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Deferência aos ramos de governo e presunção de constitucionalidade na transição para o século XX: a proposta de James Bradley Thayer

CORTE E DOUTRINA JURÍDICA: ATIVISMO E AUTOCONTENÇÃO COMO NOÇÕES CONTINGENTES NA TEORIA CONSTITUCIONAL

SOBERANIA POPULAR E CONSTITUCIONALISMO NO ARRANJO POLÍTICO JURÍDICO NORTE-AMERICANO: DE MARBURY v MADISON A CORTE

1.3 Deferência aos ramos de governo e presunção de constitucionalidade na transição para o século XX: a proposta de James Bradley Thayer

Em que pese o abalo da sua credibilidade após a Guerra Civil Americana, a Suprema Corte, no período pós-Reconstrução, desempenhou importante papel ao intervir na legislação regulatória sobre a economia, com amparo na Décima Quarta Emenda e sua Cláusula do Devido Processo. O tribunal notabilizou-se por frequentemente julgar inconstitucionais os atos de controle da concorrência ou “antitruste”, principalmente quanto à regulação da atividade ferroviária, em franca expansão55.

No contexto de fortalecimento da crítica à revisão judicial, o artigo de James Bradley Thayer, “The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law”, fundamenta a racionalização da atividade da Corte e sua compatibilização com as prerrogativas dos demais ramos de governo. Referido texto é apontado como um dos precursores do debate

52 Esta atuação teria ocorrido em resposta ao clamor público para que a corte solucionasse a questão da

escravidão. Noticia-se, inclusive, que o Presidente recém-eleito James Buchanan chegou a se comunicar com um dos juízes, manifestando seu interesse em pôr fim ao controverso embate político sobre o tema. SCHWARTZ, Bernard. A history of the Supreme Court. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 106-113.

53 A polêmica decisão acarretou a perda de confiança do público na Suprema Corte, relação que já estaria

estremecida pelos desgastes com poderes majoritários no período da “democracia jeffersoniana”. Entretanto, a noção de supremacia constitucional já estava consolidada naquele momento, de modo que não se esgrimiu o “argumento contramajoritário” contra a atuação da corte. FRIEDMAN, Barry. The history of the countermajoritarian difficulty, part one: the road to judicial supremacy. New York University Law Review, p. 1-240, May 1998, p. 199-213. Para Lawrence Baum, o descrédito teria sido maior nos estados abolicionistas do norte dos EUA. BAUM, Lawrence. The Supreme Court. Ohio: CQ Press, 2010, p. 20-22.

54 O Chief Justice era considerado um magistrado à altura do cultuado Marshall e contava, à época, com grande

aprovação pública, que se estendia à corte. SCHWARTZ, Bernard. A history of the Supreme Court. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 105.

55 Esse entendimento foi assentado em julgados com em Slaughter-House (1873), os Granger Cases (1871) e

Santa Clara County v Southern Pacific Railroad (1886). SCHWARTZ, Bernard. A history of the Supreme Court. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 156-165.

acadêmico sobre a autocontenção judicial56, por ter fornecido alguns dos mais conhecidos argumentos nesse sentido.

Na construção de um papel adequado para os tribunais57, Thayer parte da “excepcionalidade” da revisão judicial, atividade que não encontrava paralelo em outras democracias consolidadas à época. Nos EUA, o poder de declarar a inconstitucionalidade, como “mera inferência” amparada no multiciado Article VI, é produto de uma construção jurisprudencial, sob a qual os legislativos teriam apenas uma autoridade delegada e, portanto, limitada, sob a Constituição58.

As restrições constitucionais, para serem operacionalizadas, passam a ser vistas como direitos a serem aplicados pelos juízes, que possuem o dever de anular os atos contrários aos seus mandamentos. A interpretação expressada em Marbury v. Madison é criticada por Thayer, por entender que esta passa ao largo das peculiaridades da Constituição, tratando-a como qualquer outra norma, numa interpretação freqüente às situações ordinárias59. A revisão judicial, ademais, deve ser exercida num ambiente que leve em consideração o concerto constitucional entre os ramos de governo. Neste plano, a função acometida ao Judiciário seria unicamente a aplicação das normas, o que exclui sua atuação quando referida aos atos puramente políticos ou que denotem exercício de discricionariedade. A distribuição entre os poderes do governo em três departamentos impediria os juízes de privar outro departamento de sua função apropriada ou limitá-lo no espaço adequado de exercício de suas funções.

