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HUMANOS OU COBAIAS? TRAJETÓRIAS DE CUIDADO E O DESAFIO DO DIREITO À SAÚDE DE PESSOAS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

3 PERCURSO METODOLÓGICO

Na perspectiva de uma melhor interpretação das particularidades e experiências de cada sujeito dentro da busca por cuidados de saúde, visamos compreender toda a subjetividade que envolve cada ato, esmiuçando suas trajetórias de cuidado, através da estrutura da pesquisa qualitativa, com uma abordagem metodológica hermenêutica crítica narrativa.

Considerando a aproximação inevitável entre os sujeitos na pesquisa qualitativa, a perspectiva Hermenêutica de Gadamer nos propõe uma postura filosófica que reconhece a historicidade do pesquisador e que orienta a própria construção das perguntas de pesquisa. A história efeitual seria então um processo a ser explicitado por quais motivações e sob quais preconceitos e valores se dá esta construção num certo momento da experiência do sujeito que deseja melhor compreender um fenômeno. Essa explicitação requer uma apresentação do ponto

de partida do pesquisador e da transformação das suas pressuposições, para buscar nos contextos reais, sua confirmação ou não (CAMPOS, 2006; SURJUS, 2014).

Desta feita, seguimos algumas etapas que consistiram em: a) explicitação da historicidade da própria pesquisadora para melhor compreender o destaque do objeto de pesquisa; b) um estudo exploratório da caracterização da população que tem demandado pelo processo transexualizador no Ambulatório de assistência integral a travestis e transexuais no período de março de 2015 a maio de 2018; c) o convite e os encontros para a realização de entrevistas individuais; d) a análise por meio da identificação de núcleos argumentais; e) a construção de uma narrativa coletiva; e, f) a validação pelos participantes.

3.1 Historicidade: o meu ponto de partida

Enfermeira, trabalhadora da área da saúde, em atividade no ambulatório de um hospital público na cidade de Santos desde 2008.

Fora das paredes institucionais, conheci uma pessoa transexual. Esta pessoa referia que ao se olhar no espelho não reconhecia sua imagem, era como se não pertencesse ao corpo o qual nasceu. Coabitar consigo era uma tristeza profunda. Seus parentes não o entendiam e os serviços de saúde do local onde morava a diagnosticaram como portadora de depressão e ansiedade, a levando ao uso de antidepressivos. Pensamentos suicidas eram constantes. Adequar seu corpo da forma com a qual realmente se sentia era seu maior desejo. Sem trabalho ou apoio parental, iniciou a busca pela sua readequação no Sistema Único de Saúde (SUS). Vários foram os conflitos vivenciados junto às equipes de saúde que se recusavam a chamá-lo pelo nome social e não sabiam o que fazer no momento da consulta. Após muita resistência e reclamações nas ouvidorias, conseguiu o atendimento. Chegou a receber uma resposta da ouvidora que disse: “Nome social não existe! Isto que você quer usar é nome fantasia.”, “Falsidade ideológica é crime!!!”. E ainda o médico que disse: “ [...] eu não atendo este tipo de

gente!.”

Pensei: Será que este cenário é reproduzido na vida de tantas outras pessoas transexuais? Era esta a lógica assistencial promovida pelo SUS?

3.1.1 Movimentos Sociais: novas tradições para além da saúde

O termo transexual no Brasil, foi propagado pelo movimento de Travestis e Transexuais, que buscavam pela visibilidade e garantia de direitos. Em 2013 houve a publicação da Política Nacional de Saúde Integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com o intuito

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de “promover a saúde integral desta população, visando eliminar a discriminação e o preconceito institucional” (BRASIL, 2013, p. 18).

No mesmo ano, criou-se a Comissão de Diversidade Sexual da cidade de Santos-SP, extremamente atuante nos órgãos da saúde e educação, desempenhando um importante papel informativo, fortalecendo a população LGBT e empenhando-se em fazer valer os seus direitos.

Chegou ao conhecimento desta Comissão, a demanda que havia na Baixada Santista pelo processo transexualizador, todavia não existia um serviço ou mesmo profissionais habilitados para esta especialidade de atendimento. Na busca pela garantia destes cuidados, a presidente da Comissão, promoveu encontros entre os representantes das secretarias de saúde, fomentando a importância do serviço.

3.1.2 Um ambulatório para chamar de seu: lugar de conquista, de trabalho e um locus para pesquisa

Instituiu-se então, em março de 2015, o Ambulatório de Saúde Integral a Travestis e Transexuais no Hospital Guilherme Álvaro na cidade de Santos, estado de São Paulo, com vista a garantir o processo transexualizador, exceto a cirurgia de transgenitalização. A equipe foi composta por uma médica endocrinologista, uma psicóloga e uma assistente social.

Requeri a minha inserção na equipe. Tão logo iniciei meu trabalho, com frequência podia ouvir os funcionários falando pelos corredores: “Deus ama o pecador, mas não ama o pecado.”;

“É uma aberração”; “Não vou chamar ninguém com este tal de nome social, tenho que chamar pelo nome que está no RG!”; “Olha! Parece um homem/mulher de verdade! Se eu não soubesse, nem falaria!”.

As circunstâncias vivenciadas ali me fizeram questionar: Como se tem produzido o cuidado destas pessoas e o acesso ao ambulatório na instituição? Quais as dificuldades e facilidades encontradas na assistência e acolhimento sob a ótica das pessoas transexuais? Por que tanta resistência para o atendimento destes usuários? Como eu poderia contribuir para mudar esta realidade? Tais perguntas, que são o objeto deste estudo, fizeram emergir o meu desejo pela participação no mestrado profissional, como forma de produzir conhecimentos, abrindo margem para a reflexão sobre as práticas do nosso trabalho, possibilitando a devolutiva dos achados ao próprio serviço.

