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“Daniel 8 só pode ser entendido à luz de Daniel 2 e Daniel 7”

Erro 15: um falso dilema

Tendo entendido as semelhanças e as diferenças entres os dois capítulos, tem-se então a chave para a compreensão de um problema ou dilema em relação à posição tradicional que Reis levanta. E diga-se de passagem, isto é algo bastante pertinente devido ao fato da procedência dos dois chifres pequenos terem origem textualmente diferente nos

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capítulos 7 e 8, mas serem considerados pelos intérpretes da posição tradicional como símbolos da mesma entidade, o império romano. Nas palavras do próprio Reis, este cenário de diferenças entre os símbolos dos referidos capítulos:

cria um impasse para sua interpretação [tradicional]: enquanto o “chifre pequeno” surge dentre os dez “chifres” do quarto animal em Dan 7:8, este deve necessariamente sair de um dos “ventos” em Dan 8:9 para que seu argumento tenha sentido. Logicamente, então, devemos escolher uma das duas opções: (1) ou o “chifre pequeno” sai da mesma entidade em Daniel 7 e 8 ou; (2) o “chifre pequeno” refere-se a entidades distintas nestes capítulos.

Diante deste impasse apresentado por ele, o dilema da interpretação tradicional é explicar satisfatoriamente como é possível conceber que estes dois chifres pequenos, um no capítulo 7 e outro no capítulo 8, representem a mesma entidade apesar de terem origem textualmente diferente. Enquanto, no capítulo 7, o “chifre pequeno” surge dentre os dez chifres do animal terrível e espantoso (v. 8) este mesmo chifre, no capítulo 8, surge dos “quatro ventos do céu” (v. 8-9). Antes, porém, de responder à alegação de Reis, é válido evidenciar algumas estruturas mentais que permeiam o dilema por ele levantado. Da forma como se apresenta, o seu dilema não considera uma terceira via: a possibilidade de o mesmo “chifre pequeno” proceder textualmente de símbolos diferentes nos capítulos 7 e 8 e ainda assim representarem na história a mesma entidade, o mesmo rei ou reino.

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Ou seja, do modo como este dilema é apresentado por Reis, dá-se a impressão de que a posição tradicional é inconsistente por estar numa espécie de beco sem saída – se julgar que os chifres pequenos dos capítulos 7 e 8 são os mesmos, então estes chifres, por representarem a mesma coisa, necessariamente devem ter a mesma origem, o que não acontece no texto; por outro lado, se reconhecerem que a procedência é textualmente diferente, o que realmente acontece, então também deverão reconhecer que se tratam de entidades diferentes, isto é, reinos distintos em cada um dos capítulos.

A fim de que os intérpretes da posição tradicional saiam deste dilema proposto por Reis, é necessário que primeiro se disseque o próprio dilema. Primeiro, este impasse se baseia numa concentração exacerbada das diferenças entre os capítulos em detrimento de suas semelhanças. Reis se concentra nas diferenças de procedência entre os dois chifres pequenos dos capítulos 7 e 8 para criar este cenário de aparente encurralamento. Porém, como já afirmado, se as diferenças entre estes capítulos, o que inclui a procedência dos chifres, significam necessariamente diferenças de entidades, então as semelhanças entre eles devem implicar necessariamente igualdade de entidades representadas.

Dito isto, Reis precisa lidar com uma realidade textual: o “chifre pequeno” é o único símbolo que está presente nos dois capítulos para representar uma entidade, seja Roma ou Antíoco. Esta semelhança entre os capítulos, deve indicar igualdade de entidade, ou diferença delas? Pela

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lógica empregada por Reis – diferenças de símbolos nos capítulos indica necessariamente diferença de entidade – então conclui-se que as semelhanças de símbolos nos capítulos, mesmo que a procedência dos chifres seja diferente, significa igualdade de entidade. E para tornar o problema de Reis ainda maior, na relação dos capítulos 7 e 8, o único símbolo não semelhante, mas igual, é justamente o “chifre pequeno”. O que Reis deve fazer com essa igualdade? Achar que em virtude de terem procedências diferentes estes símbolos iguais significam entidades diferentes, ou seguindo a implicação de seu próprio raciocínio, pensar que se tratam da mesma entidade que por alguma razão é retratada com procedências diferentes? Agora o dilema se voltou para o próprio Reis.

O segundo erro do aparente cenário de encurralamento apresentado por Reis se dá pela sua falta de percepção nos capítulos 7 e 8 de que as diferenças de símbolos e nem as suas diferentes procedências indicam, necessariamente, diferença de entidade representadas. Deste modo, sendo isso percebido, abre-se então uma terceira via ou alternativa ignorada pelo seu dilema: a possibilidade de os dois chifres pequenos representarem a mesma entidade ainda que textualmente tenham procedências diferentes.

