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A SUPERPOPULAÇÃO PRISIONAL COMO OBSTÁCULO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

1. Prisão, prisão e mais prisão

O criminólogo Alvaro Pires, em pesquisa recente sobre a “violência legal”, uti- liza a expressão pena radical para se referir a um conjunto de penas que são radicalmente indiferentes à inclusão social (ou à vida social) dos indivíduos condenados. Este conceito é capaz de descrever dois grandes cenários: a morte

biológica (com ou sem suplícios) e a morte social — denominada pelo historia-

dor italiano Italo Mereu “morte a fogo lento” — que inclui a pena perpétua e as longas penas de prisão5. Mas quão longas precisam ser as penas para integrarem o conceito de pena radical? Após repertoriar experiências de reforma legislativa que propuseram patamares de 8, 7 e até 5 anos como limite máximo de encar- ceramento, Alvaro Pires adota em seu texto um critério que considerou conser- vador: 10 anos de prisão. Tem-se, portanto, que as penas de 10 anos ou mais de privação de liberdade equiparam-se às penas perpétuas e à pena de morte no que diz respeito à “radicalidade da indiferença em relação ao destino e aos di- reitos (“à vida social”) do condenado”. Não poderemos avançar na explicitação desse quadro teórico, mas para os propósitos desse texto bastaria indicar que uma das distinções de base da teoria das penas radicais — que justamente a per- mite “oferecer um fundamento fi losófi co à exclusão social radical do condena- do” (p. 12) — é a forma como a teoria utiliza a distinção entre o todo e a parte. Como nos mostra Alvaro Pires, esta teoria permite “observar o todo sem que a parte faça falta e, ao mesmo tempo, observar a parte como negligenciável”. Nesse contexto, à noção de bem comum atribui-se um sentido inesperado, pois deixa de se referir ao bem de todos para se tornar “o bem do resto da sociedade

contra o condenado”6.

A pesquisa de Alvaro Pires mostra que a teoria das penas radicais de São Tomás de Aquino permanece presente, desde o século XIII, nas práticas polí- ticas e jurídicas ocidentais. E, de certa forma, tem impedido até os nossos dias “a reconstrução da política legislativa e da prática jurisprudencial do sistema de justiça criminal”7. Nos limites deste texto, buscar-se-á simplesmente apresentar

5 Pires, Alvaro. “Les peines radicales: construction et “invisibilisation” d’un paradoxe” (no prelo). Texto de introdução ao livro: Mereu, Italo. La mort comme peine. Essai sur la violence légale. Bruxelles: Larcier, 2012.

6 Para uma ampla demonstração da forma como essas ideias se formam em São Tomás de Aquino e são trabalhadas por Italo Mereu, ver Alvaro Pires. “Les peines radicales...” (Op. cit), p. 14-17.

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alguns aspectos dessa indiferença radical à vida social dos condenados em nossas práticas políticas e jurídicas.

A privação de liberdade, em suas diferentes modalidades, tem sido a sanção de referência do nosso sistema de penas desde nossa primeira codifi cação. Isso signifi ca que o tempo em prisão constitui, em nossa legislação, o mecanismo pri- mordial de resposta estatal a uma imensa variedade de confl itos e problemas so- ciais. E para certos crimes esse tempo é longo, muito longo. Inúmeras reformas legislativas nas últimas décadas dedicaram-se a elevar os patamares mínimos e máximos estabelecidos em lei8. Ademais, dados do Infopen sobre a população prisional paulista em dezembro de 2011 mostram que o tempo total de pena é superior a 8 anos para mais de 65% das pessoas que estão presas9.

Além disso, a legislação penal em vigor prevê a pena de prisão para a esma- gadora maioria dos crimes previstos — mesmo se, em alguns casos, o juiz possa, no momento da aplicação, substituí-la por outros tipos de sanção. Prevista para todos os crimes, mas efetivamente aplicada para bem poucos. Como mostram os mesmos dados, mais da metade das 180 mil pessoas presas cumprem pena por crimes contra o patrimônio — quase 113 mil. Somadas às mais de 50 mil presas por tráfi co de drogas, tem-se pouco mais de 16 mil pessoas distribuídas em todos os demais crimes previstos em nossa legislação.