3.2 Campo do estudo

O local escolhido para o desenvolvimento deste estudo, foi o ambulatório de assistência integral a travestis e transexuais do Hospital Guilherme Álvaro, que abarca a equipe responsável pelo processo transexualizador. Trata-se de um Hospital Estadual de grande porte, referência para toda a Baixada Santista.

3.3 Buscando participantes protagonistas

Sob a perspectiva da hermenêutica de Gadamer, somos alertados de que a história é feita e pode ser contada por múltiplas vozes e quase sempre, a sua oficialidade tende a excluir vozes mais frágeis ou que guardem menor poder frente às disputas que atravessam a construção social humana. Isto posto, a presente pesquisa recorreu a dar voz aos sujeitos que diretamente vivenciaram o processo a ser compreendido, evidenciando um compromisso ético com a transformação da realidade social em que se inserem (CAMPOS, 2006; SURJUS, 2014).

Para tanto, a construção de narrativas a partir das transcrições das entrevistas, usando o arcabouço teórico de Ricoeur, foi nosso pilar (CAMPOS et al., 2014, p. 2). “As narrativas, construídas pelos pesquisadores, seguindo os núcleos argumentais, tornam o material denso, mantendo-se fiel a história.” (CAMPOS, 2011, p. 1269).

A população participante desta pesquisa foi composta por pessoas transexuais, que estavam dentro dos critérios de inclusão: maiores de 18 anos; integrantes do ambulatório de atenção integral a travestis e transexuais; em processo de transição por mais de 12 meses; e, buscaram pelo serviço espontaneamente.

Este estudo se deu em conformidade com a Resolução 466/2012, sendo a participação dos entrevistados condicionada a prévia leitura e preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, cujo teor foi elucidado antes do início das entrevistas. O projeto foi aprovado pelos comitês de ética em pesquisa da UNIFESP e do Hospital Guilherme Álvaro sob o número do CEP – 1538/2017.

Os nomes dos participantes foram mantidos em sigilo e os aspectos que poderiam identificá-los foram retirados. Foram convidados pessoalmente, outros contactados via

WhatsApp e Messenger do Facebook, aleatoriamente, obedecendo-se a listagem de pacientes

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Por se tratar de pesquisa qualitativa, trabalhamos com amostra por saturação, não nos preocupando com a quantidade de participantes. Saturação é um termo criado por Glaser e Strauss (1967, apud MINAYO, 2017, p. 5) “para se referirem a um momento no trabalho de campo em que a coleta de novos dados não traria mais esclarecimentos para o objeto estudado”.

3.3.1 Colheita dos dados

Considerando o objeto e a complexidade da investigação das questões a serem analisadas, a técnica de colheita de dados escolhida foi a realização de entrevistas semiestruturadas individuais, como forma de preservar os participantes da pesquisa no que tange a delicadeza dos fatos narrados.

Tradicionalmente, a esta etapa da pesquisa denominada de entrevista é tratada por coleta de dados. Neste estudo, este procedimento metodológico foi nomeado como colheita de dados, entendendo não ser este apenas um momento de produção de dados, mas sim de colheita, sendo um processo de intervenção e não apenas de levantamento de informações já prontas, uma vez que a entrevista

colhe dados porque cultiva a realidade no ato de conhecê-la. Tal cultivo pressupõe a dupla direção metodológica de acompanhar a experiência dos sujeitos na situação de entrevista e cuidar dos efeitos do procedimento de colheita de dados (SADE et al., 2013, p. 2814).

Diante disso, nos atentamos à reconstrução da trajetória de cuidados em saúde das pessoas transexuais, através da realização da colheita dos dados, a partir das entrevistas áudio gravadas, transcritas, organizadas e analisadas, à luz dos principais marcos legais que garantem o acesso à saúde como direito e em diálogo com outros autores que já tenham se dedicado a tal temática, sob o referencial hermenêutico narrativo (CAMPOS, 2005).

O material transcrito foi analisado de maneira a permitir a identificação dos principais núcleos argumentais. O agenciamento lógico das ideias e ênfases percebidas pelo pesquisador foram expressas em uma narrativa, considerando o material como uma “unidade narrativa”, com vistas a reunir as principais vivências, consensos e contradições identificadas (CAMPOS; FURTADO, 2006).

Iniciou-se a elaboração da interpretação, que para Campos (2005) é um processo de dois movimentos: 1) análise – necessária para a compreensão aprofundada dos fenômenos em curso, e 2) construção – a partir de narrativas que ajudem na formulação de propostas e elaboração de novos sentidos. Para Ayres, este processo corresponde à dupla tarefa

hermenêutica de compreender os discursos e construir novos saberes (AYRES, 2005 apud SURJUS, 2011).

Neste ciclo, a unidade narrativa foi encaminhada a todos os sujeitos da pesquisa para validação dos dados, trazendo suas impressões quanto ao seu reconhecimento ou não naquela história, promovendo efeitos de intervenção, sendo este o momento hermenêutico (CAMPOS, 2011, p. 1269).

Entendemos desta forma a volta hermenêutica, visando a interpretação dessa narrativa, cumprindo o postulado hermenêutico de passar várias vezes pelo mesmo lugar, caracterizando o círculo hermenêutico da compreensão (CAMPOS; FURTADO, 2006).