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Diálogo problematizador entre os gestores e a vigilância sanitária

A CONTRIBUIÇÃO FREIREANA PARA O DIÁLOGO ENTRE OS GESTORES DE RESTAURANTES COMERCIAIS E A VIGILÂNCIA SANITÁRIA SOBRE A

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.2 Diálogo problematizador entre os gestores e a vigilância sanitária

No processo de alfabetização na perspectiva freireana é necessário aproximar-se da realidade do educando para levantar o universo vocabular. Essa mesma prática acredita-se ser necessária em quaisquer outras ações educativas que se intitulem subsidiadas pelos princípios do pensamento freireano. Precisa-se dialogar com os participantes a fim de conhecer e elencar seus problemas e angústias, por meio de uma reflexão crítica junto com os sujeitos acerca dos problemas levantados para posterior problematização.

Em recente pesquisa de mestrado, Almeida (2016) percebeu que a práxis, assumida como princípio para a alfabetização de jovens e adultos na perspectiva de Freire, quando empregada em ações educativas de gestores de restaurante contribui para que estes se reconheçam como

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ser social, histórico, pensante, comunicante, transformador, criador, realizador, capaz de se reconhecer como sujeito na gestão para obtenção de um alimento seguro.

Compreende-se, pois, que o início da ação educativa tem que buscar conhecer o universo do participante como uma estratégia que possibilita ao educador conhecer os conhecimentos prévios dos educandos, uma vez que depreende-se a partir da leitura de Ausubel (1963) que a aprendizagem somente será significativa quando o educando consegue relacionar significativamente a nova informação a ser aprendida com os conhecimentos prévios existentes na sua rede cognitiva.

Este processo de nada se assemelhou com o método educacional tradicional, no qual o educador à frente da sala realiza um monólogo, define os conteúdos a serem transmitidos e se intitula como detentor do saber absoluto. Freire (1987) escreve que nesta perspectiva de educação “o educador faz comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem” (FREIRE, 1987, p. 58).

Em consonância ao método, os gestores foram participantes e não apenas meros expectadores da ação educativa, envolvidos no desenvolvimento construíram conhecimentos, com estrutura teórica, para o uso em seu cotidiano.

Os “círculos de cultura” realizados seguiram os preceitos de Paulo Freire, nos quais educador e educandos são sujeitos de conhecimento e, mesmo com experiências e funções diferentes, foram coparticipantes na construção do conhecimento. Entende-se, pois, que o ato de educar não é feito apenas pelo educador, mas por todos os participantes da prática educativa. Essa maneira de desenvolver a prática educativa colaborou para que os participantes conseguissem expor os problemas enfrentados, dúvidas, soluções e experiências do seu cotidiano, práxis que parece ser essencial para o sucesso de uma ação educativa em segurança dos alimentos.

Durante o diálogo um participante desabafa: “Eu já fiz isso, estes cursos são todos iguais.” E complementa: “É fácil você vir no curso, ver, aprender, estudar é uma coisa muito boa, eu

gosto de estudar, eu tenho 3 formações, eu acho muito bacana mas quando você conduz uma equipe é diferente [...] ”

Percebe-se que as falas retratam frustações por participar de ações educativas anteriores que não foram significativas. O treinamento leva tempo e, a menos que a falta de treinamento leve a um custo com perdas de produção ou qualidade, os gerentes entendem que o treinamento é desnecessário (ROWELL et al., 2013).

Porém, vozes de esperanças e ímpeto de participação foram observadas, como:

“A expectativa é corrigir as práticas que estamos realizando por falta de conhecimento, melhorar a qualidade do restaurante.” e ainda, “Meu objetivo é conhecimento, aprender algumas coisas que realmente não sei mesmo para estar orientando no restaurante.”

Freire (1987) destaca que “ [...] ensinar, aprender e pesquisar lidam com dois momentos: o em que se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente” (p. 31), lembrando que devemos instigar a construção contínua do conhecimento, de um processo inconcluso.

