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Expansão mundial e aprofundamento dos processos de judicialização da política: dos ciclos de constitucionalização

DA FISCALIZAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E RESPOSTA JUDICIAL: UMA INCURSÃO PELA TEORIA POSITIVA

4.2 Expansão mundial e aprofundamento dos processos de judicialização da política: dos ciclos de constitucionalização

Percebe-se, no trabalho de Neal Tate e Torbjörn Vallinder, a tentativa de imprimir contornos globais, homogeneizantes e perenes à judicialização da política, em decorrência da análise de casos pontuais. Contudo, o debate direciona-se hoje ao estudo da diversidade de causas que proporcionam a expansão judicial e a delimitação de suas repercussões em sistemas específicos311.

Como marco inaugural deste processo, atribui-se a Marbury v. Madison o estabelecimento da premissa da hegemonia da constituição como norma estruturadora da produção do direito, com potencial de submeter os demais poderes. Nos países filiados à tradição romano-germânica, o triunfo do constitucionalismo teve como baliza a redemocratização da Europa após a Segunda Grande Guerra, e se deve às condições peculiares daquele momento histórico, em que se observou na positivação de valores morais e nas potencialidades dos tribunais constitucionais a oportunidade de reconstruir os elementos de coesão social312.

310 Isto ocorre inclusive quando o governo chega ao que denomina de auto-restrição, na preferência por negociar

com a oposição, para afastar o risco de que determinada política seja anulada pela corte constitucional. SHAPIRO, Martin; SWEET. Alec Stone. On law, politics, judicialization. New York: Oxford University Press, 2002, p. 188.

311 Na obra organizada por Neal Tate e Tobjorn Vallinder, são analisados os contextos jurídicos e políticos dos

Estados Unidos, de países da Europa Ocidental, da Austrália, Estados da zona de influência da extinta União Soviética e até países da África e da América Latina, toma-se como ponto de partida a noção de que o direcionamento de expectativas ao Poder Judiciário é uma tendência mundial, típica das democracias contemporâneas e originária de diversos fatores. São desenvolvidos, hoje, estudos voltados às peculiaridades da judicialização em contextos regionais. Quanto a Ásia, por exemplo, tem-se: GINSBURG, Tom. Judicial review in new democracies: constitutional courts in asian cases. New York: Cambridge University Press, 2003. Sobre o processo de reconstrução da Europa, STONE SWEET, Alec. Governing with judges – constitutional politics in Europe. Oxford: Oxford University Press, 2000. E com especial atenção a América Latina, GLOPPEN, Siri; GARGARELLA, Roberto; SKAAR, Elin. Democratization and the judiciary: the accountability function of courts in new democracies. London: Frank Cass Publishers, 2004.

312 STONE SWEET, Alec. Governing with judges – constitutional politics in Europe. Oxford: Oxford

University Press, 2000, p. 38. Por isso que na Europa, houve uma preferência pela linguagem dos direitos, na imposição de direitos fundamentais pelo judiciário. FEREJOHN, John; PASQUINO, Pasquale. Rule of democracy and rule of law. In: MARAVALL, José María; PRZEWORSKI, Adam (orgs.). Democracy and the rule of law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 242-260, p. 250.

Após a consolidação na Europa e com o reconhecimento da atuação da Suprema Corte dos Estados Unidos, a “revolução constitucional”313 irradiou-se e, juntamente com a expansão da economia de mercado, é considerada um fenômeno mundial, a abranger distintas tradições jurídicas. Seu aporte teórico, o constitucionalismo, é fórmula hodiernamente aceita na grande maioria dos países que adotam um Estado de Direito.

Concebidos, pois, dois modelos distintos de constitucionalidade que, a partir das características das sociedades que acolheram a ortodoxia constitucionalista, tomam feições as mais diversas. Classicamente, a expansão da arena judicial nos âmbitos ocupados pela política é creditada à visibilidade do modelo democrático dos Estados Unidos, a pátria da revisão judicial314.

O direcionamento ao direito em dados momentos políticos permite atestar a existência de ciclos de constitucionalização, fundamentados nas diferenças históricas, culturais, sociais, políticas e econômicas entre os diversos países que adotaram sua fórmula. Dentre elas, destaca-se a classificação empreendida por Ran Hirschl, que aponta distinções entre os diversos processos, assentadas nas condições políticas que redundaram na promulgação de um texto constitucional.

Identifica-se a aceitação do constitucionalismo nos processos verificados após a II Guerra Mundial na Itália, Alemanha e França (“reconstruction wave”); como parte do processo de descolonização, como ocorreu com as ex-colônias britânicas na Índia, Gana e Nigéria, nos anos 60 (“independence scenario”); nos processos de transição à democracia na Grécia, Portugal, Espanha, Brasil, Colômbia, Bolívia, Peru e África do Sul (“single transition

scenario”), nos procedimentos de transição para a economia de mercado e modelo ocidental de democracia, como nos países do antigo bloco soviético (“dual transition scenario”).

