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A transição para uma “Teoria Constitucional”: “neutralidade” e metodologia no trabalho de Herbert A Wechsler

CORTE E DOUTRINA JURÍDICA: ATIVISMO E AUTOCONTENÇÃO COMO NOÇÕES CONTINGENTES NA TEORIA CONSTITUCIONAL

DOS PROCESSOS DEMOCRÁTICOS

2.1 A transição para uma “Teoria Constitucional”: “neutralidade” e metodologia no trabalho de Herbert A Wechsler

A nova faceta da revisão judicial nos EUA estava anunciada na nota de rodapé de um julgado de 1938 (United States v. Carolene Products), em que a Corte decidiu pela constitucionalidade de uma norma de saúde pública que proibia as companhias de diluir leite em outros produtos. O Chief Justice Harlan Fiske Stone levantou a necessidade de novas

constitucional foundations para amparar a proteção judicial das liberdades individuais e os direitos das minorias. Em 1954, teve-se mais um prenúncio da “revolução de direitos” vindoura: a célebre e polêmica decisão de Oliver Brown et al. v. Board of Education of

Topeka (Kansas) - ou simplesmente Brown v. Board of Education - em que foi julgada a inconstitucionalidade da política de segregação racial nas escolas106.

Em 1959, Herbert A. Wechsler publicou seu texto “Toward Neutral Principles in

Constitutional Law”107, que desempenha interessante papel na transição doutrinária e também jurisprudencial entre a primeira fase da Corte Warren e sua virada em torno de um “ativismo” mais acentuado, nas decisões dos anos 60.

Neste momento, o recurso à “metodologia” pode ser interpretado como uma tentativa de conciliação da crítica acadêmica – dirigida à fundamentação do caso Brown, por exemplo – com a “nova dimensão da fiscalização constitucional do pós-guerra”, em que a revisão judicial já parecia melhor assimilada pelos juristas108.

Em seu trabalho mais conhecido, o autor mostra-se disposto a enfrentar o que denominava de maior problema do Direito Público à época: o papel da Suprema Corte e dos

106 Este julgado é amplamente referendado como exemplo proteção de minorias, e um marco na garantia das

liberdades civis. BAUM, Lawrence. The Supreme Court. Ohio: CQ Press, 2010, p. 23.

107 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p.

1-35, nov. 1959.

108 FRIEDMAN, Barry. The history of the countermajoritarian difficulty, part three: the lesson of Lochner. NYU

53 demais tribunais, na tradição jurídica, e sua atividade de manutenção, interpretação e desenvolvimento da Constituição109.

Wechsler afirma não ter dúvidas sobre o papel dos tribunais na defesa da Constituição, que decorre da cláusula de supremacia - o multicitado Article VI110. Reconhece que o desenvolvimento do sistema jurídico aumenta as oportunidades de intervenção judicial. Por isso, defende o estabelecimento de critérios para a atuação das cortes, que devem funcionar como Courts of Law e não interferir nos demais ramos, atuando como um terceiro órgão legislativo. Para o autor, não há dúvidas sobre a prioridade do Parlamento, que dispõe de uma "mão maior"111.

Para identificar as peculiaridades da função judicial frente à atividade legislativa, Wechsler recorre aos princípios, com o reconhecimento das diferenças entre juristas e políticos quando os utilizam como critério decisório. Se na política os princípios são utilizados como "ferramenta manipulativa", espera-se coisa distinta dos juízes, de sorte que os tribunais devem atuar como um "poder nu" no exercício da sua função112.

Assim, passa à caracterização do papel desempenhado pela razão e pelos princípios na atuação judicial, que se assenta na sua “neutralidade”113. Diante da relevância da função de aplicação da Constituição, as decisões de princípios são aquelas amparadas em todos os aspectos jurídicos do caso que, em sua generalidade e neutralidade, transcendem qualquer resultado imediato envolvido. A virtude ou demérito de uma decisão deriva das razões em que se fundamenta e de sua adequação para manter a ordem de valores ali representada114.