Não há como compreender esse cenário sem mencionar rapidamente algu- mas características de nosso sistema de penas e, muito especialmente, a forma como “blindamos” certos crimes das possibilidades de gestão por intermédio de mecanismos diferentes da sanção prisional. A partir de meados da década de noventa do século XX, ocorreram algumas mudanças importantes no direito penal brasileiro. Abriu-se na legislação um primeiro espaço para utilização de formas alternativas de resolução de confl itos (como a conciliação e transação), bem como à aplicação de penas não prisionais de modo autônomo (e não con- jugado à pena de prisão)10. O histórico de implementação dessas leis evidencia que, uma vez aprovadas pelo legislativo, ainda levaram um bom tempo para serem também incorporadas à atuação do judiciário e do executivo11. De todo modo, em ambos os casos, o recurso à privação de liberdade não estava afastado

8 Sobre os aumentos das penas no Código Penal brasileiro em vigor, ver Ferreira, Carolina e Machado, Maira. “Exclusão social como prestação do sistema de justiça: um retrato da produção legislativa atenta ao problema carcerário no Brasil” em Pensar o Brasil: problemas nacionais à luz do direito. J. R. Rodriguez (org.). São Paulo: Saraiva, 2012, p. 86-87.

9 Os dados do Infopen estão organizados em faixas (4 a 8, 8 a 15, 15 a 20 e etc.).

10 A referência aqui é à criação dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9099/95), mas sobretudo à Lei nº 9.714/98 que alterou o Código Penal para ampliar o alcance das penas não prisionais.

11 Para um completo balanço desse processo, ver Barreto, Fabiana. 10 anos da política nacional de penas e

por completo. No tocante aos crimes de competência dos juizados especiais criminais, foi necessário alteração do Código de Processo Penal, em 2011, para afastar a possibilidade de decretação de prisão preventiva nos crimes de com- petência dos juizados especiais criminais12. Ademais, tanto nos casos de transa- ção penal e suspensão condicional do processo, como no caso de aplicação de sanções não prisionais, o não cumprimento das condições previstas é capaz de gerar, de imediato, o retorno às modalidades tradicionais de atuação penal, com o processo penal comum e a pena de prisão.

Além disso, o alcance dessas mudanças em relação aos crimes que recebem atenção privilegiada pelo sistema de justiça criminal foi tão tímido que sequer tocou o crescimento exponencial da população carcerária que ocorreu no mes- mo período. De acordo com nossa legislação, as sanções não prisionais — como a prestação de serviços à comunidade e as penas restritivas de direitos — podem ser aplicadas somente aos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e que tenham sido sentenciados a menos de quatro anos de prisão. Com essa formulação, a própria lei exclui de imediato, independentemente das caracte- rísticas do caso concreto que o juiz tem diante dos olhos, todos os crimes cuja pena mínima é superior a 4 anos — como o tráfi co — bem como o crime de roubo, mesmo em sua forma simples.

Essas mudanças tampouco deram o tom das demais alterações legislativas propostas nas últimas duas décadas. A categoria dos crimes hediondos, criada pela Constituição Federal de 1988 e regulamentada em várias leis editadas a partir de 1990, modifi caram patamares de penas e, sobretudo, condições para a progressão entre os regimes prisionais contribuindo de modo decisivo para a expansão da população prisional no país13.

A forte limitação das informações produzidas e disponibilizadas sobre a atuação do sistema de justiça criminal não permite que avancemos muito mais na análise do impacto dessas reformas legislativas no crescimento exponencial da população carcerária. Como o Brasil não produz dados sobre o tempo de permanência no interior do sistema prisional, não conseguimos mensurar e diferenciar a contribuição das leis que favorecem a entrada no sistema prisio- nal — como as penas mínimas superiores ao patamar que a lei admite às penas

12 Trata-se da lei de medidas cautelares (12.403/11) que modifi ca o CPP para autorizar a prisão preventiva nos crimes dolosos com pena máxima superior a 4 anos.

13 Para a compreensão desse quadro a partir de pesquisas conduzidas sobre o processo legislativo em ma- téria penal, ver Ferreira, Carolina. Legislar sobre a exclusão social: um estudo sobre a atividade legislativa

sobre cumprimento da pena privativa de liberdade de 1984 a 2011. Dissertação de mestrado em Direito

e Desenvolvimento (Direito GV, 2012); Campos, Marcelo. Crime e Congresso Nacional: Uma análise

da política criminal aprovada de 1986 a 2006. São Paulo: IBCcrim, 2010 e Paiva, Luiz Guilherme. A Fábrica de Penas: racionalidade legislativa e a lei dos crimes hediondos. Rio de Janeiro: Revan, 2009.

