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CAPÍTULO I: DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA – ENTRE O

1.2 DILEMAS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

1.2.3 Democracia Brasileira

1.2.3.2 Democracia de baixa intensidade

Um dos enquadramentos que se pode dar à democracia brasileira é a sua baixa intensidade, referenciado em Santos (2003b), pois se constata que o modelo hegemônico de democracia (democracia liberal, representativa), apesar de globalmente triunfante, não garante mais que uma democracia de baixa intensidade, baseada na privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre representantes e representados e em uma inclusão política abstrata feita de exclusão social.

Sobre os principais elementos da concepção hegemônica de democracia, Santos (2003b, p. 41-42), destaca:

a contradição entre mobilização e institucionalização (HUNTINGTON;

GERMANI apud SANTOS, 2003b);

a valorização positiva da apatia política (DOWNS apud SANTOS, 2003b), uma

ideia muito salientada por Schumpeter, para quem o cidadão comum não tinha capacidade ou interesse político senão para escolher os líderes aos quais caberia tomar as decisões (apud SANTOS, 2003b);

a concentração do debate democrático na questão dos desenhos eleitorais das

democracias (LIJPHART apud SANTOS, 2003b);

o tratamento do pluralismo como forma de incorporação partidária e disputa entre

as elites (DAHL apud SANTOS, 2003b);

a solução minimalista para o problema da participação via discussão das escalas e

da complexidade (BOBBIO; DAHL apud SANTOS, 2003b).

Como diz Chauí (2004, p.23), “[...] estamos acostumados a aceitar a definição liberal

da democracia como regime de lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”. E com a prevalência da ideia da representação, a cidadania é definida pelos direitos civis e a democracia se reduz a um regime político eficaz, baseado na ideia da cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para problemas econômicos e sociais.

Na concepção liberal, a figura principal é a do indivíduo como portador da cidadania civil ou política, vivendo na sociedade civil, determinada pelas relações de mercado. Em busca de outra concepção de democracia, Chauí (2004, p. 24-25) aponta que “[...] numa

concepção de esquerda, a figura principal é das formas de organização associativa das classes e grupos sociais (sindicatos, movimentos sociais e populares)”.

Vale lembrar que, conforme Coutinho (1980, p. 21-22), quando Lênin afirmou que não

existe “democracia pura”, que a democracia é sempre burguesa ou proletária, era para lembrar

que no plano do conteúdo histórico-concreto, o substantivo democracia aparece sempre adjetivado. Em outros termos, ele estava sendo fiel aos ensinamentos de Marx e Engels,

afirmando “[...] não poder existir, salvo em breves períodos de transição, regime estatal sem

conteúdo de classe determinado, sem que uma classe fundamental no modo de produção

determinante exerça por meio desse regime sua dominação sobre o conjunto da sociedade”.

Cabe também ressaltar na tradição marxista a articulação, feita por Lênin, da democracia com o socialismo:

O socialismo é inconcebível sem democracia em dois sentidos: 1) o proletariado não pode realizar a revolução socialista se não se preparar para ela por meio da luta pela democracia; 2) o socialismo vitorioso não poderá consolidar sua vitória e conduzir a humanidade no sentido da extinção do Estado se não tiver realizado integralmente a democracia. (LÊNIN apud COUTINHO, 1980, p.09).

Uma democracia socialista seria uma democracia pluralista de massas, uma democracia organizada, na qual a hegemonia caberia ao conjunto dos trabalhadores, representados por meio da pluralidade de seus organismos de massa e sob a direção política do(s) partido(s) de vanguarda da classe operária (COUTINHO, 1980).

Para Coutinho (1980, p.31, grifos meus), “[...] a relação da democracia socialista com

a democracia liberal é uma relação de superação: a primeira elimina, conserva e eleva a nível

superior as conquistas da segunda”.

De volta para a análise do real, cito uma grande pesquisa, em um projeto intitulado

“Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos23”, realizado em seis países

(África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal), sob direção de Boaventura de Sousa Santos, no qual foram analisadas iniciativas, organizações e movimentos progressistas, em cinco domínios sociais (democracia participativa; sistemas alternativos de produção; multiculturalismo, justiça e cidadania culturais; luta pela biodiversidade entre conhecimentos rivais; novo internacionalismo operário).

Nesse projeto foram analisadas diversas experiências de democracia participativa que apontaram a existência de um traço em comum: o questionamento da identidade que lhes fora atribuída externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário e discriminador.

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Ao questionarem a gramática social e estatal de exclusão vigente, buscam a constituição de um ideal participativo e inclusivo como parte dos projetos de libertação do colonialismo (Índia, África do Sul e Moçambique) ou de democratização (Portugal, Brasil e Colômbia).

Sempre é importante lembrar o que ensina Santos (2005), que o colonialismo terminou enquanto relação política, mas não enquanto relação social e como diz Flores24 (p.23) “[…] el colonialismo ha sido y sigue siendo una de las mayores violaciones de la idea

de derechos humanos, pues coloca a unos, los colonizadores, en el papel de superiores y civilizados y a los otros, los colonizados, en el papel de inferiores y barbaros”.

Ao rememorar a história brasileira, lembro Faoro (2001, p.837), ao dizer que “[…] a

cultura, que poderia ser brasileira, frusta-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Souza, reiterada na travessia de D.João VI, ainda o regente

de D.Maria I, a Louca”. A terra virgem e misteriosa, povoada de homens sem lei nem rei, não

conseguiu desarticular a armadura dos cavaleiros de El-Rei, herdeiros da lealdade de Vasco da Gama – herói burocrata. A máquina estatal manteve-se portuguesa, hipocritamente casta, duramente administrativa, aristocraticamente superior.

[…] Deitou-se remendo de pano novo em velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada geraram uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante. (FAORO, 2001, p.837-838).