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Direito oponível aos tribunais e ao Estado

No sistema constitucional democrático português, bem como cabo-verdiano, a realização da justiça recai de modo principal sobre os tribunais.

A consagração de poder judicial dos tribunais elevada a categoria constitucional consta do Título V, Capítulo I, – Princípios Gerais, – Capítulo II – Organização dos

tribunais – Capítulo III – Estatuto dos juízes, das Constituições portuguesa e cabo-

verdiana245. Assim, os tribunais são órgãos do Estado competente para exercer a administração da justiça, em nome do povo, a chamada função jurisdicional (arts. 111.º, n.º 1 e 202.º, n.º 1 da CRP, e 119.º, n.º 1, e 210.º, n.º 1 da CRCV)246, não podendo os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignadas (arts. 204.º da CRP, e 211.º, n.º 3 da CRCV)247.

Dada a supremacia dos bens jurídicos de cabal importância no Estado de Direito, que são depositados no poder deste órgão, o legislador optou resolutamente por assegurar um conjunto de princípios fundamentais que regem os tribunais na sua rica função estatal248. Esses princípios visam garantir a máxima legalidade dos atos e procedimentos processuais, e a objetividade e imparcialidade do julgamento249.

244 Neste sentido, profere GERMANO MARQUES DA SILVA, «a celeridade é um valor

constitucional, mas só enquanto compatível com as garantias de defesa. A justiça tem o seu tempo; para a investigação e acusação e tempo para a defesa. Importa também que o julgamento não ocorra quando ainda são muito recentes os factos e a opinião pública, também frequentemente ampliada e incitada pelos meios de comunicação, clama ainda por vingança». SILVA, Germano Marques da, Direito Processual

Penal Português, Noções Gerais, ob. cit., pág.91.

245 O Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) reafirma tais regras e princípios, em Portugal pela Lei

n.º 21/85, incluindo a última alteração pela Lei n.º 9/2011, de 12/04, de 30 de Julho, e em Cabo Verde pela Lei 135/IV/95, de 3 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 64/V/98, de 17 de Agosto e pela Lei n.º 1/VIII, de 20 de Junho de 2011.

246 MENDES, Paulo de Sousa, Lições de direito processual penal, ob. cit., pág. 109.

247 Neste sentido, SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português, Noções Gerais,

ob. cit., págs. 218 e segs, ALEXANDRINO, José de Melo, Os tribunais e a defesa dos direitos

fundamentais, ob. cit., pág. 5, FONSECA, Jorge Carlos, O Novo Direito Processual Penal de Cabo Verde,

ob. cit., págs. 82-83.

248 Para melhor aprofundamento sobre os princípios da administração da justiça, vide, entre outros,

MENDES, Paulo de Sousa, Lições de direito processual penal, ob. cit. pág. 109-114.

249

Sobre o fundamento da independência e imparcialidade do juiz no novo sistema processual penal acusatório, vide, ARMENTA DEU, Teresa, Principio acusatorio y derecho penal, Publicaciones del Instituto de Criminología de la Universidad de Barcelona, J.M. Bosch Editor, Barcelona, 1995, págs. 62- 64, SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português, Noções Gerais, ob. cit., págs. 221-226.

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No exercício das suas funções orienta-se pela sua independência judicial, estando apenas subordinado à Constituição e à lei, que os juízes devem aplicar dentro da sua própria consciência (arts. 203.º da CRP, e 211.º, n.ºs 1 a 3 da CRCV). A sua independência é garantida através da independência pessoal e objetiva do próprio juiz, na medida em que os magistrados judiciais, embora sujeitos a responsabilidade disciplinar, nunca são sujeitos a supervisão administrativa (arts. 216.º, n.º 2 da CRP, e 22.º, n.º 6 da CRCV)250.

Os tribunais têm a enorme responsabilidade de resolver os casos penais que cheguem a seu poder para assim propiciar a paz social e garantir a segurança jurídica. Em termos prático, o poder-dever primordial dos tribunais consiste em dirimir os conflitos jurídicos que surgem entre os sujeitos processuais, reprimir a violação da legalidade democrática e proteger os direitos constitucionais destes sujeitos (e dos cidadãos em geral), para evitar – em última instância – que o cidadão faça justiça pelas próprias mãos. Deste modo, trata-se, indubitavelmente, de uma função cardinal na legalidade democrática (art. 202.º, n.º 2 da CRP, e 209.º da CRCV)251.

