• Nenhum resultado encontrado

Fisiopatologia e Etiologia do AVC

O AVC consiste na morte súbita de células cerebrais causada por má circulação da corrente sanguínea numa determinada zona do cérebro por um período igual ou superior a 24h. Esta morte de células cerebrais irá comprometer funções do cére- bro, causando diferentes tipos de sequelas consoante a zona do cérebro onde se dá o acidente, a extensão da lesão e a rapidez da intervenção pós-AVC.

A morte de células cerebrais, denominada “enfarte” pode ser causada por uma interrupção na circulação sanguínea (acidente vascular isquémico) ou por uma hemorragia (acidente vascular hemorrágico), sendo que dentro destas duas cau- sas existem duas variantes: trombose cerebral e embolia cerebral para os casos de AVC isquémico; e hemorragia subaracnoideia e hemorragia intracerebral para os casos de AVC hemorrágico. O AVC isquémico é responsável por cerca de 75% das ocorrências (EUSI, 2003).

AVC isquémico

A isquemia consiste na paragem ou insuficiência do fornecimento de sangue a um tecido ou a um órgão. Como o tecido nervoso não dispõe de reservas, está totalmente dependente da circulação sanguínea para o fornecimento de glico- se e oxigénio necessários ao metabolismo das células nervosas para que estas se mantenham activas. Assim, a interrupção da corrente sanguínea nestas áreas provocará o mau funcionamento destas células, levando a lesões cerebrais.

Se o mau funcionamento se prolongar por um período inferior a 24h, esta- mos perante um cenário de Acidente Isquémico Transitório (AIT) – estes aci-

38 Acidente Vascular Cerebral Figura 2.1 Representação do processo de trombose cerebral. Figura 2.2 Representação do processo de embolia cerebral. Figura 2.3 Representação das meninges. paredes do vaso sanguíneo sangue trombo couro cabeludo periósteo osso do crâneo dura-máter espaço subdural aracnóide espaço subaracnóideo pia-máter córtex cerebral

meninges

39 Acidente Vascular Cerebral dentes têm geralmente consequências reversíveis e são difíceis de monitorizar e seguir, deixando apenas pequenas marcas unicamente visíveis através de imagio- logia cerebral, no entanto são frequentemente tidos como previsões de um AVC de maior gravidade, ou seja, continuado por um período igual ou superior a 24h, causando lesões irreversíveis.

Trombose cerebral

Neste cenário, forma-se um trombo – um coágulo de sangue geralmente sobre uma placa de gordura – no próprio local onde se dá a oclusão (Figura 2.1). A trom- bose pode ser arterial ou venosa, sendo as arteriais as mais frequentes, sobretu- do nas artérias carótidas e cerebrais.

Embolia cerebral

Formação de um coágulo ou placa de gordura (arteriosclerose) que se des- prende das paredes dos vasos sanguíneos, viajando pela corrente sanguínea até ficar preso numa zona mais estreita de passagem, bloqueando assim a circulação do sangue (Figura 2.2).

AVC hemorrágico

Num AVC hemorrágico, o organismo reage ao enfarte, criando uma área de edema – uma “infiltração” de água e outros constituintes do cérebro – chamada “zona de penumbra” onde as células estão vivas, mas não funcionam correcta- mente. Esta reacção origina substâncias químicas tóxicas denominadas “radicais livres”, prejudiciais ao próprio organismo.

Contrariamente ao episódio isquémico, onde a circulação sanguínea é bloque- ada, num acidente vascular hemorrágico a circulação é feita para fora dos vasos sanguíneos devido ao seu rompimento. A hemorragia cerebral está relaciona- da com o aumento da pressão arterial, que, provocando a fragilização das pare- des arteriais, causa uma ruptura nas mesmas paredes, fazendo com que o sangue extravase para fora da corrente sanguínea. Os acidentes hemorrágicos causam um aumento de pressão no cérebro pela compressão das suas estruturas levan- do ao seu mau funcionamento.

Hemorragia subaracnoideia

Consiste no rompimento de um vaso sanguíneo e hemorragia no espaço suba- racnóideo (entre o crânio e o cérebro).