Por reconhecer a necessidade de observância das competências constitucionais, dessa configuração Thayer retira as características da atividade jurisdicional no controle dos demais

56 O ineditismo do trabalho de Thayer é objeto de questionamentos; todavia, seu esforço de sistematização dos

argumentos correntes no debate político, e a ampla repercussão de suas idéias justificam sua escolha para o início do capítulo. Para Larry Kramer, Thayer era um, dentre diversos autores de sua época, que tentava restaurar a perspectiva “jeffersoniana” da revisão judicial. Nesse sentido, a preocupação central do seu trabalho seria relembrar que a autoridade principal para interpretação das constituições restava fora das cortes. KRAMER, Larry D. Judicial supremacy and the end of judicial restraint. California Law Review, v. 100, n. 3, p. 621-634, jun. 2012, p. 628.

57 Segundo Sunstein, Thayer enfatizaria dois pontos na sua perspectiva de auto-restrição, que não negava,

aprioristicamente, a revisão judicial: a falibilidade dos juízes e a possibilidade de que os juízes interfiram e maculem os processos democráticos. SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing courts are wrong for America. New York: Basic Books, 2005, p. 46.

58 THAYER, James B. The The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law

Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 129-130.

59 “The people, it was said, have established written limitations upon the legislature; these control all repugnant

legislative Acts; such Acts are not law; this theory is essentially attached to a written constitution; it is for the judiciary to say what the law is, and if two rules conflict, to say which governs; the judiciary are to declare a legislative Act void which conflicts with the constitution, or else that instrument is reduced to nothing. And then, it was added, in the Federal instrument this power is expressly given.” THAYER, James B. The The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 138-9.

39 poderes, especialmente na tarefa de revisão judicial. Para o autor, cabe à instituição fixar os limites externos da ação legislativa razoável; estes limites não poderiam ser ultrapassados pelos demais poderes sem violar a Constituição. Isto porque o mérito, a razão e a competência das decisões constitucionais são atribuídos ao Legislativo e ao Executivo60.

Nesta distribuição, a função de promulgar as normas e, nesta atividade, interpretar a lei fundamental, afetando todo o país, pertence ao Legislativo. Salvo quando uma pessoa pretende levar seu interesse individual sobre esta interpretação à Corte e, nestes casos, esta somente deve fiscalizar a constitucionalidade dos atos diante do caso concreto, e não para anular leis, competência atinente ao Parlamento. Essa atuação posterior fortalece o argumento de limitação judicial no questionamento da legislação, pois, para Thayer, se o Judiciário constituísse uma instância efetiva de controle, poderia fazê-lo preventivamente – hipótese, como se sabe, não admitida naquele sistema.

É da atipicidade do controle e da análise de sua inserção no universo dos ramos de governo que Thayer fornece sua contribuição para a discussão sobre o exercício da auto- restrição judicial. Reconhece limites constitucionais para a interferência dos juízes, sob os quais o exercício da fiscalização das leis deve ser restrito, norteado por “regras de administração”, que correspondem à noção de respeito, mas também de deferência ao legislador representante do povo61.

A revisão judicial não se referiria à mera operação lógica para inferir a inconstitucionalidade de um ato, afirmando que o legislador cometeu um erro. Por admitir que as normas constitucionais são vagas e abrem espaço para interpretações diversas, as complexas exigências de governo permitem diversas decisões, inconstitucionais para uns, mas constitucionais para outros. Assim, há situações que demandam uma margem de escolha e julgamento, nas quais o tribunal deve resguardar-se em seu próprio critério de constitucionalidade e levar em conta a atuação permitida pela Constituição ao departamento encarregado de atuar quanto ao tema. A ausência de critérios para apreciação redunda na presunção de que as decisões dos outros ramos são constitucionais.62

Essa pressuposição é fundamental para a construção do argumento do “clear

mistake”, ao determinar que, apenas quando a corte depara-se com um erro claro (“a very

clear one”), diante do qual não se tenha escolha, salvo a declaração de sua

60 THAYER, James B. The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law

Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 148-9.

