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CAPÍTULO I: DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA – ENTRE O

1.1 REFLEXÕES SOBRE DIREITOS HUMANOS

1.1.4 Direitos Humanos no Brasil

Nas décadas de sessenta e setenta, o Brasil vivia sob o jugo autoritário do Estado, que violava direitos fundamentais e utilizava de violência arbitrária contra pessoas e grupos. Para denunciar esses atos apareceram os primeiros grupos organizados em defesa dos Direitos Humanos. Conforme Pinheiro e Mesquita Neto (s/d, p.01), “[...] as primeiras comissões de direitos humanos foram fundadas a partir dos anos 1970 e chamaram a atenção para a tortura e assassinatos de dissidentes e presos políticos, fazendo revelar as condições gritantes das

prisões brasileiras”.

Nos anos oitenta e noventa, entretanto, o aumento da criminalidade e da insegurança, agora sob um regime democrático, levou indivíduos e coletividades a se voltarem contra a defesa dos direitos humanos, sob o pretexto que esses serviam mais aos criminosos e aos

delinquentes do que às vítimas, criando a célebre frase “Direitos Humanos: Defesa de Bandidos”, que é utilizada até o presente dia, por programas televisivos e pela população em

geral quando quer efetuar a crítica contra as ações e organizações de defesa de Direitos Humanos.

Na década de noventa9, já em “tempos democráticos”, vários acontecimentos colocaram em pauta as violações de direitos humanos que, cometidas pelo Estado Brasileiro, continuavam a acontecer sistematicamente, em especial, pelas suas organizações policiais estaduais.

Com o objetivo de limitar, controlar e reverter as graves violações de direitos humanos e implementando uma recomendação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, o governo do, então, presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu

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A partir da Constituição de 1988, foram ratificados pelo Brasil importantes instrumentos internacionais de Direitos Humanos: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; c) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; d) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; e) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; f) a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995. (PIOVESAN, 1999, p. 246).

integrar como política de governo a promoção e realização dos direitos humanos, propondo um plano de ação para direitos humanos. Em 7 de setembro de 1995, o Presidente anunciava: "[...] Chegou a hora de mostrarmos, na prática, num plano nacional, como vamos lutar para acabar com a impunidade, como vamos lutar para realmente fazer com que os direitos humanos sejam respeitados" (PINHEIRO, MESQUITA NETO, s/d, p. 03).

“Em 13 de maio de 1996, em meio ao trauma causado pelo massacre em Eldorado dos Carajás10, no estado do Pará, o governo Fernando Henrique Cardoso lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH. Foi o primeiro programa para proteção e promoção de direitos humanos da América Latina e no terceiro no mundo, elaborado em parceria com a sociedade civil, sob a coordenação de José Gregori, chefe de gabinete do Ministro da Justiça, Nelson Jobim, responsável pela preparação do Programa” (PINHEIRO , MESQUITA NETO, s/d, p. 04).

Entre as críticas recorrentes ao plano está o realce, nele, aos direitos civis e políticos, sendo entendido como pressupostos garantidores dos outros direitos (sociais, econômicos e culturais). Conforme justifica Pinheiro e Mesquita Neto:

[...] dada à extrema carência da apropriação dos direitos fundamentais mais básicos, aqueles chamados de primeira geração (os direitos civis e políticos) é legítimo que um plano de governo decida dar prioridade à promoção desses direitos. Sem a proteção desses direitos a sociedade civil sempre terá dificuldades de organizar-se e de mobilizar-se em defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais, tendo em vista a ameaça de impunidade, do arbítrio das polícias, das violações à integridade física dos cidadãos, que ainda perdura sob a democracia. (PINHEIRO; MESQUITA NETO, s/d, p. 05).

É pertinente pontuar que na experiência clássica vivida por outros países, como Inglaterra, França e Estados Unidos, assistiu-se, de maneira não linear e, também, não ao mesmo tempo para todos, ao reconhecimento dos direitos civis (as liberdades individuais), nos séculos XVII e XVIII; dos direitos políticos (a igualdade política), no século XIX; e dos direitos sociais (a igualdade social).

No século XX, porém, no caso brasileiro, essa sequência foi invertida, tendo sido os direitos sociais primeiramente reconhecidos pelo Estado brasileiro no tempo em que os direitos civis e políticos não eram garantidos, em boa parte dos anos 1930 e 1940, assim como entre a metade da década de 1960 e o início da década de 1980 (MONDAINI, 2009).

Dessa forma, ressalta-se que apesar da reconhecida importância de salvaguarda dos direitos civis e políticos em um país que viveu sob o jugo colonial e passou por um regime

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Esse caso foi amplamente divulgado na mídia brasileira e internacional, tratava-se de uma desobstrução de via interditada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que no confronto com a Polícia Militar do Pará resultou na morte de 19 trabalhadores do MST. (nota minha)

ditatorial, onde a questão social foi tratada como “caso de polícia”, observo que essa opção também possibilitou que no senso comum os direitos humanos fossem percebidos como

“direitos de bandidos”, sendo criticados por grande parte da população brasileira. Logo, urge

redimensioná-los, pois esse é um país com acentuada desigualdade social, onde convive a democracia com o fascismo social11, onde muitos não têm nem o que comer, vestir e dormir,

vivendo em “inferno”.

[...] Hoje, nos nossos dias, o Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar a pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida terrível e nada acontece e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode pensar, é como estar morto. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa gota após gota. (PRIMO LEVI, 1958, p. 21).

Dessa forma, sem desmerecer, em hipótese alguma, as enormes lutas dos movimentos de defesa de direitos humanos para as garantias e respeito dos direitos civis e políticos, afirmo que deve haver cada vez mais o envolvimento e compromisso para a garantia dos direitos

econômicos, sociais e culturais. Pois como assevera Trindade “[...] a pobreza extrema constitui, em última análise, a negação de todos os direitos humanos” (apud LIMA JR., 2001,

p. 85).

Considero a poesia de Primo Levi (1958):

SE ISTO É UM HOMEM Vós que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas,

Vós que encontrais regressando à noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabalha na lama Quem não conhece a paz Quem luta por meio pão

Quem more por um sim ou por um não Considerai se isto é uma mulher, Sem cabelos e sem nome Sem mais forces para recorder Vazios os olhos e frio o ragaço Como uma rã no Inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Esculpi-as no vosso coração Estando em casa andando pela rua; Repeti-as aos vossos filhos.

Ou então que desmorone a vossa casa, Que a doenças vos entreve,

Que os vossos filhos vos virem a cara. (PRIMO LEVI, 1958, p. 7).

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