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não prisionais — e das leis que difi cultam a saída do sistema prisional por intermédio das regras referentes à progressão de regime. Aqui, mais uma vez, a parcela de contribuição da legislação para o problema precisa ser colocada em perspectiva, uma vez que, diante do caso concreto, o julgador está invariavel- mente diante de algumas possibilidades decisórias — e não uma única — todas elas amparadas pela legislação vigente.

Como compreender a centralidade e o constante fortalecimento da pena de prisão em nossa sociedade? Pesquisas empíricas sobre o processo legislativo em matéria penal apontam que esse direcionamento — prisão, prisão e mais prisão — não varia de acordo com a posição político-partidária do deputa- do que apresentou o projeto14. Tampouco tem variado em longos períodos de tempo. Esses dois fatores favorecem uma interpretação segundo a qual os obs- táculos à transformação dessa ordem de coisas estão mais relacionados às ideias e teorias que desenvolvemos para legitimar a pena como sofrimento do que à dinâmica econômica ou ao avanço de setores conservadores da sociedade. De acordo com essa leitura, os obstáculos à transformação de um direito penal excessivamente ancorado na instituição prisional decorrem da cristalização das teorias (modernas) da pena — retribuição e dissuasão — formuladas no século XVIII: é preciso punir para retribuir o mal causado e para dissuadir os demais de cometerem o mesmo crime15. A essas duas teorias juntou-se, quase um sécu- lo mais tarde, a teoria da reabilitação prisional que buscou enfatizar a reforma moral e o tratamento dos presos como fi nalidade precípua das penas16. Entre as principais implicações da ampla difusão da ideias de reabilitação dentro do cárcere estão as críticas às penas de curta duração. Afi nal, de acordo com a perspectiva teórica privilegiada naquele momento, para reabilitar era preciso tempo, em alguns casos, muito tempo fora do convívio social.

A permanência dessas três formas de justifi car a aplicação das penas em geral, e da privação de liberdade em particular, pode ser percebida muito fa- cilmente na sociedade contemporânea e nos mais diversos fóruns. Podem apa- recer de maneira conjugada, em pares ou isoladamente, à escolha de quem as mobiliza para justifi car a atuação do sistema de justiça criminal. Para os tipos de crimes que já integram a clientela privilegiada do sistema de justiça criminal

14 Machado, Maira et alli (2010). Atividade legislativa e obstáculos à inovação em matéria penal no Brasil. Brasília, Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça do Brasil, Vol. 32, 2010.

15 A referência aqui são os trabalhos de Alvaro Pires, especialmente: Histoire des Savoirs sur le crime e la

peine. Vol. I, II e III. Bruxelles: Larcier, 2008.

16 Para um panorama geral da teoria, ver Machado, Maira; Pires, Álvaro; Ferreira, Carolina; Schaff a, Pedro.

A complexidade do problema e a simplicidade da solução: a questão das penas mínimas. Brasília, Secretaria

brasileiro — como o roubo e o tráfi co de drogas — não são incomuns as de- mandas por elevação das penas ou pela ampliação do tempo de permanência no interior das instituições prisionais. Para os crimes que não integram a clientela privilegiada, não são poucos os esforços voltados a fazer com que passem a ser incorporados pelo sistema também. No Brasil, especialmente os crimes de cor- rupção e colarinho branco são objeto de demandas pelo fi m da “impunidade” nas quais o termo impunidade é utilizado para signifi car “ausência de aplicação da pena de prisão por longos períodos”17. Nessa simplifi cação chocante do sis- tema de justiça criminal àquilo que fazia quando surgiu — privar de liberdade pessoas físicas que violaram a lei penal como forma de retribuir o mal pelo mal, dissuadir os demais cidadãos(ãs) a cometerem o mesmo crime ou reabilitá-las para que retornem ao convívio social — todas as demais sanções, formas de resolução de confl itos e de responsabilização fi cam imediatamente excluídas.

Concluirei essa seção com uma ilustração sobre a força e o alcance dessas ideias na atualidade. O exemplo escolhido ajuda a explicitar que as amarras à pena de prisão estão longe de ser uma característica do sistema de justiça brasileiro — mesmo nas formas tão extremas que mencionamos aqui. Revela também o quanto as teorias da pena são mobilizadas de modo a tornar desne- cessária qualquer explicitação sobre os efeitos concretos da intervenção penal sobre determinados problemas.

