• Nenhum resultado encontrado

Dependência e qualidade de vida

Segundo Oliver (1989), o conceito de dependência como é entendido no senso comum não é adequado à realidade. O preconceito de que as pessoas com defi- ciência são as únicas dependentes de terceiros não é rigoroso, uma vez que a sociedade pós-industrial é constituída por uma rede de interdependência mútua (Oliver, 1989). A dependência de uma pessoa com incapacidades não é diferen- te da dependência que todos têm, o que varia é, sim, o grau (Oliver, 1989). Oliver (1989) defende que a dependência é criada por uma variedade de causas econó- micas, políticas, profissionais e outras forças.

Na lei portuguesa (Portugal, 1989), caracteriza-se no Artigo 3.º do Decreto- Lei n.º29/89 de 23 de Janeiro a situação de dependência para fins de assistência a Terceira Pessoa da seguinte forma:

1 - Encontram-se em situação de dependência os deficien- tes que, por causas exclusivamente imputáveis à deficiência, não possam praticar com autonomia os actos indispensáveis à

19 Deficiência, Dependência e Produtos de Apoio satisfação das necessidades humanas básicas.

2 - Integra o disposto na parte final do número anterior a impossibilidade de executar, sem o apoio de terceiro, os actos relativos a cuidados de higiene pessoal, uso das instalações sanitárias, alimentação, vestuário e locomoção.

(Ministério do Emprego e da Segurança Social, 1989, p. 303)

Dadas as sequelas comuns da doença e a existência de patologias anteriores à ocorrência do acidente (Azeredo & Matos, 2003; Dallas, Rone-Adams, Echternach, Brass, & Bravata, 2008), as vítimas de Acidente Vascular Cerebral (AVC) estão fre- quentemente nas condições descritas pela lei. Os dados da literatura a este res- peito mostram que uma grande percentagem de vítimas de AVC fica com algum grau de dependência findo o período de reabilitação (Azeredo & Matos, 2003; National Stroke Foundation, 2005; Steultjens, et al., 2003; Wade, 1992).

A dependência de terceiros influencia negativamente a qualidade de vida (QDV) das vítimas de AVC (Gosman-Hedström & Blomstrand, 2003). Segundo DeJong e Branch (1982), a variância na capacidade de uma vítima de AVC em viver uma vida independente pode ser explicada pelo estado civil, idade, resul- tado no Índice de Barthel (IB) (escala de avaliação de grau de dependência - ver Capítulo 2, secção “Avaliação de grau de dependência”), problemas na comunica- ção e habilidade em entrar num veículo motorizado (DeJong & Branch, 1982), sen- do que pessoas não casadas, de idade avançada e com baixos resultados nos itens descritos acima tendem a ter uma vida mais dependente. Segundo Alaszewski e colaboradores (2003) os impactos do AVC na QDV podem ser agrupados em três categorias: físicos, psicológicos e sociais. Dentro dos impactos físicos as dificul- dades motoras são as mais preponderantes e as mais visíveis, fazendo com que as pessoas conscientes destas dificuldades se passem a ver como pessoas com deficiência. Esta alteração leva a que se estabeleça um forte sentimento de perda e faz-se normalmente acompanhar por um estado de fadiga que força as pesso- as a abrandarem o seu ritmo de vida e de execução das tarefas diárias, causando sentimentos de frustração. Os impactos psicológicos relacionam-se com o senti- mento de descontinuidade antes e após o AVC, com a incerteza acerca do futu- ro, falta de confiança e sentimentos generalizados de medo. Em termos sociais, os impactos fazem-se sentir nas relações com a família e nas dificuldades finan- ceiras trazidas pelo AVC, no revés de papéis desempenhados (sendo que a vítima de AVC passa de cuidador a alvo de cuidados por parte, sobretudo, do cônjuge ou dos filhos) e nas relações sociais. Frequentemente as vítimas de AVC sentem que as suas relações sociais foram afectadas negativamente pelo AVC, nomeadamen- te pelas dificuldades motoras que as impedem de ir ao encontro de outras pes- soas, levando ao seu isolamento social. O impacto das relações sociais na QDV é

20 Deficiência, Dependência e Produtos de Apoio

aliás alvo de muitos estudos (M Åström, Asplund, & Åström, 1992; Carod-Artal, Egido, González, & Varela de Seijas, 2000; King, 1996).

