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Direito à cidade como produção de espaços — físicos e simbólicos

INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE GESTÃO TERRITORIAL URBANA

3. Direito à cidade como produção de espaços — físicos e simbólicos

Nesse sentido, caminhamos para outro ponto central; é, portanto, da possibili- dade de construção de novos espaços que estamos falando, espaços simbólicos, físicos, espaços que se revelam como objeto e instrumento da realização de uma sociedade que, ao menos do ponto de vista legal, aspirou sua construção alicer- çada em valores culturais e ideais de participação como base para realizações coletivas e como instrumento de transformação individual.

A cidade vem a se submeter, a partir da Constituição de 1988 e, especifi - camente com a regulamentação dos arts. 182 e 183 da CF, através da edição do Estatuto da Cidade, a uma nova disciplina jurídica, subsumindo-se ela também à categoria de bem ambiental, assumindo, portanto, a natureza jurídica de bem de uso comum do povo.

Deve, pois, ser interpretada à luz dos fundamentos constitucionais da dig- nidade da pessoa humana, vinculando-se a execução da política urbana ao con- ceito de sadia qualidade de vida.

Como bem lembra Celso Fiorillo, “a propriedade urbana assume a feição de bem ambiental”7 deixando de ser considerada no seu aspecto puramente material, mas vinculando-se de forma radical à dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, plural.

Na qualidade de bem ambiental, resta, portanto, superada a tradicional dicotomia de bem público/ bem privado.

Por certo que esta perspectiva empalidece o aspecto administrativo que matizou o Município como unidade territorial em que poder público gere os espaços públicos e os particulares o espaço privado, passando os bens públicos e privados a se submeterem (ao menos do ponto de vista da exigência jurídico constitucional) à sua função social, que, no âmbito do Estatuto da Cidade, deve ser defi nida e esquadrinhada pelo Plano Diretor, conforme veremos.

Esses pressupostos legais contemplam, no cenário da cidade, a gestão e a participação popular e uma noção de dinâmica territorial já antevista por Milton Santos ao salientar que “num território, quando ele é analisado a partir da dinâmica social, ele é perceptível pelas coisas que são fi xas e pelas que se mo- vimentam. As coisas que se movimentam é que dão valor às que são fi xas. Para entender a vida no território ou a vida nacional, é preciso jogar com os dois.”8

7 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. “Direito ambiental tributário como instrumento em defesa a ci- dades sustentáveis no Brasil e o IPTU progressivo no tempo”. In: MILARÉ, Edis (org.). A Ação Civil

Pública após 20 anos: efetividade e desafi o. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.103.

8 SANTOS, Milton. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Editora Record,

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Portanto, enquanto a noção de território assume feição dinâmica, a de es- paço ganha ares específi cos e os lugares assumem papel importantíssimo como signos de pertencimento e de realização social.

Nesse sentido é que se afi gura necessário a investigação sobre a relação espaço/cultura, a qual passa a assumir enorme relevo como afi rmação da cida- dania e como instrumento de emancipação humana.

Para tanto, recorremos a Lefebvre, que assim conceitua:

O espaço é político e ideológico. É uma representação literalmente povoada de ideologia. Existe uma ideologia do espaço. Por quê? Porque esse espaço, que parece homogêneo, que parece dado uma vez na sua objetividade, na sua forma pura, tal como o constatamos é um produto social. A produção do espaço não pode ser comparada à produção deste ou daquele objeto particular, desta ou daquela mercadoria. E, no entan- to, existem relações entre a produção das coisas e a produção do espaço. Essa se vincula a grupos particulares que se apropriam do espaço para geri-lo, para explorá-lo. O espaço é um produto da história, com algo outro e algo mais do que história no sentido clássico do termo.9

A categoria espaço não abrangerá, por sua vez, apenas o físico (que compre- ende a noção de território), mas envolve, também, o simbólico, representações de espaço e espaços de representação (como invoca Lefebvre), os virtuais (que se estabelecem na internet, intensifi cando-se as relações à distância), alargando a dimensão exclusivamente material do tema.

Ou seja, o conceito de espaço abrange o território e compreende também as feições dinâmicas que sobre ele se desenvolvem.

Portanto, em sua defi nição sociológica, releva-se mais adequado e repre- sentativo quando buscamos o moderno tratamento conferido à cidade no plano jurídico-constitucional, espaço esse sobre o qual irá se estabelecer o direito à cidade.

Nesse sentido, prossegue Lefebvre defi nindo o direito à cidade:

O direito à cidade legitima a recusa de se deixar afastar da realidade urbana por uma organização discriminatória, segregadora. Esse direito do cidadão (se se quiser falar assim: do ‘homem’) anuncia a inevitável crise dos centros estabelecidos sobre a segregação e que a estabelecem: centros de decisão, de riqueza, de poder, e de informação, de conheci- mento, que lançam para os espaços periféricos todos os que não par- ticipam dos privilégios políticos. Do mesmo modo, o direito à cidade estipula o direito de encontro e de reunião; lugares e objetos devem cor- responder a certas necessidades, em geral malconhecidas, a certas fun-

ções menosprezadas, mas por outro lado, transfuncionais: a necessidade da vida social e de um centro, a necessidade e funções lúdicas, a função simbólica do espaço (próximas do que se encontra aquém, como além, das funções e necessidades classifi cadas, daquilo que não se pode obje- tivar como tal porque fi gura do tempo, que enseja a retórica a que só os poetas podem chamar por seu nome: desejo).

O direito à cidade signifi ca, portanto, a constituição de uma unidade espa- ço temporal, de uma reunião, no lugar de uma fragmentação. Ela não elimina as lutas. Ao contrário!10

Como conclusão desses postulados, temos que “o direito à cidade implica e aplica um conhecimento que não se defi ne como ‘ciência do espaço’ (ecologia, geopolítica, equística, planejamento etc.), mas como conhecimento de uma

produção, a do espaço.”11

O exercício do direito à cidade, portanto, se dará na medida em que não se fi zer o uso segregado do espaço urbano, respeitando-se a vocação plural, diver- sifi cada, heterogênea que dele pretenda fazer a população, mas também como palco de confl itos e contradições.

Espaços públicos serão aqueles que puderem se qualifi car como lugares estabe- lecendo relações de pertencimento para com os cidadãos, estimulando práticas de convívio social, fomentando a participação, e, no caso da cultura, a criação, uso, fruição, gozo de bens culturais.

Trata-se agora de buscar identifi car em quais diplomas legais pode-se bus- car a vocação para qualifi car a vida no âmbito das cidades, como item essencial à realização da dignidade da pessoa humana.

4. Estatuto da cidade e as bases para construção de uma cidadania cultural no