Após conhecer o universo (temático ou vocabular), os participantes precisam aprofundar a discussão dos problemas trazidos por eles. Nesse processo é possível a construção de novos conhecimentos. Trata-se de um momento de síntese após a observação inicial. É a definição do que vai ser estudado sobre o problema, para assim se delimitar os aspectos que precisam ser conhecidos e melhor compreendidos em busca de uma resposta para esse problema. Ampliando o olhar com as contribuições de Berbel (1998) e Schaurich (2007), entende-se que esta etapa precisa ser de grande flexibilidade, pois propicia o diálogo entre educandos e educador, visando definir quais serão os pontos-chave relevantes para a compreensão de determinada problemática, pois são eles os orientadores da continuidade do processo metodológico.

O diálogo é iniciado com a seguinte questão: “Quais são os principais problemas enfrentados pelo responsável do gerenciamento das Boas Práticas na manipulação de alimentos em restaurante comercial?”.

Um dos participantes sintetiza as vozes do grupo ao dizer que: “Treinar, comprar,

organizar e limpar, por mais que você treine, por mais que você compre, que você oriente, se você não coloca alguém para fazer a limpeza de acordo com aquilo que você sabe que é preciso, que você sabe que será exigido, você vai levar na cabeça definitivamente”.

Esta atividade em grupo motivou os gestores e integrou mais os participantes até então desconhecidos, possibilitando o reconhecimento dos pares por meio dos problemas enfrentados, situações concretas com sugestões de estratégias adequadas para a mudança de hábitos insalubres, buscando maior sucesso na ação educativa (LOSASSO et al., 2012).

Ao término da discussão o grupo deveria elencar os três principais problemas, dentre todos os problemas discutidos anteriormente, descrevendo quais eram as suas consequências, as causas e, assim determinar o centro de cada um dos problemas eleitos, para então apresentar para os demais grupos.

No desenvolvimento da terceira fase do método se compreende o estudo propriamente dito acerca dos pontos-chave, no qual há a investigação, pesquisa, análise do problema, o que possibilita aos educandos e educador um aprofundamento nos conhecimentos teóricos acerca

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do problema estudado, com o objetivo de possibilitar uma comparação com as percepções iniciais, uma revisão dos pontos-chave (SCHAURICH, 2007).

Nesta fase o senso comum, passa a interagir com a perspectiva científica com formulação de hipóteses explicativas para os problemas identificados no passo anterior (BERBEL, 1998; SCHAURICH, 2007).

Os problemas dos restaurantes também podem ser denominados como barreiras organizacionais, tais como falta de recursos (financeiros, materiais e tempo), motivação dos funcionários, excesso de trabalho e falta de treinamentos, fatos que existem e dificultam a performance dos manipuladores que buscam a segurança dos alimentos dentro dos estabelecimentos (STROHBEHN et al., 2014).

Algumas destas barreiras foram verbalizadas referindo-se aos custos “As lixeiras, ontem

mesmo eu vim aqui (referenciando a região central do município) e comprei uma lixeira para o salão com rodinha no pé, uma alça e com a tampa de abrir e fechar com a mão mesmo [...] então isso também é uma coisa errada”, complementando [...] “é um dinheiro que você vai gastar a mais, porque estas lixeiras são mais caras, são [...] ela é bem mais cara mas tem todo o motivo para que seja utilizada.”

Outros problemas relatados foram em relação aos funcionários: “Hoje eu tenho

20 funcionários, conduzir uma equipe é diferente, você vai lá tem tábuas diferentes: verde, vermelha, amarela, branca, você tem 4 pias, hoje eu tenho toda a estrutura [...] toda estrutura adequada para seguir estas normas, só que você chega na cozinha eles não fazem [...] ”, e a

dificuldade de entendimento dos conceitos teóricos legislativos, como por exemplo: “Você pode

jogar água quente sobre os alimentos?”

É importante que a ação educativa tenha o seu conteúdo pautado nas barreiras organizacionais encontradas no cotidiano do trabalho de seus participantes, para assim, buscar atender suas reais necessidades de conhecimento (MEDEIROS et al., 2011).

Após a identificação dos problemas foi possível analisá-los em diferentes prismas, buscando fundamentar propostas para a sua resolução.