61 THAYER, James B. The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law

inconstitucionalidade (“that is not open to rational choice”), é que lhe cabe interferir na atuação do departamento legislativo.

A incompatibilidade com a Constituição deve ser manifesta, e somente nestas situações de inequívoco erro é possível a anulação da lei, pelo que se fortalece a comentada presunção em torno da constitucionalidade das normas. A função da Corte não é estabelecer o verdadeiro significado da Constituição, mas decidir se a legislação é compatível com o texto ou não.63

Na dúvida sobre sua constitucionalidade, a norma deve permanecer, situação em que os juízes não se manifestaram sobre essa compatibilidade, mas somente mantiveram a determinação do legislador, em sua forma e substância64.

No enquadramento da Corte nesse concerto político, não se aborda especificamente o tema da legitimidade democrática da revisão judicial. Ao final de seu artigo, Thayer alertava que o exercício da intervenção jurisdicional em desconformidade com os parâmetros expostos poderia trazer um risco ao sistema. Isto porque os legisladores, confiantes na correção posterior da revisão judicial, tenderiam a não se preocupar com questões constitucionais. Em contrapartida, se o judiciário limitasse suas interferências, os legisladores atuariam com maior acuidade, como ocorreria em outros sistemas em que não havia tal instituto, como o inglês65.

Ainda na crítica à prática judicial, em trabalho posterior, alerta para perigo mais grave causado pela interferência, que chama de “influência conservadora”, na legislação: a possibilidade de afetar a experiência política, a educação moral e o estímulo do povo, que perderia seu interesse em discutir as questões e corrigir seus próprios erros e de seus representantes66.

62 THAYER, James B. The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law

Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 144.

63 “In the class of cases which we have been considering, this ultimate question is not what is the true meaning of

the constitution, but whether legislation is sustainable or not.” THAYER, James B. The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 149- 150.

64 Para Thayer, o amparo constitucional da atuação parlamentar atribui uma presunção ao trabalho do legislador,

que entende ser assemelhada, no que se refere ao controle judicial, com o respeito que este defere às decisões do Tribunal do Júri. THAYER, James B. The The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 148-150, p. 150; 146. É de se destacar que Thayer entende que as opiniões do Poder Judiciário quanto aos demais departamentos de governo não constituem exercício de atividade jurisdicional e, por conseguinte, não estão dotadas de autoridade. A atuação entre os poderes, numa mesma esfera federativa, deve ser coordenada, mas a interpretação da constituição, enquanto atividade política, pertence aos “grandes departamentos”. Por isso não cabe aos juízes interferirem nessas decisões; devem ater-se à aplicação dos métodos e princípios convenientes a sua tarefa, considerando a possibilidade de afetar, ainda que secundariamente, a condução política do governo. (p. 153)

65 THAYER, James B. The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard Law

Review, v. 7, n. 3, p. 129-156, oct. 1893, p. 155-6.

66 THAYER, James B.. John Marshall. Boston: Houghton Mifflin, 1901, p. 106 apud KELLOGG, Frederic R..

Oliver Wendell Holmes, Jr., legal theory, and judicial restraint. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 5.

41 Infere-se, portanto, que o autor antecipou uma preocupação preponderante na doutrina constitucional do século XX: a noção de “paternalismo judicial” 67. Àquela época, o processo de interferência judicial já teria ido muito longe, pois a instituição agiria como se representasse um modelo de Constituição e governo, cuja justa e verdadeira interpretação poderia ser imposta aos demais departamentos68.

1.4 Os expoentes da auto-restrição na Corte Lochner: a atuação dos Juízes Holmes,

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