• Nenhum resultado encontrado

Pessoa jurídica: natureza e princípio da autonomia

CAPÍTULO III: INSTITUTOS DE DIREITO PRIVADO E OS GRUPOS

3.2 Pessoa jurídica: natureza e princípio da autonomia

A natureza jurídica dos entes morais também é tema de constante debate entre os doutrinadores. Várias são as correntes que tratam do tema, como a

43

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil – Vol. 1. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 252.

44

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil, teoria geral. Volume I: Introdução, as pessoas, os

57

da ficção, a da propriedade coletiva, a institucional e a da realidade. Para os objetivos aos quais se propõem esse estudo, elege-se a teoria da realidade como a corrente a ser seguida.

Seguida por ilustres doutrinadores como Clóvis Beviláqua e Lacerda de Almeida45, a doutrina da realidade se constrói do dualismo segundo o qual na pessoa jurídica distinguem-se a ideia que se manifesta e os órgãos que a exprimem, em alusão clara àquilo que ocorre com a pessoa natural, que manifesta a sua vontade através dos seus órgãos: se o homem possui animus que é exprimido através do seu corpo, da mesma forma em uma sociedade, associação ou fundação, existe um corpus (patrimônio) envolvido por uma ideia dominante (objetivo da empreitada).

O traço de união entre tantos filósofos desta corrente é a ideia de realidade do ente coletivo, que se expressa na exposição das bases fundamentais de sua conceituação científica, abandonando a chamada realidade objetiva (organicismo) e abraçando a teoria da realidade técnica ou realidade jurídica. Nessa linha, ensina Caio Mário Pereira da Silva46:

Diante desta situação, advém a conveniência de aceitar o jurista a personalidade real destes seres criados para atuar no campo do direito, e admitir que são dotados de personalidade e providos de capacidade e de existência independente, em inteira semelhança com a pessoa natural, como esta vivendo e procedendo, como esta sujeito ativo ou passivo das relações jurídicas. Não há necessidade de criar artifícios nem de buscar alhures a sede de sua capacidade de direito. Ao revés, a pessoa jurídica tem em si, como tal a sua própria personalidade, exprime a sua própria vontade, é titular de seus próprios direitos, e, portanto, é uma realidade no mundo jurídico. Mas é preciso notar que, ao admitirmos a sua realidade jurídica, e ao assinalarmos a semelhança com a pessoa natural, não recorremos a uma personalização antropomórfica, pois que, já o dissemos, repudiamos a teoria da realidade objetiva. Atentamos, entretanto, em que, encarando a natureza da pessoa jurídica como realidade técnica, aceitamo-la e à sua personalidade sem qualquer artifício. E nem se poderá objetar que esta personalidade e capacidade são fictícias em razão de provirem da lei, porque ainda neste passo é de salientar-se que a própria personalidade jurídica do ser humano é uma criação do direito e não da natureza, reconhecida

45

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil – Vol. 1. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 257/258.

46

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil – Vol. 1. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 259. Destaques do original.

58

quando a ordem legal a concede, e negada quando (escravos) o ordenamento jurídico a recusa.

Fica assim consignado que a pessoa jurídica é uma realidade e, bem como as pessoas físicas, merece atenção e proteção do direito na prática de atos jurídicos.

E não é diferente no direito positivo: o Código Civil, do art. 40 ao art. 52, dispõe de forma geral sobre os direitos da pessoa jurídica, deixando claro, no último artigo citado, que “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.

Restando demonstrado que o ordenamento legal concede personalidade às pessoas jurídicas, sua capacidade é inegável. Os membros da pessoa jurídica não são os titulares dos direitos e obrigações imputados à pessoa jurídica. Tais direitos e obrigações formam um patrimônio distinto do correspondente aos direitos e obrigações imputados a cada membro da pessoa jurídica, justamente pela capacidade que a pessoa jurídica tem de se autogerir.

Sendo assim, pode-se afirmar que uma importante consequência da capacidade jurídica dessas pessoas é sintetizada no princípio da autonomia: as pessoa jurídicas não se confundem com as pessoas que a integram. A pessoa jurídica é quem toma parte nos negócios jurídicos dos quais participe. Da mesma forma, é ela e não seus integrantes, a parte legítima para demandar e ser demandada em juízo, em razão de direitos e deveres dos quais é titular. Esse princípio implica, em regra, a impossibilidade de se cobrarem dos seus integrantes as dívidas e obrigações da pessoa jurídica.

É interessante consignar esse fato, tendo em vista que a criação de pessoas jurídicas tem como objetivo facilitar a vida de homens e mulheres que, de forma independente, não conseguiriam atingir propósitos tão vultosos quanto os que muitas sociedades realizam. Necessário, assim, que seja sempre feita a separação entre “criador” e “criatura”: quem se aventuraria em empreitadas muitas vezes arriscadas sabendo que seu patrimônio pode estar em jogo? Apenas em situações excepcionais é que existe autorização de imputação de obrigação da pessoa jurídica aos seus integrantes.

59

O princípio da autonomia encontrava-se expresso no art. 20 do Código Civil de 1916, que dispunha: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. No Código Civil de 2002, não há um dispositivo que tenha redação semelhante a esta, todavia, não se pode cogitar de que a novel legislação subjetiva tenha abandonado esse primado básico do Direito Civil, até porque, de forma sistemática, outras normas do mesmo diploma (v.g. art. 46, V, ou art. 1.052), prestam homenagem a essa autonomia entre pessoa jurídica e seus integrantes. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho47:

Diversos dispositivos do Código Civil reforçam a adoção, pelo direito civil brasileiro, do princípio da autonomia da pessoa jurídica. É exemplo, assim, de um princípio não expresso, revelado pela doutrina a partir de dispositivos legais do ordenamento jurídico, para informar a interpretação e aplicação das normas que o compõem.

Além disso, o princípio da autonomia da pessoa jurídica também guarda relação com a livre iniciativa e a livre concorrência. Ora, não se pode imaginar, em um sistema capitalista, que possam ser criadas pessoas jurídicas prontas para atuarem no mercado, se esses dois princípios do direito empresarial não forem respeitados. Por isso mesmo, a Constituição da República em seu art. 170, IV, afirma que:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IV - livre concorrência; (...) 47

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: parte geral. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 257/258.

60

Essas duas circunstâncias – livre iniciativa e livre concorrência – mantêm, portanto, uma relação íntima e de suma importância quando se trata da organização empresarial, conforme ensina Celso Ribeiro Bastos48:

A livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal da economia e tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre concorrência onde há livre iniciativa.

(...)

Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais.

Isso se dá porque a livre concorrência decorre da manifestação da liberdade de iniciativa de atuação no mercado econômico. Aquela é a garantia da livre iniciativa, de modo que se não houver livre concorrência, fatalmente não se terá também a liberdade de iniciativa, pois a inexistência de um mercado com concorrentes praticamente impede a liberdade de iniciativa.

Porém, com o acirramento da relações empresariais, a ferocidade das economias de mercado e o processo contínuo de globalização, além das pontuais intervenções estatais na regulamentação dos negócios, os próprios empresários começaram a buscar meios de tornarem suas empreitadas menos vulneráveis, fazendo com que surgissem figuras como fusões, incorporações e os grupos econômicos, objeto desse estudo.