• Nenhum resultado encontrado

Decisão administrativa impessoal

CAPÍTULO 3 – IMPESSOALIDADE NA SEARA ADMINISTRATIVA

3.1 Decisão administrativa impessoal

A identificação de um conteúdo autônomo para o princípio da impessoalidade no Brasil – que sirva de parâmetro para uma atuação administrativa decisória juridicamente hígida e responsável – passa pelo reconhecimento do interesse público em cada caso concreto.

Ana Paula Oliveira Ávila287, com apoio em Humberto Ávila, esclarece que “o interes-

se público somente restará definido após um processo de ponderação concreta e sistemati- camente orientada, com padrões de decisão flexíveis e adaptáveis a cada caso concreto, dos interesses públicos com todos os demais interesses individuais que residam nas circunstânci- as do caso concreto”. Em percuciente observação, a autora revela que “sendo o interesse público o resultado dessa operação de ponderação, produzido, portanto, ao final, sua deter- minação ocorre sempre a posteriori e in concreto, e nunca a priori e in abstrato”.

Decisão administrativa impessoal é, pois, aquela que se apresenta como produto de uma criteriosa iteração entre os interesses envolvidos numa disputa.

Mais uma vez recorrendo ao escólio de Ana Paula Oliveira Ávila288, alicerçado em

Humberto Ávila, “a interpretação dos casos concretos deve ser direcionada não para uma principal prevalência, mas para a máxima realização dos interesses envolvidos”.

A propósito, Humberto Ávila289 refere-se a um caso do STF em que o Min. Luiz

287 Obra citada, p. 132. 288 Obra citada, p. 132.

289 Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: Interesses públi- cos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 193.

Galloti, decidindo sobre a suspensão de obra pela autoridade administrativa, reconheceu a importância de terceiros de boa-fé, em função dos quais “é necessária uma ponderação multipolar, precisamente porque os interesses devem ser preservados por meio de uma deci- são unitária”290. Correto Humberto Ávila291 quando assinala, a respeito de não existir uma

regra geral, hipotética, de prevalência de interesses públicos, que:

“Da constatação de que os órgãos administrativos possuem em alguns casos uma posição privilegiada relativamente aos particulares não resulta, de modo algum, na corroboração da supremacia do interesse público sobre o interes- se particular. Essa posição indica, tão só, que os órgãos administrativos exer- cem uma função pública, para cujo ótimo desempenho são necessários de- terminados instrumentos técnicos, devidamente transformados em regras jurídicas. E essas regras procedimentais (não regras que instituem finalida- des) decorrem tanto das normas constitucionais como do desinteresse pes- soal que define a função administrativa (‘Selbstlösigkeit’). ISENSEE bem o afirmou: ‘À liberdade dos cidadãos corresponde a vinculação normativa dos funcionários públicos’. Isso tudo não tem nada a ver com uma regra geral de prevalência”.

A nosso sentir, em vínculo direto com a ideia de impessoalidade como ponderação dos interesses envolvidos em disputas concretas, com interdição do querer subjetivo do julgador (decisor), Humberto Ávila292 é cortante:

“A constatação de que os funcionários não representam interesses outros além do público não resulta do interesse público propriamente dito (defini- do, aliás, pela finalidade), mas do desinteresse, por sua vez reconduzido à função pública e ao princípio republicano. E é o princípio republicano que estrutura o bem público, a ser constatado no direito positivo”.

O desinteresse do funcionário público referido tem o nítido sentido de impessoalidade. Não é o desinteresse na “justa solução do caso concreto”, mas sim no encaminhamento de decisões dotadas de subjetivismos, predileções e preferências pessoais do julgador.

290 Confira-se o voto do Min. Gallotti, acima citado por Humberto Ávila: “Os parágrafos do citado artigo 305 (CPC), embora referentes à hipótese de demolição, claramente traduzem o espírito da lei, no sentido de conci- liar o interesse público com os demais interesses em causa, ordenando que a construção não seja demolida, mesmo quando contrária às condições legais, se por outro meio se puder evitar o dano ao bem comum”. 291 Repensando..., p. 201.

Floriano de Azevedo Marques Neto293 assinala que “não passa de um dogma a formu-

lação de que exista um só interesse público a motivar, no caso concreto, a atuação estatal”. Com apoio em Gaspar Ariño, ensina que:

“Há sempre uma miríade de interesses relevantes, muitas vezes conflitantes, a disputar a ação estatal. Se é possível um controle negativo (ou seja, a verificação de que a um dado interesse não corresponde uma relevância justificadora de uma ação estatal – portanto, a verificação de que se trata de um interesse não público), de outro lado não é possível se aferir o que ou qual seja o interesse público único, singular, que justifique a intervenção estatal na esfera privada. Mas o discurso do interesse público é dependente dessa noção de singularidade, pois sem ela teria de assumir que toda ação do poder público demanda, previamente, uma arbitragem de interesses. O que enfraqueceria a sua função legitimadora e operacional”.

Assume especial relevância, no particular, a rememoração da distinção que é própria da doutrina portuguesa, entre as vertentes negativa e positiva do princípio da imparcialidade294.

Na vertente positiva, relembre-se a lição de Diogo de Freitas do Amaral295, com signi-

ficado de dever, por parte da Administração Pública, de ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos, equacionáveis para o efeito de certa decisão, antes da sua adoção. Ou seja, “devem considerar-se parciais os actos ou comportamentos que manifestamente não resultem de uma exaustiva ponderação dos interesses juridicamen- te protegidos”.

Merece nova menção a posição de José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira296, para os quais o princípio da imparcialidade visa “assegurar que nas decisões

administrativas se tenham em consideração todos os interesses públicos e privados relevan- tes, e só estes (princípio da ponderação de interesses), de modo a evitar que a prossecução de um interesse público se confunda com quaisquer interesses privados com que a actividade administrativa possa contender ou possa se envolver”.