109 Como lembra Sunstein, no âmbito da interpretação, a crítica às decisões "liberais" da Corte Warren fortaleceu

três aportes distintos - tradicionalismo, populismo e cosmopolitismo – que pressupõem a noção de que, se muitas pessoas pensam algo, essa visão deve ser respeitada e levada em consideração (“many minds argument”). Embora representem tradições distantes e controversas entre si, a perspectiva de que não é possível fundamentar o resultado da interpretação na intenção do constituinte ou do legislador unifica as três correntes. SUNSTEIN, Cass R.. A constitution of many minds: why the founding document doesn´t mean what it meant before. Princeton: Princeton University Press, 2009, p. 37.

110 O autor reconhece a crítica que constituía o fundamento da teoria de Thayer sobre a revisão judicial, o fato de

que, nos “Federalistas”, Alexander Hamilton não mencionou expressamente a tão propalada cláusula de supremacia. WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p. 1-35, nov. 1959, p. 1-5.

111 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p.

1-35, nov. 1959, p. 5.

112 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p.

1-35, nov. 1959, p. 15.

113 Não posso deixar de salientar que essa exposição se faz no plano das idéias dos autores descritos e sua

relevância para a conformação da atividade judicial. Sou consciente das implicações do debate sobre neutralidade na Teoria Geral do Direito, na Hermenêutica Jurídica e na Ciência Política, no que concerne à construção dessas disciplinas no sentido de desvendar essa pretensão e sua inviabilidade.

114 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p.

O autor reconhece que a auto-restrição, assentada nesta “neutralidade”, é importante sempre que a Corte for impor a “ordem de valores” constitucional aos poderes Executivo e Legislativo. A força da revisão judicial, porém, não restringe à limitação de seu exercício, mas no modo, na fundamentação e conseqüente conformidade das decisões prolatadas115. Por esse motivo, interpreta-se que a neutralidade, em seu trabalho, representa a pretensão de consistência com as decisões proferidas anteriormente116.

Sua questão é apreciar e fixar os parâmetros para o exercício da revisão judicial117, que vinculariam os próprios doutrinadores, uma vez que, respeitados esses critérios, os comentaristas teriam o dever de apoiar a Corte. Wechsler desvenda, assim, a profunda relação entre o exercício da atividade judicial e a doutrina constitucional118.

Dessa construção, o autor passa à análise de Brown v. Board of Education, em que foi decidida a inconstitucionalidade das políticas de segregação racial nas escolas. O autor avalia as críticas mais freqüentes, à época, sobre a decisão e as confronta com sua interpretação dos contornos da atividade judicial no exercício da fiscalização de constitucionalidade.

A decisão unânime da referida ação coletiva não seria censurável, segundo Wechsler, pelos critérios comumente expostos pela doutrina, apegada ao papel dos precedentes como fonte de direito. Isto porque a decisão em referência derrubou um precedente de 1896 (Plessy

v. Ferguson), que havia permitido a distinção entre crianças negras e brancas nas escolas públicas.

De acordo com a concepção de revisão judicial defendida pelo autor, o condenável é a fundamentação do julgado, amparada naquilo que denomina consistir na “suposição” de que as crianças negras são prejudicadas por este sistema. Referido argumento é reputado como problemático, porque se afasta das considerações unicamente jurídicas119. Para o autor, a questão poderia – e, portanto, deveria - ser resolvida pela negativa de igualdade (equality),

115 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p.

1-35, nov. 1959, p. 25.

116 POSNER, Richard A. The rise and fall of judicial self-restraint. California Law Review, v. 100, n. 3, p. 519-

555, jun. 2012, p. 9.

117 WHITTINGTON, Keith E. Herbert Wechsler's complaint and the revival of grand Constitutional Theory.

University of Richmond Law Review, n. 34, p. 509-543, may. 2000, p. 514.

118 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p.

1-35, nov. 1959, p. 11.

119 A suposição de que se valeu a Suprema Corte foi justificada em relatos assemelhados aos chamados Brandeis

Briefs, cuja apreciação foi incorporada à prática do tribunal pelo Judge Louis Brandeis, um dos expoentes da auto restrição.