No capítulo 7, todos os quatro animais excêntricos procedem do mesmo lugar, a saber, do mar (7:2-3). Um destes animais que procedem do mar neste capítulo é o leopardo com quatro asas de ave e quatro cabeças (v. 6). Reis dificilmente negará que este animal é símbolo da Grécia já que, exceto pelos idealistas, isto é consenso no estudo de Daniel, dentro

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e fora do adventismo. Ou seja, pela lógica de Reis, se a entidade Grécia for novamente representada no capítulo 8, ela deverá também proceder do mesmo lugar, o mar, porque, para ele, a diferença de procedência entre os símbolos nos capítulos deve indicar, necessariamente, diferença de entidade.

Mas, para sua “surpresa” e talvez decepção também, esta mesma entidade é representada no capítulo seguinte não mais como um leopardo, mas como um bode, e não procedendo do mar, mas procedendo do ocidente (v. 5). Noutras palavras, esta mudança de símbolo não indicou mudança de entidade e a diferença de procedência tão pouco indicou mudança de entidade também (Cf. 8:5 e 21). Neste novo cenário, Reis fica absolutamente sem base para sustentar seu dilema contra a posição tradicional, pois as diferenças de símbolos nos dois capítulos não indicaram diferenças de entidade e nem mesmo a procedência textual diferente dos símbolos indicou entidades diferentes. Assim, portanto, o dilema de Reis não passa de um falso dilema.

De qualquer forma, ainda que o impasse proposto por Reis se mostre infundado, tal fato não explica por que o mesmo símbolo, o “chifre pequeno”, que para a posição tradicional representa a mesma entidade (Roma), tem procedências diferentes nos dois capítulos. Este é um ponto que merece ser suscintamente comentado. Se as diferenças quanto à procedência entre os mesmos símbolos, como demonstradas, não indicam diferentes entidades representadas, então é necessário entender o motivo dos símbolos partirem de origens diferentes. Uma resposta pode ser

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obtida a partir das informações extraídas de cada capítulo, de modo independente um do outro. De toda a estrutura e palavreado do capítulo 7 se notam algumas coisas. Há uma alternância entre Terra e Céu nas cenas. Desde o surgimento do “chifre pequeno” (v. 8) até o seu fim (v. 25) suas ações parecem se restringir mais aos elementos terrestres, seus ataques ao povo e sua tentativa de estabelecer um domínio neste mundo que só terminaria quando um tribunal celestial se assentasse (v. 26).

Já no capítulo 8, também a partir da estrutura e do palavreado, nota- se que o “chifre pequeno” surge de um dos pontos cardeais simbolizados por “quatro ventos” (v. 8-9). Daniel menciona três pontos cardeais para os quais o chifre se fortaleceu na seguinte sequência: sul, oriente e “terra gloriosa” (v. 9). Dos quatro pontos cardeais (“quatro ventos”) do verso 8, os únicos não mencionados no verso 9 são o norte e o ocidente. Assim, por meio deste modo de destacar a procedência desse chifre e considerando que o profeta já está no norte (Babilônia ou Susã), ele deixa em destaque que as conquistas deste reino sejam, nesta ordem, ocidente, a origem não explicitada nos “quatro ventos”, o sul, o oriente e, por fim, a “terra gloriosa”.

Isto explica as ações deste “chifre pequeno” nos versos 10 a 12, ataque ao povo (“exército dos céus”, “exército das estrelas” e “príncipe do exército”) e ao santuário (“tirou o sacrifício diário” e “destruiu o lugar do santuário”) porque é neste local, Jerusalém (“terra gloriosa”), em que ambos estão, o povo e o santuário. Ao interpretar a visão, Gabriel destaca a atuação deste chifre em relação aos judeus (v. 23-25) sem, contudo,

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explicar o tempo de duração de suas agressões contra este grupo celestial e o santuário (v. 14).

Uma constatação que talvez possa lançar luz acerca destas diferenças de procedência em torno destes dois chifres pequenos tem que ver com o fato de que no capítulo 7, exceto pelos três chifres abatidos pelo próprio “chifre pequeno” (cf. 7:8, 20), desde a origem dos quatro animais vindos do mar (v. 3) até o estabelecimento do tribunal celestial (v. 26), nenhum outro animal ou reino é explicitamente mencionado como derrotado por outro animal ou reino que lhe sucede. Isto parece indicar apenas uma sucessão de reinos no fluxo histórico e a continuidade implícita ou indireta destes reinos no período de atuação do animal terrível e espantoso, o último reino4. De qualquer modo, o fato é que esta

característica indica que a atuação deste “chifre pequeno”, neste capítulo, implica na atuação do próprio animal terrível e espantoso o qual o profeta viu (v. 7-8).

