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Teoria das capacidades e transdisciplinaridade

“... in as much as the influence of the conventional economic

Necessidade Ser (qualidades) Ter (coisas) Fazer (acções) Interagir (ambientes) Subsistência dependência rendimentobaixo depender isolamento Protecção dependência apoio social inadequado depender isolamento Afecto desamparo falta de atenção do próximo não socializar social e familiarisolamento Entendimento desprovimento de informação,

desinteresse distanciamento ignorar

falta de liga- ções entre a comunidade Participação desinteresse falta de cum-primento de

direitos

sem hipótese

de cooperar isolamento Ócio pouca espon-taneidade e

tranquilidade carência de estímu- los criativos e cognitivos depender ausência de condições moti- vadoras/poten- ciadoras Criação resignação dependência parca isolamento Identidade auto-estimafalta de preconceitos de desenvolvi-sem hipótese

mento pessoal isolamento Liberdade dependência conhecimentoprivação, des- depender dependência

Quadro 6.3 Matriz de

Max-Neef (1991) preen- chida com os elementos

163 101 Vítimas de AVC discourse increases the belief in the efficiency of the market; ethical, political and value judgements are plainly excluded or left along the road. (...) As a matter of fact, the so called pover- ty eradication policies, so abundant all over the world, are, in general, not policies, but rather mere mechanisms to stimula- te economic activity, under the assumption that that sole acti- vation will point to the solution of the problem.”20

(Max-Neef, 2005, pp. 8-9)

Como vimos na secção anterior, os produtos de apoio podem servir como ele- mentos de satisfação de diferentes tipos de necessidades, não se confinando às necessidades básicas de sobrevivência ou a objectivos somente de ordem fun- cional. Ilustrámos brevemente a crítica de Max-Neef (1991) à teoria de cariz hie- rárquico e cumulativo de Maslow (1954) e acrescentamos agora a visão de Sen (2010) que, detectando lacunas na tradicional forma de medir as condições de vida das populações, desenvolveu, em conjunto com Martha Nussbaum, a famosa Teoria das Capacidades. Para Sen (2010) o simples de facto de as pessoas terem acesso a bens não significa por isso que a sua qualidade de vida seja beneficia- da. O autor defende que o verdadeiro sinal de bem-estar está na capacidade de que as pessoas têm, ou que lhes é permitida, para decidir em liberdade e procu- rar uma melhor qualidade de vida para si e/ou para os seus. Assim, para que seja permitida esta capacidade, é necessário que se permitam às pessoas condições para a criação de oportunidades. Estas condições podem não só ter que ver com

Necessidade Ser (qualidades) Ter (coisas) Fazer (acções) Interagir (ambientes) Subsistência tomar iniciativa criação, produ-capacidade de

tos de apoio aprender

consciência de potencialidades

da envolvente Protecção auto-consciên-cia

sistema de segurança fami-

liar, produtos de apoio

planear integração Afecto solidariedade amizades, familiares elogiar espaços de convívio Entendimento auto-consciên-cia

educadores (fisioterapeu- tas), produtos de apoio analisar, aprender comunidades Participação receptividade Direitos e deve-res, produtos

de apoio cooperar comunidades Ócio imaginação resignação, pro-dutos de apoio lembrar, relaxar convívio Criação imaginação habilidades construir espaços de trabalho Identidade sentimento de pertença integradosvalores auto-consci-ência familiaresespaços Liberdade autonomia iniciativa desenvolver adequadosespaços

Quadro 6.4 Matriz de

Max-Neef (1991) preen- chida com os elementos positivos encontrados.

20 Tradução livre: “… na

mesma medida em que a influência do discurso económico convencional aumenta a crença na efi- ciência do mercado, jul- gamentos éticos, políticos e de valor são sumaria- mente excluídos ou aban- donados pelo caminho. (…) De facto, as chama- das “políticas de erradica- ção da pobreza”, tão abun- dantes por todo o mundo, não são, em geral, políti- cas, mas sim meros meca- nismos para estimular a actividade económica com base no pressuposto de que esta mera activa- ção apontará a solução do problema.”

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um rendimento mensal condigno, mas também com o acesso à educação ou à garantia de defesa e promoção dos valores humanos. Estas e outras unidades de medida podem ser vistas em aplicação no Relatório do Desenvolvimento Humano (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2011). A dificuldade des- te tipo de análise está não só em encontrar unidades de medida para cada factor, como em unidades que permitam ser cruzadas entre si e na adaptação da avalia- ção a diferentes cenários. Ainda que com estas dificuldades, estas medidas têm vindo a provar a sua utilidade e melhor adequação à realidade que a tradicional medida do Produto Interno Bruto (PIB).