Hemorragia intracerebral

Assim como a anterior, consiste numa hemorragia cerebral, mas desta feita no interior do próprio cérebro (Figura 2.3).

40 Acidente Vascular Cerebral

Sequelas

A vascularização do cérebro é feita através de artérias que ligam o coração ao cérebro – cerebrais médias, vertebrais e carótidas internas – todas elas interliga- das através do polígono de Willis (Figura 2.4).

As sequelas de um AVC variam também consoante a artéria em que se dá o enfarte, dado que diferentes artérias vascularizam diferentes zonas cerebrais responsáveis por variadas funções. Lesões de ordem isquémica irão dar azo a diferentes sequelas consoante o tamanho da artéria afectada, o estado da circu- lação colateral e a área do cérebro envolvida (Snell, 1997).

De acordo com Snell (1997), as manifestações clínicas de um AVC isquémi- co segundo a artéria afectada podem agrupar-se como apresentadas no Quadro 2.2.

Como mostrado no Quadro 2.2, as sequelas de um AVC podem ser muitas e variadas. Uma vez que o cérebro é responsável por todo o funcionamento huma- no, vários problemas podem ser originados consoante o local e extensão da lesão provocada. Podem dar-se problemas de percepção, cognição, personalidade, alterações emocionais, visão, linguagem, tónus muscular, controlo motor e sen- soriais (Morgans & Gething, 2003).

Ao nível motor a apresentação mais comum de uma vítima de AVC é a hemi- plegia ou a hemiparesia. A hemiplegia consiste na paralisia total de um dos lados do corpo (contrário ao hemisfério em que se deu o acidente) e pode afectar em simultâneo um dos membros superiores, um dos membros inferiores e meta-

Figura 2.4 Polígono de Willis. artéria cerebral anterior artéria cerebral média esquerda artéria comuni- cante posterior artéria cerebral posterior artéria basilar artéria vertebral artéria carótida interna artéria cerebral média direita artéria comuni- cante anterior

41 Acidente Vascular Cerebral de da cara. A hemiplegia, podendo ser espástica (músculos rígidos) ou flácida (músculos flácidos) acarreta anomalias motoras relacionadas com o tónus mus- cular, o equilíbrio ou a coordenação (Bobath, 1990). Se esta paralisia contra late- ral for somente parcial, estamos na presença de uma hemiparesia. Quando um só membro ou grupo muscular está paralisado dá-se o nome de monoparesia. Geralmente, quando a monoparesia se dá num dos membros superiores as pes- soas apresentam os dedos e o pulso em flexão. No caso de se dar num dos mem-

Artéria que sofre

oclusão Zona afectada Síndromes

Cerebral anterior

Lobo paracentral Hemiparesia contra lateral e perda de sensibilidade envolvendo, principalmente, perna e pé Lobo frontal e lobo

parietal Inabilidade para identificar objectos correctamente, apatia e distúrbios na personalidade Cerebral média Giros pré-central e

pós-central Hemiparesia contra lateral e perda de sensibilidade envolvendo, principalmente, cara e braço Afasia se o lado esquerdo for o afectado; a afasia raramente ocorre se o lado afectado for o direito Anosognosia se o lado direito for o afectado; a anosognosia raramente ocorre se o hemisfério afectado for o esquerdo

Cerebral posterior

Córtex calcarino Hemianópsia homónima contra lateral sem grandes danos causados à mácula Isquemia do lobo

occipital esquerdo Agnosia visual Dano possível no

lobo temporal

médio Distúrbios na memória

Carótida interna Sintomas e sinais idênticos aos da oclusão da arté- ria cerebral média, incluindo hemiparesia contra lateral e hemianestesia

Perda parcial ou completa da visão no mesmo lado em que se deu a oclusão, mas a perda permanente de visão é rara

Vértebro-basilar Dor ipsilateral e perda de sensibilidade da tempera- tura na cara: dor contra lateral e perda de sensibili- dade da temperatura no corpo

Ataques de hemianópsia ou completa cegueira cortical

Perda ipsilateral do “reflexo de engasgamento” (gag reflex), disfagia e rouquidão

Vertigens, nistagmo, náuseas e vómitos Síndrome de Horner ipsilateral

Ataxia ipsilateral e outros sinais cerebelares Hemiparesia unilateral ou bilateral

Coma

Quadro 2.2 Síndromes de

isquemia segundo arté- ria obstruída (Snell, 1997, p. 513).

