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REDUÇÃO DE DANOS (RD): CONCEPÇÕES, PRÁTICAS E CONTRADIÇÕES EM UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL –

ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS – CAPS-AD

Rafael Ferreira de Souza

Psicólogo e Administrador CAPS-AD – Prefeitura Municipal de Santos Santos – SP

Fernando Sfair Kinker

Universidade Federal de São Paulo Departamento Saúde, Clínica e Instituições Santos – SP

RESUMO Inicialmente voltada para a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST) em usuários de drogas injetáveis (UDI), a Redução de Danos (RD) amplia suas ações buscando minimizar as consequências prejudiciais do uso de substâncias psicoativas e se torna diretriz do cuidado em saúde mental. Considerando a importância desse tema para a prática do cuidado, o presente capítulo apresenta parte dos resultados da pesquisa-intervenção realizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS-AD) de Santos-SP, que teve como objetivo investigar como os profissionais da equipe multiprofissional compreendem a RD e quais ações desenvolvem nessa perspectiva. Para a pesquisa, foram realizadas duas oficinas com onze profissionais de cinco profissões/funções diferentes, atuantes há mais de um ano no CAPS-AD pesquisado, e produzida a narrativa de experiência do pesquisador como Acompanhante Terapêutico (AT) no serviço. Os dados produzidos foram analisados por meio da análise de conteúdo do tipo temática. Os resultados apresentados neste capítulo abrangem as concepções de RD como paradigma contra-hegemônico na abordagem ao consumo de substâncias psicoativas e como prática de cuidado em saúde realizada por meio de ações voltadas para a autonomia e autocuidado dos usuários. Ainda, diante das diversas forças envolvidas na questão do consumo de substâncias psicoativas que atravessam e influenciam o projeto clínico-institucional, inclui também as ações pautadas no paradigma da abstinência, como os encaminhamentos às Comunidades Terapêuticas. Conclui que se faz necessário o aprofundamento da reflexão da perspectiva de RD adotada pela equipe do CAPS-AD, de modo a problematizar as contradições e enriquecer as práticas de cuidado.

Palavras-chave: Redução de Danos; Abuso de Drogas; Equipe Interdisciplinar de Saúde; Serviço de Saúde Mental.

REDUÇÃO DE DANOS (RD): concepções, práticas e contradições em um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas – CAPS-AD

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1 INTRODUÇÃO

O presente capítulo visa apresentar um recorte da dissertação intitulada “Redução de Danos (RD): suas implicações e contradições no Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras drogas (CAPS-AD) de Santos” defendida em 2018), de modo a apresentar parte dos resultados produzidos no que se refere às concepções e práticas de redução de danos da equipe multiprofissional do CAPS-AD pesquisado, assim como as ações baseadas no paradigma da abstinência, categorizadas como contradições à RD.

Os resultados apresentados pretendem contribuir com a discussão sobre o consumo de substâncias psicoativas a partir de um novo paradigma, o da redução de danos (RD). Considerando que a partir do fenômeno do crack essa temática vem ganhando espaço na mídia e no debate público sob um discurso hegemônico que aborda o consumo de crack como uma “epidemia”, produzindo respostas urgentes e autoritárias como as internações involuntárias de usuários das chamadas cracolândias, impedindo um debate democrático sobre a questão, reproduz-se, na atualidade, a violência disfarçada de cuidado das ações higienistas do século XIX (GOMES; CAPPONI, 2011).

É sob o paradigma da abstinência, baseado no conceito de dependência química como dependência às substâncias, desconsiderando outros fatores envolvidos como a subjetividade, o meio social, cultural, econômico e político em que o sujeito está inserido, que emerge o ideal de internação como modelo de tratamento e o ideal de abstinência como objetivo terapêutico (DELGADO, 2016).

Como alternativa a esse modelo, a RD propõe outro paradigma para abordar a questão das drogas, questionando tanto a lógica da segregação como tratamento, quanto o ideal de abstinência como válido para todas as pessoas. Iniciada na base da oferta e troca de insumos para usuários de drogas injetáveis (UDI), a RD se consolidou com a oferta de um cuidado inclusivo, possibilitado pelo vínculo construído entre profissionais de saúde e usuários de substâncias psicoativas. Reconhecendo a autonomia e responsabilidade dos sujeitos, a RD possibilitou a ampliação do acesso ao sistema de saúde, passando a incluir as pessoas que não almejam a abstinência, e a inserção em diferentes dispositivos da comunidade por meio da flexibilização das exigências e da criação de novas estratégias de cuidado (SIMÕES et al., 2016). A RD abarca um conjunto de práticas e saberes que não se reduz a medidas pragmáticas, assim como não possui uma definição única. Com a sua incorporação na política pública de saúde, observam-se contribuições de diferentes campos do saber e diferentes práticas que ampliam a discussão a respeito do consumo de drogas e do próprio conceito de redução de danos, podendo-se considerar que coexistem múltiplas RD (SIMÕES et al., 2016).

