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CAPÍTULO I: DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA – ENTRE O

1.2 DILEMAS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

1.2.1 Reflexões sobre Democracia e Estado de Direito

Nesse tópico, parto dos questionamentos desenvolvidos pelo professor Boaventura de Sousa Santos (2003a), quais sejam:

[...] existirá um conceito unívoco de democracia? Será possível explicar, por meio de uma teoria geral, todos os diferentes processos políticos do sistema mundial que podem ser identificados como processos de democratização? Será a democracia um dispositivo de regulação social ocidentocêntrico ou um instrumento de emancipação social potencialmente universal? (SANTOS, 2003a, p. 59).

A discussão sobre a democracia, conforme expressa Dahl (2009), existe há cerca de 2.500 anos, e os 25 séculos em que tem sido discutida, debatida, apoiada, atacada, ignorada, estabelecida, praticada, destruída e depois, às vezes, restabelecida aparentemente não resultaram em concordância sobre algumas das questões fundamentais sobre a democracia.

Mas será realmente tão velha a democracia? Muitos norte-americanos e outros acreditam que a democracia começou há duzentos anos, nos Estados Unidos. Outros, cientes de suas raízes clássicas, afirmariam que ela teria começado na Grécia ou na Roma antiga (DAHL, 2009).

Para Francisco Oliveira (2004), qualquer que tenha sido a transmissão da ideia de democracia dos gregos para o Ocidente que se tornava capitalista – e o colonialismo tornou-se um sistema mundial –, a democracia moderna, desde logo, já não correspondia exatamente ao governo de todos. O caráter intrinsecamente concentrador do novo sistema propõe imediatamente uma assimetria de poder entre os cidadãos que dificilmente traduz um governo de todos.

No artigo Poliarquias e a (in) efetividade da lei na América Latina, O‟Donnel (2000) cita que vários autores questionam a propriedade de se aplicar o rótulo “democracia” à maioria dos países da América Latina, argumentando que há visões distintas de democracia, uma visão da democracia como um tipo de regime político, independente das características do estado e da sociedade. Outros autores, ao contrário, veem a democracia com um atributo

sistêmico, dependente da existência de um grau significativo de igualdade socioeconômica e/ou de uma organização social e política geral orientada para a realização dessa igualdade12.

Há uma ligação estreita entre democracia e certos aspectos da igualdade entre indivíduos que são postulados não apenas como indivíduos, e sim como pessoas legais e em consequências como cidadãos, isto é, como portadores de direitos e obrigações que derivam de seu pertencimento a uma comunidade política e de lhes ser atribuído certo grau de autonomia pessoal e, consequentemente, de responsabilidade por suas ações.

Conforme O‟Donnel (2000, p. 42) “desde Platão e Aristóteles, sabemos que a

igualdade formal é insuficiente. Logo, fica evidente para as autoridades políticas, que para

esses direitos não serem “puramente formais” são necessárias medidas equalizadoras”. Mas

em muitos países latino-americanos, essas medidas “equalizadoras” não passaram de ações paternalistas e de pouco alcance das classes populares. Nesses países podem ser identificadas

várias deficiências para a construção do Estado de Direito, entre elas, O‟Donnel (2000, p.44-

45) destaca:

Falhas na legislação vigente. Aplicação da Lei.

Relações das burocracias com os “cidadãos comuns”. Acesso ao Judiciário e a processos justos.

Ilegalidade pura e simples.

Sobre o Estado de Direito, cito extratos da “Carta aos Brasileiros13” lida pelo jurista

Goffredo da Silva Telles Jr., em 8 de agosto de 1977, no interior da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito

é o Estado Constitucional.

O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à Constituição.

[...]

O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser

obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica.

[...]

Os outros Estados, os Estados não constitucionais, são os Estados cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte. São os Estados cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e que acabam por não respeitar fronteiras para sua competência. São os Estados cujo Governo não tolera crítica e não permite

contestação. São os Estados-Fim, com Governos obcecados por sua própria

segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade. São Estados opressores, que muitas vezes se caracterizam por seus sistemas de

12 Para análise no texto, O‟Donnel optou pela primeira definição. 13

Disponível em: < http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=4577> Acesso em: 23 mai. 2009.

repressão, erguidos contra as livres manifestações da cultura e contra o emprego normal dos meios de defesa dos direitos da personalidade.