Ou seja, a atuação deste “chifre pequeno” é a própria atuação do quarto animal terrível e espantoso já que o “chifre pequeno” que dele procede entre outros dez chifres (v. 8, 20) faz parte de sua constituição física na visão. No capítulo 8, porém, a dinâmica é diferente em virtude das

4 Não sem razão no mesmo capítulo é dito que a estes animais foi concedida prolongação

da vida (7:12). Talvez seja por esta razão que João, em Apocalipse (13:2), descreva a primeira besta, um reino futuro da perspectiva de Daniel, com as mesmas características destes três reinos anteriores ao animal terrível e espantoso. É como se eles ainda estivessem atuando neste período.

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evidentes diferenças entre os capítulos que, como já dito, não indicam necessariamente mudança de entidade, o que Reis ignora. Todos os seis reinos anteriores ao “chifre pequeno” possuem chifre. O carneiro tem dois chifres (v. 3); o bode tem apenas um único grande chifre (v. 5) e os quatro reinos que deles saem são representados apenas por chifres (v. 8). O sétimo reino é o próprio “chifre pequeno” que sai dos “quatros ventos do céu” (v. 8-9). Disto se percebe uma sequência de chifres, cada qual correspondendo a um reino.

Assim, a partir das peculiaridades deste chifre em cada capítulo, é possível concluir que as diferentes procedências se justificam em virtude das diferentes perspectivas pelas quais este mesmo símbolo é retratado. O capítulo 7 dá mais importância a uma sucessão de reinos no fluxo histórico que se encerrará com o assentamento do tribunal celestial quando finalmente o chifre pequeno será derrotado. Logo, é de se esperar que este chifre seja visto procedendo de um dos reinos, outros chifres (v. 8) neste mesmo fluxo histórico e o que ele fez contra o povo de Deus nesta trajetória. Por outro lado, o capítulo 8 deixa mais em evidência a atuação do chifre pequeno no que diz respeito ao povo de Deus (judeus) e ao santuário. Assim, o que se destaca é sua origem geográfica, o ponto de partida deste chifre em relação ao santuário que ficava na “terra gloriosa” (v. 10), que da perspectiva de Daniel, em Babilônia ou Susã (no norte), estava no ocidente.

Em suma, enquanto no capítulo 7 a atuação do “chifre pequeno” é a atuação do próprio quarto animal terrível e espantoso já que não há

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menção alguma de sua saída de cena, no capítulo 8 todo este animal exótico agora é representado pelo “chifre pequeno”. As ações deste chifre no capítulo 7 são simplesmente atuações do próprio quarto animal porque o chifre é apenas uma de suas partes constituintes. No capítulo 8, este quarto animal atua como o próprio “chifre pequeno”.

Além disso, a ênfase das ações do “quarto animal/chifre pequeno” no capítulo 7 estão em esfera religiosa, mas no âmbito terrestre (v. 8, 11, 23-26). No capítulo 8, por outro lado, as ações deste mesmo “chifre pequeno/quarto animal” embora também estejam em esfera religiosa (v. 9-14), agora se concentram especificamente no âmbito celestial. Isto explica satisfatoriamente por que a procedência do mesmo símbolo/entidade em ambos os capítulos é diferente. No capítulo 7 a procedência destacada do chifre é o quarto animal, um quarto reino no âmbito terrestre. No capítulo 8, a sua procedência também é terrestre, mas retratada por “ventos dos céus” (pontos cardeais) porque é para o céu, o âmbito celestial, que o “chifre pequeno/quarto” animal agora irá atuar.

Ou seja, dito de outra maneira, apesar de procedências diferentes, é possível conceber estes dois chifres como apenas um, mas sendo retratados de perspectivas também diferentes. Aliás, a posição tradicional vai justamente nesta direção ao falar deste “chifre pequeno” como sendo Roma em esfera pagã (atuação político-militar) e não cristã – o quarto animal terrível e espantoso – e de Roma em esfera religiosa, também exercendo poder político-militar (papado) – o “chifre pequeno”. Esta mesma compreensão ajuda a entender até por que razão Paulo falou que

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o “homem da iniquidade” que apareceria antes do retorno de Cristo já estava a atuar ainda em seu próprio tempo, o primeiro século. Era de Roma, um poder governamental opressor do povo de Deus, de quem o apóstolo falava (Cf. 2Ts 2:12).

Erro 16: má compreensão da relação símbolo-entidade I