É o momento de definir e construir as hipóteses de solução, tendo como princípio o olhar- agir criativo e reflexivo dos indivíduos que propicia aos educandos e ao educador uma percepção do problema, de sua gênese, de seu entorno e repercussões individuais e coletivas, características necessárias para um outro pensar e agir e assim, se ter uma superação dos conhecimentos, ações e atitudes já existentes e construir novos saberes e ações para viabilizar mudanças sociais (SCHAURICH, 2007).

O contexto da ação educativa baseou-se nos itens do roteiro de inspeção da Portaria CVS 05/2013, os quais foram explicados de acordo com os conceitos acadêmicos da segurança dos alimentos e as respostas compiladas das condições higiênico sanitárias obtidas em autoavaliações, efetuada pelos participantes nos restaurantes que realizam a sua gestão e inspeções executadas pela equipe de fiscalização da Vigilância Sanitária local (SÃO PAULO, 2013).

Foram destacados os itens de maiores discordâncias entre a prática relatada na autoavaliação e as inspeções fiscais, como os itens: identificação proteção e controle; contaminação cruzada e instruções sobre higienização de hortifrútis.

Castro et al. (2008) ressaltam que “é preciso conhecer o cotidiano desses profissionais, seus valores culturais e adequar os conhecimentos científicos àqueles ambientes até então desconhecidos” (CASTRO et al., 2008, p. 171). Assim, temos que os conceitos teóricos e legislativos precisam extrapolar os muros das repartições para atingir as práticas desempenhadas na rotina do setor regulado, levando o conhecimento desejado para aqueles que esperamos que a realize.

Durante as explanações os gestores participaram com suas dúvidas e comentários, questionando suas práticas e as informações ministradas, enriquecendo a interação dos saberes popular e científico.

Esta última fase aproxima-se mais do cotidiano do participante, após a reflexão da realidade, dos problemas discutidos, teorizados e a apropriação das hipóteses resolutivas, há o retorno a realidade, com o objetivo de transformá-la/alterá-la, consciente que toda e qualquer mudança de percepção é positiva para solução dos problemas discutidos (SCHAURICH, 2007). Desta forma, pode-se destacar as seguintes falas apresentadas:

Eu tiro da geladeira e deixo até o ponto de cortar.

Estes dias me fizeram esta pergunta se a luva substitui a lavagem de mãos.

Freire (1967) defende que:

[...] a alfabetização e a conscientização jamais se separam. Princípio que, de nenhum modo, necessita limitar-se à alfabetização, pois tem vigência para todo e qualquer tipo de aprendizado [...].

[...] todo aprendizado deve encontrar-se intimamente associado à tomada de consciência da situação real vivida pelo educando (FREIRE, 1967, p. 5).

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Interagindo entre seus pares, questões antes vistas como particulares ressaltam entre as vozes as diferenças:

Eu conheço pessoas que compram e usam (produtos) até acabar, independente se estiver vencido.

Uso de produtos vencidos vai prejudicar só ele (referenciando o gestor).

No diálogo descrito, verificamos vozes de gestores informando condutas diferentes das práticas no restaurante. Enquanto um gestor não acredita ser maléfico o uso de produtos vencidos outro gestor o repreende pois tem o conhecimento dos problemas que seu uso pode acarretar.

Estudos revelam que gestores de serviços de alimentação desconhecem a legislação vigente, assim como falta a estes o comprometimento para a implantação de sistemas de garantia para a obtenção do alimento seguro. Fato é que, muitos gestores não identificam a segurança dos alimentos como uma prioridade em seus negócios acreditando que o custo supera o benefício e sua ação não compromete a produção do alimento seguro, fato que dificulta o cumprimento da legislação sanitária (KARAMAN et al., 2012; SACCOL et al., 2015; YAPP; FAIRMAN, 2006).

Os gestores foram orientados sobre a dinâmica: Plano de Ação, considerando as necessidades de adequações nos estabelecimentos do grupo participante, na qual tiveram que descrever o problema verificado, qual ação poderia ser empregada, determinar início, término e responsável pela resolução do problema.