313 CAPPELLETTI, Mauro. ¿Renegar de Montesquieu? La expansión y la legitimidad de la “justicia

constitucional”. Revista Española de Derecho Constitucional, a. 6, n. 17, p. 9-47, may./ago. 1996, p. 14-15.

314 É o que defendem Tate e Vallinder, especialmente após a queda dos regimes políticos socialistas da Europa

Oriental. TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn (orgs.). The global expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995, p. 2. Ao revés, Bruce Ackerman e Mark Tushnet não visualizam a influência do constitucionalismo norte-americano nos países europeus e asiáticos, mas a prevalência do modelo alemão. Ackerman lembra que as decisões das cortes européias – precipuamente a alemã – parecem mais comprometidas com a defesa de direitos individuais. Por isso, junta-se ao esforço de outros constitucionalistas daquele país (como Mark Tushnet), a incentivar seus colegas em incursões no Direito Comparado. ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Virginia Law Review, v. 83, p. 771-797, 1997. Disponível em: http://www.law.yale.edu/documents/pdf/Faculty/TheRiseofWorldConstitutionalism.pdf, p. 796. Em certos países asiáticos, embora os tribunais previstos não tenham sido implementados, também haveria uma preponderância do modelo kelseniano sobre o estadunidense. Essa preferência se dá, dentre outros fatores, pela desconfiança de um esquema descentralizado de poder, em virtude de certa uma decepção, por parte dos defensores de uma democracia convencional, com os regimes posteriormente eleitos. Tem-se a idéia, assim, que as eleições não são suficientes e que cortes fortes seriam mais adequadas. GINSBURG, Tom. Judicial review in new democracies: constitutional courts in asian cases. New York: Cambridge University Press, 2003 (kindle, posição 128/4023)

117 Afere-se, ainda, a constitucionalização quando associada com a incorporação de direito trans, supra ou internacional na legislação doméstica (“the ‘incorporation’ scenario”) e nas oportunidades em que tais reformas, a rigor, não são acompanhadas por mudança fundamental no regime político e/ou econômico dos países que adotaram a fórmula constitucionalista, como na Suécia e no México (“non apparent transition scenario”)315.

A confirmar a tese da expansão atual, tem-se democracias consolidadas, como o Canadá, Nova Zelândia e Israel, que adotaram o binômio supremacia constitucional e jurisdição ativa, sem a correspondente mudança de regime político316.

Além da constitucionalização dos ordenamentos jurídicos e a afirmação geral de uma judicialização da política, constata-se hodiernamente um “novo movimento de expansão judicial”, uma espécie de aprofundamento destes processos. Isto porque o fortalecimento das cortes parece transcender a discussão judicial de políticas públicas, as decisões sobre os direitos fundamentais ou o redesenho judicial das fronteiras legais entre os órgãos estatais, que constituíriam a “política”.

Em trabalhos mais recentes, Ran Hirschl avança sobre esse “novo momento”, ao tratar de um processo que inicialmente denominou de judicialization of pure politics e, posteriormente, de mega politics, que consiste na total transferência às cortes de algumas das mais pertinentes e importantes polêmicas que a política democrática pode contemplar. Tal encaminhamento – e talvez aí esteja um aspecto importante – baseia-se na noção de que as cortes são o foro adequado para a decisão das grandes disputas políticas nacionais. A atuação judicial, nesses temas, apresenta grande controvérsia, pela ausência de diretrizes constitucionais para sua solução e, por conseguinte, pela carência de amparo democrático317.

Após demonstrar a dificuldade inicial em definir a pure politics – quando defendia uma espécie de “senso intuitivo” sobre seu conteúdo -, o autor estabelece que a mega política corresponde aos temas de “absoluta e extrema importância”, que definem e dividem um sistema político, constituindo as “questões existenciais nacionais”, categoria abrangente, a

315 Tem-se, na Europa, três instancias de revisão da atividade parlamentar: juízes ordinários, juízes

constitucionais e aqueles das Cortes Européias (como a Corte de Justiça e a Corte de Direitos Humanos). FEREJOHN, John. Judicializing politics, politicizing law. Law and Contemporary Problems, v. 65, n. 3, p. 41-69, 2002, p. 42.

316 HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy. The origins and consequences of the constitutionalism. Cambridge:

Harvard University Press, 2004, p. 6-12. A afirmação do constitucionalismo nestes países é analisada de forma mais detida pelo autor, de modo a avaliar alguns dos pressupostos de sua proposta para a compreensão da expansão do poder judicial ao redor do mundo, especialmente no que tange às conseqüências concretas de tal fenômeno. A escolha deve-se às características destes países,que tradicionalmente seguem o modelo britânico de supremacia parlamentar e autocontenção judicial, inserindo-se na escola da common law. Contudo, como sociedades divididas em grupos políticos, econômicos e étnicos, reclamarão potencialidades da fórmula.