Entre inúmeros outros documentos que poderiam cumprir esse papel, se- lecionamos um estudo publicado em 2012 pelo Banco Mundial denominado “Justiça para fl orestas: melhorando os esforços da justiça criminal para com- bater a extração ilegal de madeira”18. O estudo inicia com uma breve descri- ção dos problemas decorrentes da extração ilegal que assolam as fl orestas que ainda restam em nosso planeta. Reconhecendo a importância e a inocuidade dos esforços preventivos, clama por “novas ideias e estratégias que contribuam a preservar o que resta de nossas fl orestas”. A sugestão do estudo é investir em uma abordagem mais focada e “punitiva” (p. vii). Para caracterizar os “insuces- sos” das experiências de alguns países, o estudo cita casos de absolvição e de condenações a penas de um e dois anos de prisão. E conclui que, em face dessas “penas leves” e da baixa probabilidade de persecução, “o sistema de justiça cri- minal falha em fornecer qualquer efeito dissuasório real aos crimes ambientais” (p. 1). Ainda de acordo com o estudo, “a única ferramenta disponível capaz de

17 Sobre o uso do termo “impunidade” no processo legislativo brasileiro e sua condição de “envelope vazio” ver Machado, Maira et alli. Atividade legislativa... (op. cit.).

18 Goncalves, Marylene; Panjer, Melissa; Greenber, Th eodore; Magrath, William. “Justice for Forests: im- proving criminal justice eff orts to combat illegal logging”. World Bank Series, 2012. Agradeço ao meu colega Rui Santos por haver chamado minha atenção para esse relatório.

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dissuadir esses crimes é a genuína ameaça de persecução e punição signifi cativa” (p. 3). O conceito de punição também é dos mais restritivos: “tempo de cadeia”, é o que indica textualmente o estudo. E para explicitar as razões pelas quais essa punição seria necessária, o relatório evoca as teorias da pena indicadas acima: “penas signifi cativas e tempo de prisão são necessários não apenas para punir o infrator, como também para dissuadir os potenciais futuros infratores” (p. 08). Tratando-se de um tipo de atividade que pode gerar ganhos fi nanceiros consi- deráveis, o estudo dedica um longo trecho ao regime internacional anti-lava- gem de dinheiro. Ao listar “os benefícios” da aplicação desse conjunto de regras aos grandes casos de extração ilegal, o estudo indica, em primeiro lugar, que “a lavagem de dinheiro, como crime autônomo, traz consigo a possibilidade de aplicação de um tempo adicional de prisão” (p. 20). Apenas em seguida apare- cem os benefícios de acesso aos arquivos e às informações fi nanceiras produzi- das por diferentes agências e, consequentemente, de ampliação das chances de rastreamento e confi sco dos proveitos obtidos com a extração ilegal de madeira.

Há várias omissões no relatório que merecem ser discutidas. Entre elas estão os enormes obstáculos que a dogmática penal e o funcionamento das instituições do sistema de justiça colocam à persecução de crimes que envolvem pessoas jurídicas — mesmo quando a responsabilidade penal das empresas é autorizada por lei, como ocorre no caso dos crimes ambientais no Brasil19. Mas, ao lado disso, no que interessa diretamente a este texto, importa registrar dois pontos: de um lado, a equiparação entre “agir fi rmemente para afrontar um problema grave” e “enviar uma ou mais pessoas para a prisão” e, de outro, o completo descaso à explicitação das consequências e efeitos do programa de ação “punitivista” proposto pelo estudo. Tudo se passa como se as formulações centenárias das teorias modernas da pena já dissessem tudo o que precisamos saber para apoiar a intervenção do sistema de justiça criminal por intermédio da pena de prisão. Nada mais precisa ser explicitado, demonstrado ou pesquisado.

Apenas para que fi que muito claro o argumento desenvolvido aqui: mesmo que os condenados à pena de prisão por extração ilegal de madeira sejam em tão pequeno número que não haja qualquer impacto na população prisional, este modo de justifi car a atuação das instituições jurídicas termina por reforçar, no

plano das ideias, a possibilidade de defi nir políticas públicas para gerir proble-

mas muito sérios de modo totalmente descolado de suas implicações concretas. Uma forma de proceder em clara oposição à perspectiva enfatizada pelos entu- siastas do desenvolvimento sustentável para os quais, como indiquei no início

19 Machado, Marta (coord.). Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas. Brasília, Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça do Brasil, Vol. 18, 2009.

do texto, é indispensável considerar os efeitos, imediatos e futuros, de nossos projetos e ações.