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O mito da neutralidade política da decisão administrativa e a questão da justiça

CAPÍTULO 1 – NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

1.7 O mito da neutralidade política da decisão administrativa e a questão da justiça

A Administração Pública tem sido escravizada por decisões político-partidárias, to- madas fora da esfera administrativa. Não obstante, no campo das decisões administrativas relevantes é necessário trilhar a “neutralidade política possível”.

Otero85, ao tratar do tema da legitimação política em correlação com a colonização

partidária, ensina que, num Estado pluralista, a politização da Administração Pública passa

84 Obra citada, p. 23-24.

também pelo reforço da legitimidade política das diversas estruturas administrativas, segun- do um modelo apoiado em quatro regras nucleares:

a) Fundamentação democrática dos critérios de decisão administrativa;

b) Representatividade político-democrática do prolator da decisão administrativa; c) Responsabilidade política do prolator e da decisão administrativa;

d) Preferência pela maior legitimidade política do prolator e da decisão adminis- trativa.

Tendo como foco o Estado parlamentar, o autor assinala que a Administração Pública dependente do Estado pode vir a ter a cor do partido governamental.

Paulo Otero conclui que não se encontra uma Administração legitimada democratica- mente imune a um fenômeno de colonização administrativa pelos partidos políticos. São suas estas palavras:

“(...) a intervenção dos partidos políticos, fazendo de quase toda a máqui- na administrativa um palco da luta hegemônica do ‘Estado do partido go- vernamental’, além de gerar um domínio informal das estruturas adminis- trativas, determina também uma infiltração no próprio aparelho adminis- trativo de boys ou fidèles du gouvernement, provocando uma transferên- cia do centro decisório dos gabinetes administrativos para as salas dos diretórios partidários”.

Revela que:

“Uma politização desordenada das estruturas da Administração Pública, envolvendo a sua colonização pelo ‘partido governamental’, poderá mesmo conduzir a uma quebra da neutralidade e da imparcialidade administrativas: a Administração politizada, gerando no seu seio verdadeiros lobbies de in- teresses particulares e tráfico de influências, será então ‘coveira’ das garan- tias dos administrados, desenvolvendo-se num processo de completa marginalidade face à ordem constitucional – será o exemplo de uma Admi- nistração ‘não oficial’ que vive paralela à Administração oficial”.

O raciocínio é poderoso. Mesmo focada no campo do parlamentarismo, a problemá- tica pode ser transportada para a realidade do presidencialismo brasileiro, de coalizão, em que forças por vezes bem antagônicas celebram pactos políticos e morais muito débeis, em prol de uma governabilidade nem sempre comprometida com os valores republicanos.

Fazendo uso dos ensinamentos de Otero86, tem-se que a politização da Administração

contribui para que algumas das principais decisões administrativas revistam-se de conteúdo político. E assim é porque:

a) Em tais casos, as decisões administrativas, em vez de uma tradicional neutralida- de política, mostram-se politicamente comprometidas, envolvendo uma escolha do interesse público ditada por puros critérios de oportunidade e valoração polí- tica – pode falar-se em politicidade da decisão administrativa;

b) Há aqui um espaço de liberdade política conformadora titulado pela Administra- ção Pública, verdadeira área de indirizzo político, que lhe confere autonomia de orientação própria, criando novos pressupostos de conduta e, sob o seu próprio impulso, definindo inovativamente meios, critérios e objetivos que não possuem uma natureza predeterminada ou executiva da lei ou da Constituição.

Entretanto, mesmo que a politização da Administração seja uma realidade (verdade) eloquente, havendo campo fértil para a existência de decisões administrativas assentidas em pressupostos políticos e tendo um conteúdo político como objeto, há limites intransponíveis. E Paulo Otero arrola três:

a) Todas as decisões têm de visar sempre à prossecução do interesse público sem prejuízo da determinação deste assumir um inegável componente político. Nun- ca poderá esse componente político ser usado para habilitar derrogações à juridicidade;

b) Respeito pelas fronteiras decorrentes do princípio da separação de poderes, nun- ca habilitando o indirizzo político da Administração Pública a invadir a esfera do poder legislativo ou do poder judicial;

c) Proibição de gerar lesão a pessoas individualmente consideradas, devendo sem- pre respeitar direitos e interesses legalmente protegidos87.