317 HIRSCHL, Ran. The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide. Fordham Law

incluir desde resultados eleitorais e mudança de regime político até intrincadas discussões sobre identidade coletiva e de construção nacional318.

Não por acaso, são citados exemplos mais recentes de judicialização da mega política e conseqüente possibilidade de interferência judicial em domínios típicos e tradicionalmente reservados à “política tradicional” (agentes políticos e instituições majoritárias) em outras “democracias constitucionais”, além da norte-americana319.

Inicialmente, a interferência mais claramente política ocorre quando as cortes julgam questões relativas ao próprio processo democrático. Isto ocorreu na última década nos EUA, com as decisões da Suprema Corte sobre financiamento de campanhas, voto distrital (gerrymandering) e a redefinição dos distritos eleitorais, amplamente discutidas naquele sistema. Nessa categoria se incluem decisões sobre partidos políticos e candidatos – e seu afastamento das disputas eleitorais – e sobre validade das listas eleitorais320.

O questionamento no judiciário de questões como segurança nacional, política externa e política fiscal, matérias reservadas ao Poder Executivo, também teria se fortalecido nos EUA, com a discussão das políticas encampadas pelo Governo no combate ao terrorismo após os atentados de 11 de setembro de 2001, pelos mecanismos da doutrina dos “freios e contrapesos”321.

A sindicabilidade judicial dos temas relacionados às mudanças de regime justificaria, de igual forma, essa nova categoria, seja na apreciação de textos constitucionais, no

318 Nas palavras do autor, tratam-se de “matter of outright and utmost political significance that often define and

divide whole polities”, HIRSCHL, Ran. The judicialization of mega-politics and the rise of political courts. Annual Review of Political Science, v. 11, p. 1-44, 2008. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1138008. Acesso em 18 mai 2010, p. 7

319HIRSCHL, Ran. The judicialization of mega-politics and the rise of political courts. Annual Review of

Political Science, v. 11, p. 1-44, 2008. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1138008. Acesso em 18 mai 2010, p. 3.

320 Em mais de 25 países, teve-se o arbitramento e até definição dos resultados eleitorais, como ocorreu em

Taiwan (2004), Porto Rico (2004), Ucrânia (2005), Congo (2006), Itália (2006), México (2006) e Nigéria (2007) nas suas respectivas cortes constitucionais.São apontados como exemplo, ainda, a definição do fututo de importantes líderes políticos, no julgamento de questões como corrupção contra chefes de Estado (Silvio Berlusconi na Itália, Alberto Fujimori no Peru) e, nas palavras do autor, 'julgamentos políticos" - nos quais lideranças foram indiciadas, desqualificadas e até “removidas” da competição política por um “judiciário politizado”. HIRSCHL, Ran. The judicialization of mega-politics and the rise of political courts. Annual Review of Political Science, v. 11, p. 1-44, 2008. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1138008. Acesso em 18 mai 2010, p. 7-8. Em que pese a noção de Hirschl, há uma preocupação de se distinguir, tecnicamente, judicialização (voltada à transferência do debate político ao jurídico, das instituições majoritárias, eleitoralmente controláveis, pelo judiciário) do chamado processo de criminalização. Para Maravall, a criminalização da política é uma "response to collusion among politicians" PRZEWORSKI, Adam. Introduction. In: MARAVALL, José María; PRZEWORSKI, Adam (orgs.). Democracy and the rule of law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 1-15, p. 14.

321 HIRSCHL, Ran. The judicialization of mega-politics and the rise of political courts. Annual Review of

119 arbitramento de conflitos entre Legislativo e Executivo e nas constantes decisões sobre processos políticos conturbados322.

A chamada justiça de transição ou reparadora é, igualmente, um campo importante para atuação judicial, tendo-se como exemplo mais eloqüente a decisão do Tribunal Constitucional Sul-Africano que permitiu o estabelecimento da Comissão da Verdade e da Reconciliação (Truth and Reconciliation Commission), de caráter quase-judicial, mas que assegurou a anistia para as condutas praticadas no antigo regime de apartheid que fossem ali confessadas (“amnesty-for-confession)” 323.

Por fim, tem-se as decisões referentes à convivência e integração dos diversos grupos (religiosos, étnicos) em sociedades multiculturais (denominadas de “razão de ser” da política e agrupadas, na terminologia do autor, na categoria "defining the nation via courts”)324.

Ao definir o recrudescimento do processo de interferência – desta vez sobre a mega política, Hirschl mostra um novo viés, que indica uma alteração qualitativa da judicialização da política.

4.3 Das explicações para os processos de constitucionalização às interações entre as

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