Constituída como uma prática interdisciplinar, a RD ainda sofre resistência por parte dos profissionais da saúde, muito em razão da hegemonia do paradigma da abstinência e do modelo proibicionista propagado pelos Estados Unidos que enfatiza a proibição e os riscos advindos das drogas, em uma abordagem que tem se mostrado ineficaz diante do aumento mundial do consumo de drogas (SOUZA, 2013).

No Brasil, as primeiras ações de redução de danos ocorreram em Santos como política pública municipal no ano de 1989, por meio da troca de seringas para usuários de drogas injetáveis. No mesmo ano, também foi iniciada na cidade a primeira experiência de fechamento de um manicômio e de criação de uma rede comunitária de saúde mental (KINOSHITA, 1997).

Em um momento atual muito diferente, de desinvestimento na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município, ainda se mantém um único serviço voltado às pessoas com necessidades decorrentes do uso abusivo e/ou dependência de substâncias psicoativas criado àquela época com a denominação de Núcleo de Atenção ao Toxicodependente (NAT), e atualmente, transformado em um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPS-AD), na modalidade II (com funcionamento de segunda a sexta-feira das 08h às 18h). Com os retrocessos ocorridos nas políticas públicas federais, com a inclusão dos hospitais psiquiátricos na RAPS e com a incorporação do modelo da abstinência e o aumento do investimento nas Comunidades Terapêuticas, ganha importância e urgência a discussão de políticas de cuidado mais inclusivas no campo das drogas, como a proposta pela redução de danos e pela atenção psicossocial.

Diante desse cenário de disputa de modelos de cuidado, a equipe do CAPS-AD de Santos dobra sua aposta na redução de danos como lógica de cuidado inclusivo, participativo e transformador. Nesse sentido, a pesquisa-intervenção que embasa a produção deste artigo teve como objetivo compreender a perspectiva da Redução de Danos (RD) nas ações desenvolvidas pela equipe multiprofissional do Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPS-AD) de Santos-SP.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

O desafio de produzir conhecimento inovador e transformador das práticas provocado pelo Mestrado na modalidade Profissional, desenvolvido no eixo Educação Permanente em Saúde, lançou o autor-pesquisador no desconhecido processo de pesquisar a equipe multiprofissional do CAPS-AD em que atua, e consequentemente, também sua própria prática. Desse modo, não se pretendeu alcançar um objetivo previamente estabelecido, mas como na cartografia, inverter o sentido de método (metá-hódos), para hódos-metá, caminhar que no caminho traça suas

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metas. Nesse sentido, saber e fazer não se distinguem, constituindo uma pesquisa-intervenção, em que o conhecimento é entendido como transformação da realidade. Não se trata, portanto, de uma representação de um objeto, mas de um conhecer que transforma a realidade, criando uma realidade de si e do mundo (PASSOS; BARROS, 2009).

A pesquisa foi se constituindo no seu próprio processo, que acontece no plano da experiência, agenciador de sujeito e objeto, teoria e prática, e que acompanha seus efeitos no objeto, no pesquisador e no próprio processo de pesquisa. Esse saber requer o fazer: “Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o ‘caminho’ metodológico” (PASSOS; BARROS, 2009, p. 18).

Para isso, foram utilizados dois procedimentos: as oficinas e a narrativa do pesquisador. Foram realizadas duas oficinas com os profissionais com mais de um ano de atuação no CAPS- AD que aceitaram participar da pesquisa, em um total de onze participantes: duas assistentes sociais, duas psicólogas, duas terapeutas ocupacionais (uma exercendo a função de chefia do serviço), uma enfermeira e quatro acompanhantes terapêuticos. Não se disponibilizaram a participar das oficinas, portanto não estiveram representadas, as categorias profissionais: médico psiquiatra, técnico de enfermagem e farmacêutico. Apesar da ausência desses profissionais ter limitado a abrangência do estudo, tendo em vista a centralidade do cuidado médico e medicamentoso para muitos usuários, por outro lado, ela deu visibilidade e centralidade ao trabalho em equipe das demais categorias profissionais.

De modo a proporcionar um momento construtivo para a equipe e de produção de dados para a pesquisa em conjunto com os participantes optou-se pelas oficinas por essas se constituírem em espaços de negociação e produção de sentidos, que permitiram a visibilidade de argumentos e posições, e deslocamentos, construções e contrastes de versões (SPINK; MENEGON; MEDRADO, 2014).

A primeira oficina teve como objetivo introduzir o tema da RD para discussão por meio da apresentação de um vídeo. No segundo encontro, cada participante foi provocado a escrever e apresentar uma cena de seu cotidiano de trabalho relacionada com a RD. Essas propostas facilitaram a discussão com base nas práticas de cuidado desenvolvidas no CAPS-AD.

Não se pretendeu uma suposta neutralidade do pesquisador, e sim, dar visibilidade de forma crítica às relações que constituem a realidade em que o pesquisador está inserido. Para isso, o pesquisador produziu o texto como narrativa do processo de pesquisa e de sua experiência de mais de três anos como Acompanhante Terapêutico no CAPS-AD, o que possibilitou colocar a si próprio e a pesquisa em análise.