42 Acidente Vascular Cerebral

bros inferiores, é frequente a planta do pé estar em flexão, levando a que a pessoa só pouse a ponta do pé no chão. Paralelamente, a perna não é flexionada duran- te a marcha, levando a que seja arrastada (Figura 2.5). Algumas vítimas de AVC apresentam também o chamado síndrome de Pusher, assim chamado porque as pessoas empurram o lado não comprometido para o lado paralisado.

Logo depois do AVC a maioria das pessoas apresenta hipotonia (flacidez), que consiste numa diminuição do tónus muscular. Nesta fase os membros afectados estão flácidos, o que faz com que as vítimas de AVC não se consigam firmar no espaço (Organização Mundial de Saúde, 2003). Não é frequente este estado de hipotonia ser permanente. Geralmente, ao longo da recuperação, as pessoas evo- luem deste estado de hipotonia para o estádio de recuperação e deste para o está- dio de hipertonia. Durante o estádio de recuperação os movimentos começam a voltar ao normal, iniciando-se nas extremidades distais dos membros e ocorren- do em primeiro lugar nos membros superiores. Este processo é possível graças a um fenómeno denominado neuroplasticidade, em que as células remanescentes passam a exercer funções anteriormente cumpridas pelas células que morreram em consequência do acidente. Depois desta fase é frequente que a recuperação dê azo a um estádio de hipertonia (espasticidade). A espasticidade verifica-se em muitos músculos, sobretudo nos responsáveis pelo suporte e deslocação do peso corporal. Esta espasticidade associada à incapacidade para iniciar os movimen- tos levará a complicações como “assimetria, ausência de rotação, inadaptação do corpo à gravidade, ausência de graduação do movimento e ausência de extensão protectora do braço” (Organização Mundial de Saúde, 2003, p. 15). Nesta fase as alterações ao tónus muscular irão ditar a maior ou menor facilidade das vítimas de AVC na realização de movimentos. Se a espasticidade for severa os movimen- tos são extremamente difíceis ou impossíveis; na presença de uma espasticida- de leve os movimentos são possíveis com algum esforço, ainda que sejam realiza- dos lentamente e com alguma falta de coordenação; a espasticidade leve permite movimentos grossos mas dificulta os finos.

A capacidade na realização de movimentos pode estar comprometida por outras manifestações clínicas como a apraxia, a ataxia ou a distonia. No primei- ro caso observa-se uma incapacidade para realizar movimentos voluntários com destreza. Apesar de os quererem realizar e das suas capacidades motoras, fun- ções sensoriais e compreensão das tarefas estarem intactas, as pessoas perdem a capacidade para realizar movimentos ou gestos precisos. No segundo caso verifi- cam-se movimentos descontrolados e excessivos. A ataxia pode afectar não só os membros como também os olhos e a fala e caracteriza-se pela falta de coordena- ção dos movimentos, devido a distúrbios de zonas do sistema nervoso que con- trolam o movimento e o equilíbrio. A distonia manifesta-se por dificuldades na realização dos movimentos, uma vez que se caracteriza pela ocorrência de con- tracções musculares involuntárias durante a realização de uma acção.

Figura 2.5 Postura hemi-

plégica – Desenho adapta- do de Morgans e Gething (2003, p. 478).

43 Acidente Vascular Cerebral Os problemas motores podem estar associados a perturbações na percepção. A vítima de AVC pode ter distúrbios na noção da posição dos músculos e sua arti- culação no espaço (sensação prioceptiva), assim como pode sofrer alterações na sua imagem corporal, referente à consciência das diferentes partes do corpo e a sua relação com o espaço. Assim, a pessoa pode apresentar dificuldades em dis- tinguir o lado esquerdo do direito, bem como perder capacidades de avaliação de profundidade e orientação no espaço. Outro distúrbio possível é a dismetria, que se caracteriza por movimentos não adequados ao objecto e à sua posição. A per- cepção das vítimas de AVC pode também estar afectada por simultagnosia (ou

síndrome de Balint) – neste caso as pessoas apresentam incapacidade para perce-

ber visualmente mais de um ou dois estímulos em simultâneo, i.e. numa compo- sição visual as pessoas poderão ser capazes de perceber itens isolados mas não o todo, sendo incapazes de interligar os significados.

