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Desconsideração da personalidade jurídica

CAPÍTULO III: INSTITUTOS DE DIREITO PRIVADO E OS GRUPOS

3.4 Desconsideração da personalidade jurídica

A distinção entre a pessoa jurídica e os sócios que a compõem, como já muito se falou, é milenar, podendo ser vista a sua origem ainda no Direito Romano, que já traçava ideias básicas sobre “corporações” e “fundações”, mesmo que não tenha havido uma construção doutrinaria, cientificamente organizada, sobre os entes morais.

De forma geral, os romanos já partilhavam da ideia essencial de que o ente moral possui unidade e independência relativamente aos seus elementos compositores. Tal assertiva pode ser extraída dos ensinamentos de Ulpiano, que ressaltou a oposição entre pessoa física e pessoa jurídica: “Si quid universitati debent, singulis non debetur, nec quod debet universitas, singuli debent (Digesto III, 4, 7, 1)”50.

Todavia, aparentemente, essas lições, tão antigas, vêm sendo esquecidas pelas Fazendas Públicas e por parte dos Tribunais e Juízos, que não as estão confirmando atualmente, quando o interesse é arrecadação tributária, desconsiderando a personalidade autônoma das pessoas jurídicas sem que se aperceba a cautela que tal medida requer.

A suspensão dos direitos de personalidade da pessoa jurídica é feita para que seja possível atingir o patrimônio dos sócios que a compõem. Essa medida, que deveria ter caráter excepcionalíssimo, sendo tomada apenas depois de um processo investigativo qualificado, chama atenção hodiernamente pela banalidade com a qual a é usada no Brasil.

Tal tese, mesmo havendo surgido na legislação alienígena, já despontava no sistema jurídico nacional, primeiro por construções doutrinarias,

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“Se se deve algo à ‘universitas’, não se deve a cada um de seus membros, nem o que a ‘universitas’ deve, seus membros devem”, em tradução de Cretella Jr. (Cretella Júnior. Curso de

Direito Romano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Florense, 1970, p. 75 apud BECHO, Renato Lopes. Responsabilidade tributária de terceiros: CTN, arts. 134 e 135. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 104).

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depois jurisprudencialmente. Sua introdução na legislação nacional se deu antes do Código Civil de 2002, em alguns dispositivos, quais sejam: o art. 28, caput e §5º, da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor51, e a Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, conhecida por Lei Antitruste52. A desconsideração da pessoa jurídica – embora não se utilize na lei tal expressão – teve sua positivação com caráter generalista, finalmente, tratada no atual Código Civil, no seguinte dispositivo:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Esse dispositivo não tem semelhante nem nas principais codificações estrangeiras nem no Código Civil de 1916. Ao contrário, destoa inteiramente do já citado art. 20 do diploma civilista anterior.

Conforme visto no item 3.2 deste Capítulo, ainda que não esteja previsto na codificação civil atual, por certo, isso não significou que, as pessoas jurídicas deixaram de ter autonomia em relação às pessoas que as compõem ou as instituíram. Nesse sentido, ensina Renato Lopes Becho53:

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"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(...)

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

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Essa lei foi derrogada pela Lei n.º 12.529/11, todavia, transcreve-se o artigo citado pelo seu significado para o estudo em curso: “Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Vale mencionar, por fim, que o art. 34 da lei citada nesta nota, possui redação semelhante à revogada, encontrando- se plenamente aplicável.

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BECHO, Renato Lopes. A responsabilização tributária de grupo econômico. In: Revista Dialética de Direito Tributário n.º 221, p. 137-138.

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Há que se recordar que quando o legislador excepcionou, no art. 50 do Código Civil, a despersonalização, ele – por imperativo lógico – está garantindo a referida personalização. Em outras palavras, só pode haver um incidente de despersonalização em um ordenamento jurídico em que a personalização seja regra.

Em verdade, pode-se dizer que o que se positivou foi a relativização dessa regra, através da adoção, pelo Código Civil, da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, expressão nacional da disregard doctrine ou disregard of the legal entity do direito anglo-americano54, pelo qual se busca impedir o uso indevido ou lesivo da pessoa jurídica através de sua manipulação, com intuito de prejudicar terceiros ou para locupletar-se sem causa aceitável, em que se desconsidera momentânea e especificamente sua autonomia patrimonial, de modo a atingir diretamente aqueles que a estão deturpando.

Depreende-se ainda pela leitura do artigo transcrito, que a desconsideração da personalidade jurídica só pode ser aplicada se houver abuso de personalidade, sendo este o seu requisito. O Código Civil se divorciou da ideia de que a desconsideração da pessoa jurídica pode ser realizada pela mera má gestão, tendo estabelecido como pressuposto o abuso no uso da pessoa jurídica, que pode se manifestar pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Embora não tenha expressamente utilizado a palavra fraude, o que seria de bom tom para se coadunar com a origem da disregard doctrine, a expressão “desvio de finalidade” abarca o conceito de fraude. Mais que isso, o Código Civil previu a confusão patrimonial, que engloba hipóteses em que o há excesso de poder se algum dos sócios, para que estes não tratem a pessoa jurídica como se fosse coisa própria sua.

Essa teoria traz implicações profundas quando se trata de responsabilização de grupos econômicos, mas nem sempre as premissas utilizadas pela Fazenda Pública para que se faça esse requerimento em juízo são adequadas. Aproveitando o ensejo, bom que se frise que a desconsideração é aplicável tão

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Essa doutrina encontra-se disseminada por todos os sistemas jurídicos mais modernos: no direito alemão com a Durchgriff bei juristischen Personen; no direito francês e o seu mise à l'écart de la

personnalité morale; no direito italiano com o superamento della personalità giuridica; ou na desestimación de la personalidad jurídica dos autores de língua espanhola.

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somente por ordem judicial, ou seja, não pode a autoridade fiscal realizá-la sem o aval de um juiz.

Ressalte-se, por fim, que existe uma diferença entre o término da pessoa jurídica, referida no tópico anterior, e a sua desconsideração, como avisa Fábio Konder Comparato55:

Importa, no entanto, distinguir entre despersonalização e desconsideração (relativa) da personalidade jurídica. Na primeira, a pessoa coletiva desaparece como sujeito autônomo, em razão da falta original ou superveniente das suas condições de existência, como, por exemplo, a invalidade do contrato social ou a dissolução da sociedade. Na segunda, subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes; mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão- só, para o caso concreto.

O efeito da desconsideração se aplica apenas ao caso concreto, não podendo se cogitar que, por exemplo, a decretação de tal medida em um processo específico, aproveite aos outros, ou que isso desmantele definitivamente a pessoa jurídica.