55 quanto a uma minoria não dominante politicamente, que não optou pela segregação que lhe foi dirigida120.

Em sua proposta metodológica, as decisões devem obedecer a critérios de princípio e consistência. O último aspecto demanda a existência de, ao menos, duas decisões que guardem coerência entre suas determinações. Isto permite que o tribunal seja fiel aos fundamentos anteriormente articulados e, no presente, arrazoe suas decisões com a expectativa mínima de que estas sejam seguidas no futuro.

A crítica de Wechsler, em resumo, é de que a Corte, no julgamento de Brown, teria se afastado dos critérios neutros, para alcançar resultados que, embora política e moralmente interessantes, não poderiam ser justificados constitucionalmente121. A censura também é dirigida - como exemplo da interação entre tribunal e doutrina – aos defensores da decisão, por encamparem argumentos políticos para sua justificação122.

De todo modo, as decisões controversas da Suprema Corte não afastam a manifestação de otimismo de Wechsler quanto à revisão judicial, pois entende que seu exercício teria, a longo prazo, um efeito positivo sobre o futuro da sociedade.

Ao final de seu trabalho, mais uma vez reforça a necessidade de interação entre a atividade da corte e a doutrina jurídica. Essa relação permite-lhe expor sua discordância com os autores que questionavam a ilegitimidade das cortes para o exercício da sua função. Para ele, esta discussão consistia numa negativa da neutralidade da própria atividade jurisdicional123.

O trabalho de Wechsler, assim, representa a reciprocidade entre a atuação da corte e o estabelecimento, pela doutrina constitucional, de “padrões” para sua função, sob o cânone

120 Para Wechsler, o desconhecimento do precedente não seria propriamente um problema, pois é um mecanismo

previsto naquele sistema. A inobservância da jurisprudência firmada pelos magistrados nos estados do Sul dos EUA, na defesa destas políticas também não seria empecilho para a inovadora decisão. Mesmo a questão da interpretação da Quarta Emenda, a partir da qual a Corte havia, no precedente derrubado, permitido a manutenção do separate but equal, por entender que este não contrariava a cláusula do tratamento igualitário, não seria um problema específico do julgado. WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1, p. 1-35, nov. 1959, p. 31-32.

121 Essa mesma crítica era comum nos anos 50, em que se considerava Brown um exemplo de ativismo, por não

estar assentada no texto expresso da constituição. ROOSEVELT III, Kermit. The myth of judicial activism: making sense of Supreme Court decisions. New Haven: Yale University Press, 2006, p. 13.

122 Essa construção é criticada pela complexa relação entre coerência argumentativa e a “nova” neutralidade

proposta. Como lembra Frederick Schauer, a consistência e os princípios constituem características essenciais da própria fundamentação das decisões, mas não se confundem com a idéia de neutralidade. Tampouco seria possível visualizar prejuízos, em dadas situações, decorrentes de questões deixadas “em aberto” para futuros pronunciamentos. SCHAUER, Frederick. Neutrality and judicial review. KSG Working Paper, n. RWP03-008, p. 1-33, 2003. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=380920. Acesso em 15 mai 2011, p. 3, 6-7, 12.

123 WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of Constitutional Law. Harvard Law Review, v. 73, n. 1,

metodológico. Estes aspectos tornaram-se, como será visto em capítulos posteriores, fonte das mais influentes censuras às decisões da Corte, feitas sob o rótulo de ativismo judicial.

A multiplicidade de aspectos albergados pela construção de Herbert Wechsler teria apresentado os contornos definitivos do debate jurídico acerca da revisão judicial nos EUA no século passado. Seu trabalho fornece aquilo que Keith Whittington denomina de rede "explanatório-descritiva e valorativo-prescritiva", cuja função é guiar a atividade judicial, mas também serve como fundamento de avaliação e crítica do trabalho desenvolvido pelas cortes124.

2.2 A solução da dificuldade contramajoritária em Alexander Bickel: a importância das

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