O desenvolvimento da ação educativa inspirada no método reflexivo de Paulo Freire estimulou a discussão de temas do cotidiano dos gestores no contexto da Vigilância Sanitária trazendo em suas vozes anseios e alegrias na gestão das boas práticas em seu restaurante.

A ação educativa teve como propósito interagir saberes teóricos e legislativos com os saberes práticos utilizados no cotidiano dos participantes, gestores de restaurantes comerciais, levando significado aos temas abordados de forma crítica e reflexiva.

Freire (1967) colabora:

Experimentámos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos, de que só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas. Daí, jamais admitimos que a democratização da cultura fosse a sua vulgarização, ou por outro lado, a doação ao povo, do que formulássemos nós mesmos, em nossa biblioteca e que ele entregassemos como prescrições a serem seguidas (FREIRE, 1967, p. 110).

Seguindo o método freireano, o estudo trouxe processos democráticos no desenvolvimento da aprendizagem, com a participação do gestor em um espaço de sensibilização, que até então, era privilegiado aos manipuladores de alimentos, permitindo o diálogo e a interação do saber popular e científico sobre a gestão das práticas seguras na manipulação de alimentos.

Assim, a realização desta ação educativa participativa enfatizou uma educação em saúde crítica e reflexiva.

As ações educativas devem explorar a escuta do educando, pois só assim poderá alcançar as suas necessidades e angústias, levando significado aos conceitos apresentados.

Fundamental é fazer o trabalho de formiguinha, é você todo dia falar [...] no curso você escuta, escuta e assimila, a partir do momento que você assimila, você tem que exteriorizar. Se você exteriorizar uma vez por semana, esquece não vai funcionar [...]. se você exteriorizar todos os dias, se eu todo dia eu for lá e conversar com os meus funcionários, não só ler a bíblia e perguntar se eles estão com problemas. Mas chegar e falar: pessoal não vamos esquecer de seguir os Procedimentos Operacionais Padronizados, assim assim assim, tal tal tal [...]. indo lá, vamos lá fazer, tem que fazer isso e aquilo lá, se todo dia eu chegar, indo lá e pontuar, uma hora a pessoa vai começar a fazer tanto pela orientação, tanto para ela parar de ouvir eu ficar falando” (relata o gestor).

Teles (2006) afirma “Temos que entender que mudar hábitos é construir conjuntamente signos e compartilhar códigos construídos em parcerias [...] As práticas de higiene devem ser construídas no dia-a-dia desses homens e mulheres e devem fazer parte de sua história” (TELES, 2006, p. 248).

O serviço de Vigilância Sanitária necessita construir relações de parceria e confiança com a população, entendendo que esta é a sua principal aliada, para efetivação da sua responsabilidade de proteger e promover a saúde e as ações voltadas para a informação, educação e conscientização sanitária na sociedade (COSTA, 2008).

Outro ponto que merece destaque é a concepção das ações educativas, muitas vezes baseada no modelo de comunicação dominante na saúde, com foco na indução comportamental e em uma abordagem meramente preventivista (MARINS; ARAUJO, 2016).

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Em relação a isso, encontramos em Freire (1987) que:

Simplesmente, não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral, imersos num contexto colonial, quase umbilicalmente ligados ao mundo da natureza, de que se sentem mais partes que transformadores, para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes “conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos (FREIRE, 1987, p. 54).

Ao final, as mudanças baseadas nos saberes compartilhados dos gestores com sua equipe reforçam o seu protagonismo na obtenção do alimento seguro ao motivar o desenvolvimento de práticas seguras, agregam valores à sua equipe, minimizando riscos das doenças transmitidas por alimentos.

Além disso, a participação na ação educativa incentivou o gestor a (re)pensar no seu cotidiano com um olhar ampliado e consciente da sua responsabilidade na saúde da população. Estes relatos demonstram que as ações educativas devem promover a disseminação das informações e as vozes aqui escutadas são claras, acadêmicos e serviços de saúde necessitam (re)significar-se para assim propor a efetiva mudança.