Reis.

Erro 25: falta de rigor metodológico e respeito ao contexto