Sabe-se muito bem que a neutralidade política no “agir” administrativo é um mito,

86 Manual de Direito Administrativo..., p. 307.

87 Paulo Otero, no particular, chega a formular exemplo interessante: “não se mostra admissível, neste contexto, por exemplo, que um órgão administrativo, usando um alegado ato de conteúdo ou propósito político (v.g., resolução, moção, declaração), possa lesar o bom nome ou a honorabilidade de pessoas individualizadas. Se o fizer, além da invalidade da deliberação, revela-se a mesma passível de gerar responsabilidade civil dos titulares que a votaram favoravelmente”. (Manual de Direito Administrativo..., p. 309, rodapé 1029).

mas não deve ser (tanto) assim na “seara decisória”. Por óbvio, não se refuta a existência de uma forte relação entre Administração e Política, mesmo porque não se pode desconsiderar a percuciente observação de Odete Medauar88, forte em Sorace, para quem

não há Administração sem política e vice-versa, sendo ilusório o objetivo de nítida separa- ção, “ao invés do objetivo da organização da continuidade entre uma e outra em vista da obtenção de um equilíbrio razoavelmente aceitável e historicamente adequado”. Segundo a autora, “o verdadeiro problema consiste em especificar a justa relação entre orientação política e imparcialidade, no âmbito de uma discricionariedade administrativa inevitável, conotada pela tensão entre política e justiça e pela necessidade de compor, mais do que separar, os dois elementos”.

O que se sustenta, diferentemente, é que, nas decisões administrativas, não pode haver espaço para atuação política. A neutralidade aqui pressuposta, como pano de fundo da decisão administrativa, é a referida por J. Baptista Machado89 como a da justiça. Para esse autor:

“(...) é que, no plano superior da Justiça, estamos de regresso à perspectiva da unidade do Estado, da integração de toda a comunidade em função do valor do Direito e da Justiça – e a neutralidade afere-se agora por referência a este valor e assume sob certos aspectos um significado idêntico ao de imparcialidade”.

E prossegue:

“(...) neste sentido o Estado é neutro se, na resolução de qualquer conflito de interesses, assume uma posição valorativa de simultânea e igual consi- deração de todos os interesses em presença. A neutralidade não impõe aqui ao Estado atitudes de abstenção, mas mais propriamente atitudes de isenção na valoração dos interesses em conflito. O Estado é neutro quando faz vin- gar a Justiça e estabelece regras do jogo justas”.

Sérgio Sérvulo da Cunha90, de sua vez, observa com precisão que a constituição do

poder implica a fixação dos seus fins e que “à dominação basta a ordem como fim do gover-

88 O direito administrativo em evolução. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 139. 89 Participação e descentralização – democratização e neutralidade na Constituição de 76. Coimbra: Almedina, 1982, p. 245.

no, mas o Direito acrescenta-lhe a justiça”. Zagrebelsky91 assinala que três coisas regem o

mundo: a justiça, a verdade e a paz. E que as três coisas são na realidade uma só: a justiça; porque de fato, apoiando-se a justiça na verdade, chega-se à paz.

A despeito de enorme controvérsia sobre a noção de justiça, notadamente em sua correlação com o ideário do Direito, é suficiente, para os fins deste trabalho, ter nela um valor correspondente ao justo. E por justo, a medida do bom92.

É de Zagrebelsky a escorreita observação de que a justiça é uma exigência que postu- la uma experiência pessoal, justamente a experiência da justiça, ou melhor, da aspiração à justiça que nasce da experiência da injustiça e da dor que dela deriva. Assim é que:

“Si no disponemos de una fórmula de justicia que pueda poner a todos de acuerdo, es mucho más fácil convenir – a menos que se trate de conciencias desviadas – en la percepción de la injusticia contenida en la explotación, en la cosificación de los seres humanos por parte de otros seres humanos. Y es más fácil no verla o considerarla como algo remoto que permanecer insensibles una vez que se ha estado en contacto inmediato con ella”. Para Sérgio Sérvulo da Cunha93, “o sentimento do justo e do injusto está à base de

qualquer critério sobre o que é permitido ou proibido”, e o objetivo do Direito – enquanto arte, técnica e ciência – é a “institucionalização e materialização de relações de poder segundo a justiça, e não a mera reprodução de relações naturais, sociais ou econômicas de poder”.

É também de Sérgio Sérvulo da Cunha94, ao tratar da justiça política, a lição de que:

“As múltiplas faces da justiça parecem estar contempladas ao definir assim o respectivo princípio: princípio segundo o qual, regente o bem de todos, as atribuições de direitos se fazem objetivando o maior bem individual possível. No princípio de justiça desfaz-se a pretensão oposição entre os interesses particulares (ou individuais) e o interesse geral. A realidade não é a parte

91 La exigencia de justicia. ZAGREBELSKY, Gustavo. MARTINI, Carlo Maria. La exigencia de justicia. Madri: Trotta, 2006. Segundo o autor, “Hay tres cosas que rigen el mundo: la justicia, la verdad y la paz. Así lo entiende la Mishnah, que comenta: las tres cosas son en realidad una sola: la justicia. De hecho, apoyándose la justicia en la verdad, a lo que llega es la paz”.

92 Para Sérgio Sérvulo da Cunha (Uma deusa..., p. 6), a justiça possui duas faces. Uma negativa, corresponden- te a evitar o mal; outra positiva, correspondente a fazer o bem.

