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O incidente de aceleração processual

2. A justiça penal por caminhos das reformas: celeridade e economia processual

2.1. O incidente de aceleração processual

Uma das primeiras preocupações do legislador português com os excessivos atrasos da justiça traduziu-se na estatuição de um incidente autónomo da aceleração processual, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro307.

O princípio do prazo razoável, que levou Portugal a ser várias vezes condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, justifica a «inflexibilidade e a intensificação da aplicação do mecanismo de aceleração processual», como resposta à contestação de falta de celeridade nos processos-crimes308.

307 O Conselho de Ministros aprovou em 4 de Dezembro de 1986 o Decreto registado sob o n.º

754/86, que, no uso da autorização conferida pela Lei 43/86, de 26 de Setembro, aprovou o Código de Processo Penal (CPP-P de 1987) e revogou o CPP-P aprovado pelo «Decreto-Lei» n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, com a redação, até então, em vigor. Aquando do aditamento do art.108.º que, instituiu o incidente da aceleração processual, ao início de duvidosa constitucionalidade, no que concerne à competência para a decisão dos casos em que o processo corre perante o tribunal ou o juiz, pois que o CSM é um órgão administrativo, que em matérias judiciais não pode dar ordens aos juízes, já que este só estão sujeitos ao dever de obediência de decisões dos tribunais superiores, proferidas em recurso interpostos no processo. O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da sua constitucionalidade, mais precisamente, no que refere ao n. º 2, al. b) do art. 108.º, com o seguinte fundamento: ao conferir o CSM competência para decidir o pedido de aceleração do processo atrasado, embora atenuado pelo disposto na al. d) do n.º 5 do art. 109.º, parece contender com o disposto no art. 208.º (atualmente 203.º), sob a epígrafe «independência dos tribunais». O Tribunal Constitucional, no seu Ac. 7/87 do TC, de 9 de Janeiro de 1987, decidiu não se pronunciar pela inconstitucionalidade de tal norma. A este propósito, vide, Diário da República n.º 33/1987, 1.º Suplemento, Série I, de 09 de Fevereiro de 1987. Essa posição é perfilhada no Ac. do TC 87-007-P, processo n.º 86-0302, relatado por Mário de Brito. Também, GONÇALVES, M. Maia, Código de Processo Penal Anotado, Legislação

Complementar, 17.ª Edição (Revista e atualizada), Coimbra Almedina, 2009, pág. 300.

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O seu acolhimento pelo Código de Processo Penal de Cabo Verde só veio acontecer com a reforma de 2015, introduzida pelo Decreto-Legislativo n.º 5/2015 de 11 de Novembro, que aditou o art. 139.º-A, apesar de já estar regulado no art. 24.º da Lei n.º 78/VII/2010 de 30 de Agosto, que dispõe sobre a execução da Política Criminal309.

O incidente da aceleração processual consiste num mecanismo criado em ordem a disciplinar a matéria dos prazos previstos na lei – os prazos máximos – confinados às autoridades judiciárias, máxime, ao juiz na fase de audiência de julgamento – a estruturação dessa audiência e o seu desenvolvimento em termo de continuidade e concentração reforçada. O mesmo se impõe à delimitação e à articulação das diversas instâncias de controlo, como, por exemplo, do Ministério Público na fase de inquérito e do juiz de instrução na fase de instrução, prevenindo assim eventuais conflitos e desfasamentos, inevitavelmente geradoras de demoras e delongas.

Assim, os arts. 108.º, n.º 1 do CPP-P, e 139.º-A, n.º 1 do CPP-CV, sob a epígrafe «Aceleração de processo atrasado», vem determinar que quando tiverem sido excedidos os prazos previstos na lei para a duração de cada fase do processo, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem tomar a iniciativa de requerer a providência de aceleração. O CPP-P estipula ainda que esta providência também pode ser iniciada oficiosamente pelo Procurador-Geral da República, quando tenha conhecimento de ter sido excedido o prazo máximo de duração do inquérito (n.º 8,

do art. 276.º do CPP-P). No requerimento é solicitado o rápido andamento e tramitação dos atos a efetuar

ou ordenar, durante a marcha do processo, visando recuperar processos que se encontrem em situação de morosidade, por terem sido excedidos os prazos previstos na lei para a duração de cada fase do processo310.