A consagração autónoma do direito fundamental a um processo judicial com prazo razoável que assiste a cada pessoa e que vincula todos os órgãos/poderes do Estado, inclui o poder judicial. O poder judicial aparece-nos desta feita como verdadeiro guardião da Constituição e como sistema especialmente colocado ao serviço da defesa de direitos fundamentais252.

Assim, o direito à decisão em prazo razoável abrange os juízes, enquanto titulares de órgãos de soberania – os tribunais. O juiz tem acesso direto à norma constitucional e está obrigado pelos efeitos vinculativos da norma de direito, liberdade e garantia a solucionar os conflitos e outros interesses que lhe sejam trazidos, procurando respeitar as exigências de celeridade, desde que não prejudique as garantias de defesa.

Bem se percebe o papel de destaque que é atribuído aos juízes, que no dia a dia dos nossos tribunais, levam a cabo essa tarefa importante, que é o funcionamento do serviço público da justiça.

Os juízes, sem prejuízo do acerto da decisão, têm, no exercício das suas funções o dever de adotar as providências necessárias enquanto direção do processo e de observar os prazos e tramites previstos na lei – já que o seu funcionamento adequado

250 Ibidem. PIÇARRA, Nuno, A separação de poderes, ob. cit., pág. 195. 251

ALEXANDRINO, José de Melo, Os tribunais e a defesa dos direitos fundamentais, ob. cit., pág. 9.

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(rectius, em tempo útil) se impõe aos juízes a fim de serem cumpridas as exigências constitucionais de uma tutela jurisdicional efetiva dos nossos direitos e interesses legalmente protegidos253.

Neste sentido, entende GOMES CANOTILHO que «os tribunais são órgãos

constitucionais aos quais é especialmente confiada a função jurisdicional exercida por juízes» 254.

Disto é cabal ressalvar que, os tribunais não são formados apenas pelos juízes, constituindo um complexo orgânico, são, ainda, compostos pelo MP e pela secretaria, onde vários funcionários judiciais desenvolvem a sua atividade. Todas estas entidades que, de uma maneira ou de outra, participam na tarefa incumbida aos tribunais de administrar a justiça, têm em comum uma ideia de cooperação, pois todas elas visam a prossecução do mesmo objetivo – o regular funcionamento da máquina judiciária, só assim se logrando o cumprimento do valor máximo aqui em causa, que se traduz na realização da justiça255.

Na linguagem tradicional quando se fala dos tribunais também se fala do MP. Trata-se de dois órgãos independentes. Todavia a ligação entre os tribunais e o MP na prossecução dos interesses da justiça é fundamental. Mas vamos debater sobre o papel deste órgão no ponto que se segue. Por ora é mister fazer uma breve distinção entre este e o juiz.

É preciso ter presente que o juiz não acusa, julga, e que em contrapartida, o MP não julga, acusa. Julgar é, mesmo etimologicamente, ação ou função do juiz (judex-

judicare) e só a decisão judicial é suscetível de trânsito em «julgado», de constituir caso

julgado. Essa função é exclusiva do juiz. Outra diferença é que o MP não responde civilmente pelos seus atos, apenas está sujeito a responsabilidade disciplinar e criminalmente, enquanto que o juiz responde civilmente perante os seus atos256.

253

FERREIRA, António Manuel da Rocha, ob. cit., pág. 300.

254 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição

(Reimpressão), Almedina Editora, 2017, pág. 657.

255 QUINTA NOVA, Ana Rita Vieira, Os Danos Decorrentes da Administração da Justiça:

Contributo para o Estudo da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e dos Magistrados, Tese

de Mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2015, pág. 28.