Trazemos este assunto à discussão porque a Teoria das Capacidades parece fazer sentido à luz das nossas descobertas junto de vítimas de AVC e adequa-se aos cenários que encontrámos relativamente aos produtos de apoio. Esta teoria permite que acrescentemos os conceitos de “capacidades” e de “oportunidades” ao de “necessidades”, o que nos parece ser relevante para a questão dos produ- tos de apoio. Ao considerar a criação de um produto de apoio, os designers pode- rão beneficiar destes conceitos que permitem ir além do carácter funcional pri- meiro do produto. Isto é, em vez de se limitarem a pensar em necessidades e a procurar que os produtos de apoio permitam a pessoas com deficiências e inca- pacidades atingir o mesmo nível funcional que as restantes pessoas, ou seja, um nível neutro, os designers poderão considerar a possibilidade de que os produ- tos de apoio sirvam outros objectivos a partir do desenvolvimento de capacida- des nos seus utilizadores pela criação de novas oportunidades. Uma das formas de ilustrar este conceito poderá ser através de dois exemplos de trabalhos desen- volvidos com pessoas idosas. Num dos casos os investigadores descobriram que pessoas idosas não querem, necessariamente, que as embalagens de sistemas de aparelhagens sejam fáceis de abrir, que as instruções sejam fáceis de seguir e que o sistema seja fácil de montar (Burrows, Mitchell, & Colette, 2011). Neste caso os investigadores aperceberam-se de que um produto deste tipo é compra- do raramente e que a necessidade de chamar amigos e/ou parentes para desem- brulhar e montar o sistema se torna num momento de convívio de que as pesso- as não pretendem abdicar. No segundo caso, numa investigação sobre um novo abre frascos desenhado para ser fácil de usar por parte de pessoas idosas, os investigadores chegaram a uma conclusão semelhante que os do primeiro exem- plo: as pessoas idosas afirmaram que com o novo dispositivo conseguiam abrir os frascos autonomamente, mas que não o comprariam porque a dificuldade em abrir frascos servia como desculpa para conviverem com amigos, parentes ou até com o carteiro a quem pediam que fossem lá a casa para abrir os frascos (Yoxall, Langley, Musselwhite, Rodriguez-Falcon, & Rowson, 2010). Em ambos os casos a necessidade não é de cariz funcional (que fica relegada para segundo plano), mas sim de cariz social: as pessoas sentiam a necessidade de aliviar a sua solidão e de se envolverem em actividades sociais.

165 101 Vítimas de AVC Este objectivo de criação de oportunidades e desenvolvimento de capacida- des, como podemos inferir pelos resultados da nossa investigação mostrados até ao momento, não será fácil porque implica um entendimento profundo da reali- dade holística em que se inserem os potenciais utilizadores. Voltamos então ao conceito de product ecologies (Forlizzi, 2007) e à sua íntima relação com o con- ceito de transdisciplinaridade.

A transdisciplinaridade implica a aceitação de que duas visões da realidade aparentemente antagónicas poderão fazer sentido e existir em conjunto a par- tir de uma visão mais distanciada. Implica a aceitação de que diferentes áreas de conhecimento consideram diferentes variáveis na avaliação de um determinado fenómeno e que estas avaliações não só se podem complementar como até encon- trar um maior sentido comum integrado numa visão holística de todas as variá- veis. Ao contrário da pluridisciplinaridade, que consiste no estudo de um mesmo tópico por várias disciplinas em separado; da multidisciplinaridade, que acres- centa conhecimentos às disciplinas pelo trabalho conjunto com outras, mas que se mantém no domínio disciplinar; e da interdisciplinaridade que se ocupa da transferência de conhecimentos e metodologias entre disciplinas; a transdiscipli- naridade procura um entendimento holístico que vá para além do confinamento do conhecimento compartimentado em disciplinas (Max-Neef, 2005; Nicolescu, 2002). É assim um conceito que se alimenta das disciplinas, mas que termina por ir além delas com vista a um entendimento mais alargado (Nicolescu, 2002).

