• Nenhum resultado encontrado

“Daniel 8 só pode ser entendido à luz de Daniel 2 e Daniel 7”

Erro 20: Jesus e rebeldia intelectual

Reis chega à parte final da segunda seção de seu artigo, curiosamente, deixando transparecer uma dificuldade em manter seu

121

posicionamento acerca da identidade deste “chifre pequeno” com o uso que Jesus faz desta profecia de Daniel ao reconhecer seu cumprimento na destruição da cidade e do templo por Roma. Ele diz:

A referência enigmática de Jesus à ‘abominação da desolação’ de Daniel ao predizer a profanação do Segundo Templo em 70 A.D. (Mat 24:15) parece ter sido uma reaplicação dos princípios da profecia cumprida nos tempos dos Macabeus e serviu principalmente como um sinal para os cristãos ‘deixarem a Judéia’, e não constitui necessariamente um cumprimento primário da profecia de Daniel (ênfase acrescida).

Posto que Jesus menciona “o profeta Daniel” quando este diz “abominável da desolação” que destruiria a cidade e o templo (cf. Dn 9:27) e direciona esta profecia para Roma, Reis tem que de alguma forma se desdobrar para evitar o óbvio, Jesus está reconhecendo Roma como o “chifre pequeno” de Daniel 8. Sua estratégia para fugir desta saia justa foi dizer que isto se tratava apenas de uma “referência enigmática” e ao mesmo tempo afirmar que apenas “parece ter sido uma reaplicação dos princípios proféticos” que supostamente se cumpriram em Antíoco IV Epifânio quando este perseguiu os judeus e profanou o seu templo, história relatada pelo livro de Macabeus e em que é dito – “No dia quinze do mês de Ceslau, no ano cento e quarenta e cinco, Antíoco fez erigir a

Abominação da desolação sobre o altar. Também construíram altares em

122

Alguns problemas podem ser detectados nessa estratégia evasiva de Reis para evitar o óbvio. Abertamente, não há razões que justifiquem por que considerar “enigmática” a referência explícita que Jesus faz a um profeta bíblico, o “profeta Daniel”, e a uma terminologia utilizada por este mesmo profeta, o “abominável da desolação”. Aliás, quiçá haja uma razão, apenas se for considerado como hipótese o cumprimento da profecia de Daniel em Antíoco e não em Roma. É isto o que, talvez, poderia tornar enigmática a fala de Jesus. Sem a consideração desta hipótese, não há nada de obscuro a ponto de se pensar em “enigma” no que Cristo disse.

Deste modo, considerando a proposta de Reis como hipótese, tem- se o seguinte cenário em três atos: (1) Jesus falando de um evento futuro previsto na profecia de Daniel; (2) a ação de Roma ao destruir a cidade é o evento futuro; e (3) a profecia de Daniel, supostamente, se cumpriu em Antíoco. Nesta conjuntura, como apresentada por Reis, tem-se o seguinte resultado: Jesus (em seu presente) fez uso de um texto profético de Daniel (que está em seu passado) que supostamente se cumpriu com Antíoco (que também está em seu passado) para falar da destruição da cidade pelos romanos (algo que está em seu futuro).

Como hipótese, isto significaria que Jesus estaria se remetendo a dois fatos passados (a profecia de Daniel e seu suposto cumprimento em Antíoco) para falar de apenas um fato futuro (a destruição da cidade e do templo pelos romanos). Ou seja, para Jesus, haveria uma combinação dos dois eventos (Antíoco e Roma) para que a profecia de Daniel supostamente cumprida no primeiro evento (Antíoco) pudesse servir para

123

o segundo evento (Roma). Logo, é compreensível a postura comedida de Reis ao falar de tudo isto como – “parece ter sido uma reaplicação” – Mas até mesmo o receio em ser taxativo no seu entendimento precisa de plausibilidade. E isto só é possível se houver paralelos entre o evento Antíoco e o evento Roma para que um possa servir de base para o outro na fala de Jesus.

Do ponto de vista bíblico textual, tanto Daniel (9:27) quanto 1 Macabeus (1:54) usam expressões como “abominações” e “assolador”, ou equivalentes, que encontram amparo na fala de Jesus: “o abominável da desolação” (Mt 24:15). Do ponto de vista histórico, tanto Antíoco quanto Roma perseguiram judeus e profanaram o seu templo, um pela introdução de animais imundos em recinto sagrados e a outra pela própria destruição do templo, respectivamente.