Mas se o estado de saúde influencia a QDV, o inverso também é verdade (King, 1996). No documento da Constituição da Organização Mundial de Saúde, a saú- de é definida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (World Health Organization, 1946). A saúde é apenas um dos domínios da QDV (Panzini & Bandeira, 2007), no entanto o conceito de saúde, em conjunto com o conceito de QDV, tem assis- tido a mudanças ao longo dos tempos. O aparecimento de curas para as doenças e o facto de as pessoas poderem hoje em dia viver muitos anos com uma doença controlada levou a que o conceito de saúde passasse a abranger a forma como as pessoas reagem e se adaptam à doença. A medida desta adaptação e reacção afi- gurou-se como importante entre os anos 60 e 70 do século XX para aferir como as pessoas viviam estes anos (Panzini & Bandeira, 2007). Em conjunto com as mudanças no conceito de saúde, o conceito de QDV apareceu como importante resposta às escassas medidas dadas até então somente por indicadores sociais para comparação entre países (Canavarro, Simões, Pereira, & Pintassilgo, 2005; CRPG & ISCTE, 2007). A identificação e estudo destes processos de adaptação e a procura de QDV vêm no seguimento dos pressupostos da psicologia positiva, baseados na experiência humana positiva (Panzini & Bandeira, 2007). Assim, a QDV baseia-se em padrões individuais de avaliação subjectiva acerca dos aspec- tos mais importantes da vida do indivíduo (Canavarro, et al., 2005; CRPG & ISCTE, 2007; Panzini & Bandeira, 2007). Estes padrões estão divididos nos graus de satisfação relacionados com a vida familiar, conjugal, social, ambiental, estéti- ca existencial e de acordo com a cultura própria da sociedade em que o indivíduo se insere (CRPG & ISCTE, 2007). Em 1991 a OMS criou um grupo para o estudo da QDV, o World Health Organization Quality of Life (WHOQOL), com o objectivo de criar uma ferramenta transcultural para a aferição da QDV nos diversos paí- ses. Esta ferramenta está dividida em 26 itens que têm por base a definição de QDV dada pela WHOQOL:

“percepção do indivíduo acerca da sua posição na vida, de acordo com o contexto cultural e os sistemas de valores nos quais ele vive, sendo o resultado da interacção entre os seus objectivos e expectativas e os indicadores objectivos disponí- veis para o seu ambiente social e cultural”

(WHOQOL Group, 1995, citada em CRPG e ISCTE, 2007, p. 42)

Notamos assim que o conceito de QDV é subjectivo porque está dependente de avaliações individuais e subjectivas e indicadores objectivos, e relativo quan- do temos em conta factores históricos, culturais e sociais (em termos de classes

21 Deficiência, Dependência e Produtos de Apoio sociais) (CRPG & ISCTE, 2007). Ainda assim, dadas as concordâncias na literatu- ra acerca de três pontos fundamentais – “…a qualidade de vida é inter-subjectiva (…); as suas dimensões centrais são avaliadas diferenciadamente pelos indivídu- os (…); [e] o valor associado a cada uma das dimensões varia ao longo do ciclo de vida…” (CRPG & ISCTE, 2007, p. 43) –, foi possível perceber que os itens da QDV estão distribuídos de forma hierárquica e de acordo com as necessidades huma- nas (CRPG & ISCTE, 2007).

A partir da hierarquia representada na Figura 1.1, do cruzamento com os dados de Alaszewski e colaboradores (2003) e da análise de alguns dos itens incluídos na ferramenta da WHOQOL (World Health Organization, 2004), pode- mos verificar as implicações imediatas de um AVC e suas sequelas na QDV pelo menos nos itens da WHOQOL mostrados no Quadro 1.2. São nove os itens selec- cionados que mais provavelmente, segundo a literatura, irão ser afectados pelo AVC e abrangem cinco domínios da WHOQOL: físico, psicológico, ambiental, nível de independência e relações sociais. Se cruzarmos agora estes dados com os dados na hierarquia de Schalock enumerados acima, notamos que a influência na QDV das vítimas de AVC poderá atingir desde os níveis mais baixos aos mais altos (Quadro 1.2).