É aplicável ao processo em qualquer fase em que ele se encontre, na primeira instância ou nas demais instâncias, desde que se mostre ultrapassado o prazo previsto para tal fase. Pode ser exercido, a requerimento311 do Ministério Público, do arguido, do

309 Publicada no Boletim Oficial, I Série, n.º 33. 310

PINTO, Ana Luísa, ob. cit., pág. 125.

311 No caso de ser junta qualquer informação sobre o mérito do pedido, o direito de acesso aos

tribunais e o princípio do contraditório impõem que esta informação seja notificada ao sujeito processual interessado, uma vez que ela visa influenciar o CSM ou o PGR e, desse modo, representa uma forma de compressão prática do próprio direito de acesso aos tribunais e a justiça. Os demais sujeitos processuais não são ouvidos sobre o requerimento. Neste sentido, GONÇALVES, M. Maia, Código de Processo

Penal Anotado, pág. 303, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição

atualizada, Lisboa, Universidade de Cabo Católica Editora, 2011, págs.297-299, MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DESTRITO JUDICIAL DO PORTO, Código de Processo Penal,

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assistente, ou das partes civis, e devendo ser dirigido ao presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial (quando o processo decorrer perante o tribunal ou perante o Juiz) ou ao Procurador-Geral da República (quando o processo estiver sob a direção do Ministério Público), como refere o n.º 2, als. a) e b), respetivamente, dos artigos citados312.

A tramitação do pedido é bem simples e o prazo para a decisão é curto (arts. 109.º do CPP-P, e 339.º-B do CPP-CV).

A providência de aceleração processual não tem efeito suspensivo do processo, pois trata-se de um processo de natureza estritamente administrativa. O juiz ou o Ministério Público instruem o pedido com os elementos disponíveis e relevantes para a decisão e remetem o processo assim organizado em 3 dias ao órgão competente. Quando a decisão compete ao Procurador-Geral da República, este tem cinco dias para proferir o despacho. Quando seja de competência do Conselho Superior da Magistratura uma vez distribuído o processo este deve ser decidido na primeira sessão ordinária ou em sessão extraordinária, podendo ser adiada até dois dias, para a sua análise. No caso de necessidade de informações complementares o prazo poderá ser prorrogado no máximo até 5 dias.

Também nos casos que se faz necessário a abertura de inquérito para averiguar os atrasos e as condições em que se verificaram, poderá abrir um prazo para tal que não seja superior a 15 dias. Tomada a decisão pela PGR ou pelo CSM, eles devem comunica-la de imediato ao magistrado que tem o processo a seu cargo, de modo a que este dê o mais rapidamente possível cumprimento ao decidido.

O pedido não é obrigatório e poucas pessoas sabem que têm a seu favor este instrumento para agir contra os atrasos da justiça. O legislador português cuidou deste problema, no que respeita ao inquérito, na reforma introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,queveio reforçar o controlo do tempo de duração do inquérito, obrigando o magistrado titular do processo a comunicar ao superior hierárquico a ultrapassagem do prazo, explicando a razão do atraso e indicando o tempo necessário para concluir o inquérito (n.º 4, art. 276.º do CPP-P).

Comentários e Notas Práticas, Coimbra Editora, 2009, 279, PINTO, António Augusto Tolda, A tramitação processual penal, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2001, pág. 221e-222.