Diante deste impasse, a chave para desvendar o “enigma” imaginário de Reis são as indicações dadas pelos dois contextos bíblicos, tanto o de Daniel quanto o de Mateus que registrou o discurso de Jesus. Em Daniel, quando Gabriel se propõe a explicar o que de toda aquela visão do “chifre pequeno” (8:9-14) se cumpriria com os judeus (8:23-25), ele fala que este chifre se levantaria contra o “príncipe dos príncipes” (8:25), uma clara referência ao Messias. E aqui Reis tem o desafio de explicar quem, em Macabeus, deve merecer a honraria desse título, “príncipe dos príncipes” e, também, por que obviamente.

124

Já em Mateus, todo o discurso de Jesus tem início após os discípulos se orgulharem da magnificência do templo, razão pela qual ele tem que alertá-los da destruição por vir daquela estrutura (cf. Mt 24:1-2; Mc 13:1-2; Lc 21:5-6). Ou seja, o motivo de todo o discurso escatológico de Cristo e a sua consequente menção a Daniel tem que ver com a destruição do templo. Assim, desta feita, abrem-se as cortinas do “enigma” de Reis. Daniel fala do Messias (8:25; 9:25-27) e da destruição do templo (9:26); Jesus, da destruição do templo (Mt 24:1-2; Mc 13:1-2; Lc 21:5-6). Noutras palavras, o único evento que combina Messias com destruição do templo no discurso de Jesus (Mt 24:15), como requisitado pela profecia de Daniel (8:25; 9:25-27), não é o evento de Macabeus, mas o evento da destruição de Jerusalém por Roma no ano 70 d.C. O acontecido em Macabeus não envolve nem messias e nem destruição do templo.

Logo, para falar da destruição do templo naquele ano, Jesus, o “príncipe dos príncipes” (Dn 8:25), o próprio Messias, se remeteu à Daniel e não a Macabeus porque o profeta previu sua atuação no mesmo período deste “chifre pequeno” (Dn 8:95; 9:25-27). Isto explica mais do que satisfatoriamente o porquê de Jesus, neste contexto de destruição do templo, mencionar a profecia de Daniel (9:26-27) e sua terminologia, pois ela além de apontar para este evento devastador, também apontava para ele próprio (Dn 8:25; 9:25-27), cenário no qual o ocorrido de Macabeus não se encaixa. Reis precisará de outro “enigma” para tentar desatualizar o entendimento tradicional.

125

Mas imaginando que Reis ainda não se convença destes fatos, novas ponderações devem ser feitas. Primeiro, o relato de Macabeus, na linha do tempo da história, está mais próximo de Jesus do que o relato de Daniel. Assim, se o propósito de Jesus fosse apenas o de fazer os cristãos, para sobreviverem, recordarem de “um sinal” para “deixarem a Judeia” ao Roma se aproximar, então seria mais apropriado remeter seus ouvintes a Macabeus e não a Daniel. Mas Jesus fez o contrário, aludiu a Daniel e não a Macabeus. Segundo, se o intuito de Jesus fosse apenas fazer com que seus discípulos ao perceberem a chegada dos romanos recordassem de “um sinal” para “deixarem a Judeia” e evitassem um confronto armado, então o relato de Macabeus é impróprio para isso, pois, neste livro, as ações de Antíoco já mencionadas geraram insurreição (a revolta dos Macabeus) que posteriormente se transformou em vitória na qual a normalidade das atividades do templo retornou.

Ao que parece, a postura de Reis parece ser resultado de rebeldia e não de honestidade intelectual. Terceiro, ele sugere que Jesus esteja fazendo uma “reaplicação dos princípios” proféticos que se cumpriram com Antíoco. O problema é que simplesmente ele não aponta nenhum “princípio profético” que supostamente se cumpriu com Antíoco e que pudesse servir para Jesus reaplicá-lo à Roma de tal forma que servisse de “sinal” para os cristãos. Assim, no final das contas, o único “enigma” aqui é prever como Reis ainda conseguirá manter seu ponto de vista.

126