293 Interesses públicos e privados na atividade estatal de regulação. In: Princípios de direito administrati- vo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. Thiago Marrara (org.). São Paulo: Atlas, 2012, p. 425.

294 V. item 2.3.5 infra. 295 Curso, p. 152-159.

E também a interpretação de Marcelo Rebelo de Souza e André Salgado de Matos297,

no sentido de que, modernamente, imparcialidade deve ser entendida como “comando de tomada em consideração e ponderação, por parte da administração, dos interesses públicos e privados relevantes para cada concreta actuação sua”.

Uma decisão administrativa impessoal precisa considerar o que Paulo Otero298 cha-

mou de “adequação ponderativa dos interesses relevantes para a decisão”, devendo o decisor “tomar sempre em consideração todos esses interesses, excluindo do seu âmbito, no entanto, todos os interesses que se mostram inapropriados ou irrelevantes face à situação concreta a decidir”. E mais: “em termos positivos, a imparcialidade determina parâmetros racionais, objetivos, lógicos e transparentes de decisão, visando a que se tomem em consideração ponderativa todos os fatores ou elementos relevantes para a decisão, assim como excluir de ponderação quaisquer interesses alheios ou irrelevantes”.

Devem ser rememoradas, nesta ocasião, sem desdouro para outras, as contribuições dadas à matéria pela doutrina italiana299.

Relembre-se Domenico Sorace300, de acordo com quem o princípio da imparcialidade

merece construção concreta, à luz dos diversos interesses envolvidos em cada caso. E para quem a Administração atua para satisfazer os interesses públicos primários, devendo estar atenta para todos os outros tipos de interesses relevantes, sejam públicos ou privados, a fim de que a sua decisão corresponda a uma composição dos diversos interesses em jogo, extra- indo a máxima utilidade de todos eles e sem o descarte de qualquer um. Nas palavras de Sorace, “naturalmente, se o interesse público deve, em definitivo, ser construído em concre- to, tendo em conta os diversos possíveis interesses em jogo, tais interesses devem ser apreci- ados de forma adequada”.

E também Merloni301, para quem a Administração não pode discriminar algum inte-

resse em prejuízo de outro, garantindo paridade de tratamento e dando concretude ao princí- pio da igualdade, formal e substancialmente considerada, como direito a um “justo procedi- mento” e a uma “boa administração”.

E Maurizio Asprone302, para quem a imparcialidade, longe de significar neutralidade ou

297 Obra citada, p. 216. 298 Manual..., p. 373-374. 299 V. Itens 2.3.6 e 2.8, infra. 300 Obra citada, p. 67. 301 Obra citada, p. 36-8. 302 Obra citada, p. 61.

indiferença em relação aos interesses envolvidos na atividade administrativa, quer dizer o uso correto do aparato administrativo para alcançar as finalidades previstas em lei, sem que haja a prevalência de um interesse que favoreça a Administração em confronto com a ordem jurídica e que, de antemão, condicione as escolhas administrativas. Em razão do que a Administração deve maximizar o interesse público entregue à sua tutela, conciliando-o com outros interesses públicos e privados envoltos na mesma seara administrativa (interesses secundários).

Relembre-se ainda Monteduro303, que, ao tratar das dimensões da imparcialidade, in-

cluiu na imparcialidade positiva ou inclusiva uma abertura institucional da Administração Pública para considerar e comparar todos os interesses envolvidos e protegidos pela ordem jurídica em concreto, na busca de equilíbrio na composição de interesses.

Merece destaque retrospectivo a posição doutrinária de Sabino Cassese304, para quem a

Administração, ao decidir, tem a obrigação de realizar, de modo objetivo, uma análise compa- rativa dos interesses em jogo, considerando os efeitos e possíveis resultados de sua tutela.

Decisão administrativa impessoal só se obtém assim: mercê de uma mui criteriosa avaliação, por parte do julgador, de todo e qualquer interesse legítimo, público e/ou privado, envolvido na espécie. Sem preconceitos e pré-compreensões. Sem preferências ou predile- ções prévias. Em suma, sem subjetivismos. Tudo a ser apurado com seu peso e com a sua importância. Com método e cientificidade.

Em síntese lapidar, consolidando ideias até aqui reveladas, Humberto Ávila alcança a seguinte conclusão, com a qual concordamos às inteiras:

“...se o ordenamento jurídico regula justamente uma relação de tensão (‘Spannungsverhältnis’) entre o interesse público e o particular, bem exemplificada pela repartição de competências nos vários níveis estatais e pelo contraponto da instituição de direitos fundamentais, por sua vez só ajustável – com a ajuda de formas racionais de equidade – por meio de uma ponderação concreta e sistematicamente orientada, então a condição racio- nal para o conhecimento do ordenamento jurídico deve ser outra, precisa- mente consubstanciada no ‘postulado da unidade da reciprocidade de inte- resses (‘Gegenseitigkeitspostulat’). Ou nas palavras de LAUDER:

‘Ponderação de bens é uma figura dogmática que não mais submete os di-

303 Obra citada, p. 305-366.

304 Il diritto amministrativo e i suoi principi. In: Corso di Diritto Amministrativo diretto da Sabino Cassese. 1. Instituzioni di Diritto Amministrativo a cura de Sabino Cassese. 4ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 2012, p. 13- 14.

reitos e limites imanentes e explícitos, isto é, a regras de preferências está- veis (p. ex. em favor do interesse público), mas procura trabalhar situativa e estrategicamente um complexo, uma conexão de interesses de generaliza- ção limitada, sobretudo por meio da formulação de standards ou de valores flexíveis’”.305