256 O MP é o titular oficioso da ação penal para exercer em conformidade com a lei, isto é, sempre que

se verifiquem os seus pressupostos: da legalidade no seu exercício cabe ao juiz julgar, porque essa é a exclusiva função do juiz. FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Curso de Processo Penal, Vol. 2.º, Lisboa, Danúbio Editora, 1986, págs. 200-201 e 203.

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Além do mais, dispõe o art. 3.º, n.º 1. al. f)do EMP que lhe compete defender a

independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis.

Assim, cabe ao MP velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis, promovendo o que for por necessário através dos recursos previstos na lei, por um lado, mas também, promovendo procedimento penal e disciplinar contra quem exerça em violação da legalidade democrática, nomeadamente os juízes se for o caso. Retomamos esta questão no ponto seguinte quando estudarmos o papel do MP257.

Verdade que, é inegável o impacto social da morosidade que caracteriza os nossos tribunais, sendo porventura a principal manifestação de um anormal funcionamento da administração da justiça,258 – nesta zona da capacidade de prestação do sistema judicial que se situa talvez a maior dificuldade de efetivação dos direitos, liberdades e garantias (o espinho do «jardim dos direitos»)259.

Assistimos, processos com décadas parados em tribunais judiciais, por motivos desconhecidos, o que impedem o término da lide. Muitas vezes acabam por prescrever sem o autor do direito lesado, ter a felicidade de ver esse direito reparado. Daí a necessidade de limitar o procedimento judiciário, impondo prazos, para que a lide seja resolvida, razão de ser do surgimento do princípio da duração razoável do processo.

A Constituição determina que os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo nos casos previstos na lei260. Não obstante, a independência funcional dos juízes, a lei criou mecanismos que permite os cidadãos lesados pela duração excessiva do processo, e que dela suscitou prejuízos, responsabilizar civilmente como forma a recompensar de alguma forma os cidadãos (arts. 22.º da CRP, e 16.º da CRCV).

A Lei de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado de 2007 (Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro), no seu art. 12.º veio consagrar expressamente o regime

257

Sobre isso, vide, também RMP, Documentação, Jurisprudência e Documentação, n.º 86, pág. 169.

258 QUINTA NOVA, Ana Rita Vieira, ob. cit., pág.38.

259 ALEXANDRINO, José de Melo, Os tribunais e a defesa dos direitos fundamentais, ob. cit., pág.

12.

260 Como refere GERMANO MARQUES DA SILVA, «a questão da irresponsabilidade dos juízes

põe-se antes de mais em termos políticos, enquanto titulares de órgãos de soberania. A afirmação de que os juízes são irresponsáveis pelas suas decisões significa assim antes de mais que não respondem politicamente perante qualquer órgão ou entidade, nem mesmo perante o povo, em nome de quem administram a justiça». SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português, Noções

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jurídico da Responsabilidade do Estado-juiz por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, reforçando o preceito legal do art. 22.º da CRP. Também, prevê a aplicação do direito de regresso contra os magistrados judiciais que cometem erros com dolo ou culpa grave. Esta consagração não compromete a independência pessoal dos juízes, cabendo apenas no sentido de reforçar a qualidade da função jurisdicional261.

A decisão de exercer o direito de regresso cabe ao Conselho Superior de Magistratura (em Cabo Verde Conselho Superior de Magistratura Judicial – CSMJ), que é o órgão com competência para exercício do poder disciplinar sobre os juízes, bem como a gestão das suas carreiras262.

Em suma, o gozo efetivo do direito de uma decisão judicial num prazo razoável só estará objetivamente assegurado havendo um órgão estatual capaz de garantir a aplicação imparcial da lei existente, ao caso concreto, mediante processo justo e equitativo263. Esse órgão só pode ser um tribunal, dotado de magistrados preparados, com mecanismos adequados para dar respostas atempadamente a sobrecarga de processo que entram diariamente nos tribunais.

Contudo, temos de reconhecer que o problema da morosidade não é só do juiz e sozinho ele não pode conceder a plena efetivação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, na medida em que são necessariamente carecidos de organização, de procedimentos e de mecanismos institucionais e sem se esquecer, da regulação da questão de uso indevido de manobras processuais pelos sujeitos processuais para defraudar a justiça.