Esses Estados se chamam Estados de Fato. Os otimistas lhes dão o nome de Estados

de Exceção. Na verdade, são Estados Autoritários, que facilmente descambam para a Ditadura.

[...]

Destituídos de Poder Legítimo, os Estados de Fato duram enquanto puderem contar com o apoio de suas forças armadas.

Sustentamos que os Estados de Fato, ou Estados de Exceção, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra Direitos Subjetivos, porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.

[...]

Por exemplo, em lugar dos Direitos Humanos, a que se refere a Declaração

Universal das Nações Unidas, aprovada em 1948; em lugar do habeas corpus; em

lugar do direito dos cidadãos de eleger seus governantes, esses Estados e Sistemas

colocam, frequentemente, o que chamam de Segurança Nacional e Desenvolvimento

Econômico.

Com as tenebrosas experiências dos Estados Totalitários europeus, nos quais o lema

é, e sempre foi, “Segurança e Desenvolvimento”, aprendemos uma dura lição.

Aprendemos que a Ditadura é o regime, por excelência, da Segurança Nacional e do Desenvolvimento Econômico. O Nazismo, por exemplo, tinha por meta o binômio Segurança e Desenvolvimento. Nele ainda se inspira a ditadura soviética.

Aprendemos definitivamente que, fora do Estado de Direito, o referido binômio

pode não passar de uma cilada. Fora do Estado de Direito, a Segurança, com seus

órgãos de terror, é o caminho da tortura e do aviltamento humano; e o Desenvolvimento, com o malabarismo de seus cálculos, a preparação para o descalabro econômico, para a miséria e a ruína.

[...]

A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já.14

Ao versar sobre o Estado de Direito, primeiramente, O‟Donnel (2000) mostra que este

é um termo controvertido, o seu significado mínimo é que qualquer que seja a legislação existente, ela é aplicada de forma justa pelas instituições estatais, ou seja, sem levar em consideração diferenças de classe, condição social ou poder dos participantes.

Não basta que certos atos, sejam regidos pela lei, isto é, que eles ajam secundum

legem, em conformidade com o que uma dada legislação prescreve. Esses atos podem impor a

14

Antes de sua leitura, a “CARTA” foi subscrita pelos seguintes Signatários – Lançadores: José Ignácio

Botelho de Mesquita, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Fábio Konder Comparato, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Modesto Carvalhosa, Professor da Faculdade Direito da USP e Presidente da Associação dos Docentes da USP; Dalmo de Abreu Dallari, Professor Titular da Faculdade Direito da USP e Presidente da Comissão Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de SP; Mário Simas, Vice-Presidente da Comissão Justiça e Paz; Ignácio da Silva Telles, Professor da Faculdade de Direito da USP; Tércio Sampaio Ferraz, Professor da Faculdade de Direito da USP; Gláucio Veiga, Professor da Faculdade de Direito da USP e da Faculdade Direito do Recife; Mário Sérgio Duarte Garcia, Vice-Presidente da Ordem dos Advogados de SP; Antônio Cândido de Mello e Souza, Professor Titular da USP; André Franco Montoro, Professor Catedrático da PUC e Senador; José Carlos Dias, Advogado, Consultor Jurídico da Comissão Justiça e Paz, da Cúria Metropolitana de SP; Hélio Bicudo, Procurador da Justiça de SP; Dom Cândido Padim, Bispo de Bauru, Bacharel pela Faculdade de Direito da USP; entre muitos outros.

aplicação de uma lei discriminatória e/ou que viole direitos básicos, ou a aplicação seletiva de uma lei contra alguns, enquanto outros são arbitrariamente isentos delas.

Estado de Direito não é apenas um amontoado de normas legais, mesmo que elas tenham sido adequadamente promulgadas; ele é um sistema legal. Dessa forma, o Estado de Direito pode ser visto como um governo de Estado Democrático com base legal. Isso implica um sistema legal que é ele próprio democrático em três sentidos. O primeiro, o de que ele preserva as liberdades e garantias políticas da poliarquia. Segundo, o de que ele subsidia os direitos civis de toda a população. E terceiro, no sentido de que estabelece redes de responsabilidade e accountability.