93 Uma deusa..., p. 7. 94 Uma deusa..., p. 121.

nem o todo, mesmo porque o todo nada é sem as partes, que, por sua vez, se definem como partes do todo. Decisão de justiça é a que traduz, concreta- mente, a fórmula dessa harmonia vital”.

Pode-se concluir, ainda com apoio em Sérgio Sérvulo da Cunha95, que o princípio da

justiça é pré-jurídico, o que significa:

a) Que é uma exigência prévia ao ordenamento jurídico;

b) Que pode encontrar-se em processos sociais anteriores ao ordenamento jurídico, como a religião e a moral;

c) Que sua concretização não se pode esperar apenas do ordenamento jurídico.

José Renato Silva Martins96 concorda com o entendimento de que o ideal da justiça, a

par de ser objetivo de todas as civilizações, no âmbito do Direito é algo que não se pode definir facilmente, mas indiscutivelmente o conceito de justiça é pressuposto para a existên- cia do Direito e possui teor valorativo.

Com foco na figura do juiz, o mesmo autor97 assinala que “seria utópico pensar em

um juiz absoluto e irremediavelmente neutro, cuja toga, suficientemente impermeável, o im- pedisse de sentir as pulsações do clamor da sociedade em que se insere”.

Sucede que neutralidade é uma coisa, imparcialidade é outra. A neutralidade judicial é mesmo um mito. A imparcialidade judicial, diferentemente, é exigência real, de todo neces- sária à perseguição da justiça98.

95 Uma deusa..., p. 121.

96 O dogma da neutralidade judicial: sua contextualização no Estado brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 78 e 83.

97 O dogma..., p. 159.

98 Segundo José Renato Silva Martins (O dogma..., p. 69-70), para o senso comum, muitas vezes, não há distinção entre neutralidade e imparcialidade, sendo ambos os termos utilizados como sinônimos, mas não são. Explica: “(...) ainda que se reconheça que tal distinção é feita por uma fronteira tênue, deve-se procurar a utilização de uma terminologia rigorosa, em nome de uma análise que se pretenda científica. A neutralidade (...) revela-se fruto de uma influência positivista da ciência. Mas, sobretudo o que se deve destacar nesta palavra é que, para que se possa realizar o que ela expressa, necessário seria estar isento de toda ideologia. Tal empreitada e impossível. No Direito, WOLKMER chega a falar em ‘aspectos ideológicos da criação jurisprudencial do Direito’. Mas o que se torna essencial neste momento é definir neutralidade. A posição aqui assumida é que neutralidade é a possibilidade da manutenção da indiferença diante de um quadro que mani- festa posições antagônicas; posições estas que precisam ser pacificadas no âmbito do intermediário social, que é o local privilegiado assumido pelo Direito. Uma vez adotada tal postura, deve-se buscar desbravar a definição de imparcialidade. A imparcialidade pode ser visualizada desde as origens do Poder Judiciário, quando da divisão do Estado, como pré-requisito da função do julgador. BLACKBURN define imparcialidade nos seguintes termos: ‘virtude fundamental, associada à justiça e à equidade. Uma distribuição dos benefícios e das obrigações é feita imparcialmente se nenhuma consideração a influencia, exceto as que determinam o que é devido a cada indivíduo. Perspectivas diferentes quanto ao merecimento farão essa maneira diferente’.

O dicionarista, porém, faz uma ressalva importante: ‘uma das dificuldades na aplicação desse conceito é que na vida real as exigências das pessoas com que se está intimamente relacionado, como os amigos e a família, contrariam a imparcialidade estrita, fazendo com que esta pareça mais uma parte da moral pública do que da virtude privada’. (...) Mediante tais posições, pode-se afirmar que o juiz não pode e não deve ser indiferente, ou seja, neutro, mas deve ser imparcial, isto é, permitir que dentro do processo as partes tenham oportunidades iguais e julgar segundo o seu convencimento de causa, zelando assim pela lisura do processo e pela realização da justiça”.

No Brasil, a Constituição de 1988, já em seu preâmbulo, assegura que o Estado de- mocrático brasileiro é destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e, finalmente, a “justi- ça”, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Não bastasse, incluiu-se no texto constitucional, no art. 3º, inciso II, dentre os objetivos fundamentais da República brasileira, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A justiça também é presença constante nas entrelinhas do texto constitucional. Deve- ras, é consectário lógico da adoção do modelo social de Estado Democrático de Direito.

No Estado Social, persegue-se a todo custo, em todos os momentos, de mãos dadas com o desenvolvimento, a justiça social possível.

Ao bom exegeta descabe desconsiderar esse horizonte. E os raciocínios jurídicos se- rão incompletos e falhos se desconsiderarem tal premissa.