Sensibilidade excessiva (hiperestesia) ou perdas sensoriais podem verificar- se na audição, no olfacto, no paladar e no tacto. Neste último caso as pessoas podem perder a capacidade de sentir alterações de temperatura. A visão pode sofrer algumas sequelas como a hemianópsia, que se manifesta pela perda total ou parcial de metade do campo visual ou um quadrante – neste quadro, os cam- pos bitemporais podem ser completamente cegos ao mesmo tempo que a acui- dade visual é perfeita –; a diplopia, também chamada “dupla visão” pelo facto da percepção visual do cérebro ser feita em separado para cada um dos olhos, o que leva a que se vejam as imagens em duplicado; e o nistagmo – existência repetida de oscilações involuntárias dos olhos, que podem alternar entre movi- mentos rápidos e lentos, e geralmente dificultam o foco das imagens percebi- das. As direcções das oscilações podem ser verticais, horizontais, rotativas ou multidireccionais.

Outras funções são também afectadas com alguma frequência, verificando-se problemas de comunicação, incontinência ou dificuldades em deglutir (disfagia), causadas, neste último caso, pelo enfraquecimento dos músculos faciais, da man- díbula e da língua. No caso dos distúrbios de comunicação é frequente as vítimas de AVC apresentarem quadros de afasia, mostrando dificuldades com a lingua- gem quer a nível oral como escrito, devido à dificuldade ou impossibilidade em compreender códigos linguísticos. A afasia surge devido a oclusões ocorridas na artéria cerebral média (ver Quadro 2.2), sobretudo se o acidente se der no hemis- fério esquerdo. A afasia não está relacionada com perturbações mentais, mas é um sinal de existência de lesões cerebrais. Em casos extremos, as pessoas podem mesmo apresentar mutismo. Além destes fenómenos, outros distúrbios podem ocorrer na comunicação, como a aprosodia, que se caracteriza pela incapacidade de apresentar as normais variações de tom e tensão no discurso oral, ou a disar-

tria, que se manifesta pelas dificuldades em articular palavras devido a perturba-

44 Acidente Vascular Cerebral

se também distúrbios relacionados com a incapacidade para escrever. Neste caso o distúrbio é chamado de agrafia. Se a pessoa apresentar dificuldades em reali- zar operações matemáticas simples estamos perante um caso de acalculia.

Podem também observar-se distúrbios de ordem emocional, de personalida- de e de comportamento. A vítima de AVC pode apresentar alterações de humor e “emocionalismo”, caracterizado pelo choro ou riso em alturas inadequadas. Outra manifestação frequente é a ansiedade. Uma das sequelas mais frequente- mente abordadas e descritas na literatura sobre distúrbios emocionais em víti- mas de AVC é a depressão pós-AVC. Estima-se que entre 30% a 50% das vítimas de AVC sofram de depressão (Binder, 1984; Bodini, Iacobini, & Lenzi, 2004; Jenkins, Andrewes, Khale, Coetzee, & Khan, 2009).

Por oposição, problemas cognitivos podem originar outros distúrbios como a anosognosia, Neste caso as pessoas apresentam desconhecimento do AVC e das sequelas por ele causadas. Segundo Bogousslavsky (2002) o estado de ano- sognosia compreende diferentes condições: a pessoa estar convencida de que não está doente, que não tem uma incapacidade motora, que não apresenta uma condição médica potencialmente grave ou que não tem um problema cerebral. Assim, as vítimas de AVC podem viver entre uma realidade atribuída (por ter- ceiros) e uma realidade percebida (pelo próprio). Outra forma de desconheci- mento pode dar-se pela incapacidade em reconhecer objectos familiares – nes- te caso estamos perante um cenário de agnosia. Problemas de memória podem também verificar-se, assim como a incapacidade para a tomada de decisões, cha- mada abulia.