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Encontram-se impedidos de intervir na deliberação sobre o incidente os juízes que, de qualquer forma, tiveram participado no processo, (n.º 3, do art. 108.º do CPP-P e n.º 3 do art. 139.º-A do CPP-CV). Também por interpretação extensiva da norma, O PGR estará impedido de decidir o incidente se, por qualquer forma, interveio no inquérito. Assim, MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO, ob. cit., pág. 279.

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Por sua vez, o superior hierárquico pode avocar o processo e é obrigado a dar conhecimento da situação de violação do prazo do inquérito ao Procurador-Geral da República, ao arguido e ao assistente (n.º 5 do art. 276.º, do CPP-P). O objetivo foi de promover o respeito pelos prazos do inquérito na medida em que impõe as entidades com legitimidade para proceder o inquérito que informem ao superior hierárquico sempre que o inquérito se prolongue para além do prazo previsto na lei.

Por outro lado, como proferiu MARIA FERNANDA PALMA, no âmbito da prisão preventiva, este instituto exprimiu também o objetivo do cumprimento dos prazos razoáveis, visto que nas estatísticas europeias Portugal é considerado um dos países em que a duração média da prisão preventiva é das mais elevada da Europa, sem conseguir perceber as causas, já que a criminalidade, até então, não tinha aumentado e o número de magistrados tinha aumentado313.

O art. 110.º do CPP-P (esta disposição não consta do CPP-CV) prevê a aplicação de sanção para o peticionante de aceleração processual cujo pedido seja considerado

manifestamente infundado314. A sanção é de natureza económica e será expressa em

unidades de conta (UCs) – de 6 a 20 –, cabendo a sua aplicação: – ao juiz de instrução criminal – se o pedido tiver sido apreciado pelo PGR, nos termos do [art.108.º, n.º 2, al.

a)] ou se o atraso for da responsabilidade do próprio juiz de instrução; – ao tribunal de

julgamento – se o processo atrasado estiver sob sua jurisdição315.

Como resulta do próprio texto do artigo, não tem lugar a condenação em apreço se o peticionante for o MP, o que se compreende, pois esta entidade está isenta do pagamento de quaisquer quantias pela eventual utilização indevida do expediente

313 MARIA, Fernanda Palma, Linhas estruturais da reforma penal, ob. cit., pág. 1370.

314 O legislador utiliza a expressão manifestamente infundado para dizer que a sanção ao peticionante

só tem lugar quando o pedido formulado se apresente como tal. Não nos diz, porém, como e quando é que um pedido de aceleração processual deve ser considerado manifestamente infundado. Cabe assim ao julgador apreciar em cada caso concreto se o pedido assumiu ou não esse cariz, partindo sempre do princípio de que o pedido só será manifestamente infundado quando, na hipótese considerada, não havia qualquer excedência nos prazos fixados na lei para a duração de cada fase do processo – tendo por isso o peticionante incorrido ligeireza de avaliação – ou quando, mesmo ultrapassado os prazos legais, havia justificação para essa excedência. Importa, esclarecer que a condenação aqui prevista é diferente da condenação em taxas de justiças e custas, é uma sanção autónoma. Trata-se de condenações com fundamentos diferentes e que tributam atividades diferentes, pois que, enquanto a condenação em custas tributa, em caso de decaimento, a atividade a que o requerente deu causa, a condenação em multa destina- se a penalizar a lide temerária ou a falta de seriedade na lide, pelo que pensamos que é possível uma condenação entre as duas. Para um melhor aprofundamento da questão, vide, o Ac. do TRP, processo nº 2025/03.5PAESP-B.P1, de 23/09/2009. No mesmo sentido, SANTOS, M. Simas, LEAL-HENRIQUES, M., Código de Processo Penal Anotado, ob. cit., pág.559, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, Comentário

do Código de Processo Penal, ob. cit., pág.303-304.