A característica específica do estado de Direito, como um atributo do aspecto legal de um Estado democrático, em contraste com todos os tipos de governo autoritário, é a existência de uma rede completa de accountabilities definidas legalmente que impõe que ninguém seja de legibus solutus. Ou seja, a democracia não é só um regime político (poliárquico), mas também um modo particular de relacionamento, entre Estado e cidadãos e entre os próprios cidadãos, sob um tipo de Estado de Direito que, além da cidadania política, preserva a cidadania legal e uma rede completa de accountability.

Um Estado legal democrático forte – que efetivamente estenda seu poder regulatório sobre a totalidade de seu território e por todos os setores sociais – é um correlato crucial de uma sociedade forte. Inversamente, a inefetividade dos direitos civis, seja sob o governo autoritário, seja sob um Estado legal fraco, obstrui a capacidade de ação que a lei atribui nominalmente a todos.

O‟Donnel (2000) chama a atenção para a dimensão fraca dos direitos civis na América

Latina, além da fraqueza de republicanismo, dessa forma, aponta que importante tarefa de levar a cabo lutas liberais pela efetividade de direitos civis formais e universalistas para todos.

Para colaborar com essas ideias, temos também Costa (2004), afirmando que as violações aos direitos civis demonstram a precariedade do Estado de Direito nos países da região. Este implica a ideia de que os agentes estatais agirão em conformidade com que prescreve a legislação e todos receberão tratamento igual perante a lei. No caso da América Latina, embora ainda existam leis e regulamentos discriminatórios contra minorias políticas (como mulheres, grupos indígenas e detentos), as maiores deficiências do Estado de Direito dizem respeito à aplicação desigual da lei e aos abusos cometidos pelos agentes estatais. Tais deficiências, portando, dizem respeito muito mais à aplicação da lei do que à existência formal de direitos e garantias individuais.

Para Costa (2004), a consolidação do Estado de Direito implica a ideia de

accountability, ou seja, o princípio segundo o qual as ações dos agentes estatais, eleitos ou

não, devam ser, de alguma forma, controladas e submetidas à avaliação dos cidadãos.

Accountability acarreta a noção de responsabilidade, controle e transparência. Por

responsabilidade entende-se que os agentes estatais encarregados de tomar decisões serão responsabilizados jurídica, política e administrativamente se algo der errado. O conceito também inclui “[...] a ideia de que todas as ações dos agentes estatais serão controladas e estarão, de fato, sujeitas a inspeções por parte das agências encarregadas de controle e fiscalização, bem como por parte da sociedade civil. Isso implica dizer que todos os atos

desses agentes estatais seguirão procedimentos transparentes” (COSTA, 2004, p. 27).

No caso brasileiro, o constituinte de 1988 quis „bradar a todos os ventos‟ que o Estado

de Direito que estava sendo fundado deveria ser qualificado como democrático, portanto instituição de um Estado Democrático. Isso foi a motivação maior da própria existência da

Assembleia Nacional Constituinte. “[...] Mas o desejo constituinte não foi o de instituir apenas

um Estado Democrático, mas sim um Estado Democrático de Direito”, que traz como pressupostos a inclusão social e a inclusão política, ensejando uma participação efetiva do povo por meio, por exemplo, de mecanismos de democracia semi-direta (RODRIGUES; ANJOS FILHO15).

É necessário um processo de luta constante e inesgotável para a concretização de um Estado Democrático de Direito no Brasil, tornando efetivo o enunciado do artigo 1º da Constituição Federal de 1988:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I a soberania; II a cidadania; III a dignidade da pessoa humana; IV os valores sociais do trabalho; V o pluralismo político. Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

É preciso buscar a emergência de “[...] uma sociedade decente, uma sociedade, na qual as instituições não humilhem as pessoas” (MARGALIT, 1996, p.1 apud O‟DONNEL, 2000,

p. 55). Perspectiva possível de ser pensada em um Estado Democrático de Direito.

15

Texto disponível em <http://www.ibec.inf.br/geisa.pdf>. Acesso em: 05 set. 2009., sem paginação e sem referência ao ano de sua produção.