Além da conciliação de diferentes visões no mesmo espaço e tempo, a trans- disciplinaridade permite e promove também a conciliação de visões e avaliações em diferentes lugares e tempos. Isto é, defende que, para compreender um fenó- meno presente, é necessário compreender o seu passado e evolução e prever desenvolvimentos no futuro (Medicus, 2005). Esta abordagem, cremos, é funda- mental se pretendermos encetar linhas de acção para um desenvolvimento sus- tentável. O modelo apresentado por Medicus (2005) para fazer este tipo de ava- liação no campo das ciências humanas baseia-se na apreciação de quatro tipos de factores do fenómeno a ser avaliado (causa, ontogénese, adaptação e filoge-

nia) com relação a seis níveis de referência (da molécula, da célula, do órgão, ao

nível individual, de grupo e da sociedade). No caso das vítimas de AVC que anali- sámos e da sua relação com os produtos de apoio, não se adequam os primeiros três níveis de referências dados por Medicus (2005), mas adequam-se os restan- tes três: individual, grupo e sociedade.

Um outro método apontado para a realização de investigação transdiscipli- nar é o de Max-Neef (2005), que agrupa as diferentes disciplinas de acordo com quatro níveis numa hierarquia: empírico (nível de base) (ex: matemática, física, química), pragmático (ex: arquitectura, engenharia, agricultura), normativo (ex: planeamento, design, política) e de valores (nível superior) (valores, ética e filo-

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sofia). Numa investigação transdisciplinar deve ter-se em vista a investigação e aplicação de descobertas ao nível superior, que se preocupa com a criação de sis- temas que acautelem as condições para gerações vindouras e que se alimenta do conhecimento e entendimento gerado em todos os níveis anteriores.

Através da nossa breve explicação já abordámos dois dos princípios da trans- disciplinaridade: níveis de realidade e princípio do “meio incluído”. Através do último parágrafo podemos perceber o terceiro princípio: complexidade.

Um entendimento holístico e a proposta de soluções sustentáveis para um determinado problema feita sob esta abordagem transdisciplinar (aquilo a que Max-Neef (2005) chama transdisciplinaridade forte) implicam enorme esforço, trabalho e tempo. O método que Max-Neef (2005) propõe com a relação entre disciplinas (Figura 6.6) pode, segundo o autor, orientar os investigadores para um “modo prático de resolver problemas de modo mais sistémico” (p. 15) e é por ele chamado de transdisciplinaridade fraca.

Pohl e Hirsch Hadorn (2007) definem em que circunstâncias é necessária a investigação transdisciplinar:

“…when knowledge about a societally relevant problem field is uncertain (...), when the concrete nature of problems is dis- puted, and when there is a great deal at stake for those con- cerned by the problems and involved in dealing with them. Transdisciplinary research deals with problem fields (...) in such a way that it can: a) grasp the complexity (...) of proble- ms, b) take into account the diversity (...) of life-world (...) and scientific perceptions of problems, c) link abstract and case- specific knowledge, and d) develop knowledge and practices that promote what is perceived to be the common good...”21

(Pohl & Hirsch Hadorn, 2007, p. 9)

Dadas as limitações de recursos, não almejamos na nossa investigação à práti- ca de transdisciplinaridade forte, mas sim à transdisciplinaridade fraca, segundo os termos de Max-Neef (2005). Adiante procuraremos compreender os fenóme-

Figura 6.6 Modelo trans-

disciplinar adaptado de Max-Neef (2005, p. 9).

21 Tradução livre: “... quan-

do o conhecimento acer- ca de um problema social- mente relevante é incerto, quando a natureza con- creta dos problemas é dis- putada e quando muito está em causa para aque- les que se preocupam com os problemas e que estão envolvidos em lidar com eles. A investigação trans- disciplinar lida com áreas de problemas de modo a: a) compreender a comple- xidade dos problemas, b) ter em conta a diversidade de problemas científicos e do mundo da vida, c) ligar conhecimentos abstrac- tos e específicos de casos e d) desenvolver conhe- cimentos e práticas que promovam o que é enten- dido como sendo o bem comum.”

167 101 Vítimas de AVC nos que envolvem os produtos de apoio e a problemática da rejeição e abandono sob diferentes perspectivas e disciplinas, com vista a chegar a um maior entendi- mento destes mesmos fenómenos que possa permitir gerar propostas para solu- ções sustentáveis aos problemas.

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Capítulo 7

Avaliação de Ajudas da Vida Diária