315 Cf. SANTOS, M. Simas, LEAL-HENRIQUES, M., Código de Processo Penal Anotado, 2ª Edição

(Reimpressão – Letra da Lei atualizada), I Vol. (arts. 1.º a 240.º), Editora Rei dos Livros, 2004, págs. 558-559.

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mencionado, podendo, quanto muito, desencadear procedimento disciplinar em relação aos agentes responsáveis316. Por outras palavras, a existência de atrasos na condução do inquérito, da responsabilidade do MP, que vierem a justificar um incidente de aceleração processual, cujo prazo não foi cumprido pode justificar responsabilidade disciplinar, mas não constitui crime de denegação de justiça317.

Cabe-nos analisar qual a sua relevância prática para a celeridade processual. Como ficou dito, a introdução no Código de Processo Penal de um incidente de aceleração processual tinha como único objetivo prevenir a violação dos prazos legais em cumprimento das exigências da eficiência e celeridade318.

A fixação de um mecanismo de controlo e de responsabilização de prazos é inovadora. Afigura-se por isso assíncrona, já que não tem paralelo em nenhum outro lugar no Código, não havendo portanto qualquer outra forma de controlo de prazos nem de responsabilização pelo seu não cumprimento em qualquer uma das fases.

Não obstante, trata-se de um mecanismo estritamente administrativo que não produz qualquer efeito sobre o processo. Assim, o incidente da aceleração processual,

de per si, não pode traduzir-se num meio suficiente e proeminente para remediar a

violação do direito à decisão em prazo razoável do processo. Na verdade, o seu único efeito consiste na competência genérica do PGR ou dos Conselhos da Magistratura319,

316 Cf. SANTOS, M. Simas, LEAL-HENRIQUES, M., Código de Processo Penal Anotado, 2ª Edição

(Reimpressão – Letra da Lei atualizada), I Vol. (art0s 1.º a 240.º), Editora Rei dos Livros, 2004, pág.558.

317 Se o atraso ficar a dever ao juiz de instrução na fase de inquérito, o PGR nada pode fazer. Se o

atraso se ficar a dever ao magistrado do Ministério Público na fase de instrução ou julgamento, o CSM nada pode ordenar, isto devido ao facto de que são dois órgãos completamente autónomos e independentes. CF. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, Comentário do Código de Processo Penal, ob. cit., págs. 298-299.

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A motivação para a criação do incidente da aceleração processual encontra-se no Preâmbulo do Código de Processo Penal Português, ao referir que um dos propósitos que esteve na primeira linha dos trabalhos da reforma, foi a procura de uma maior celeridade e eficiência na administração penal: acrescentando, que a celeridade é também reclamada pela consideração dos interesses do próprio arguido, não devendo levar-se a crédito do acaso o facto de a Constituição, sob influência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, lhe ter conferido o estatuto de um direito autêntico direito fundamental. No mesmo sentido, ver, MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DESTRITO JUDICIAL DO PORTO, Código de Processo Penal, ob. cit., 278-279, GONÇALVES, M. Maia, Código de Processo

Penal Anotado, ob. cit., pág.301, SANTOS, M. Simas, LEAL-HENRIQUES, M., Código de Processo Penal Anotado, pág.553.

319 A intervenção do Conselho Superior da Magistratura ao nível da gestão dos processos se limita ao

estabelecimento de «prioridades no processamento das causas que se encontrem pendentes nos tribunais por período considerado excessivo» – (cf. al. i) do art. 149.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais). A vista disto, o autor JOÃO AVEIRO PEREIRA entende que «esta prorrogativa do Conselho, sendo de carácter administrativo, não pode consubstanciar-se numa ordem aos juízes para despacharem determinado processo. O estabelecimento de prioridades deve fazer-se de uma forma genérica, por espécies de processos, e não concreta e individualizada». Cf. PEREIRA, João Aveiro, A responsabilidade

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em estabelecerem prioridades no processamento de causas pendentes nos tribunais e, em última instância, atribuir responsabilidades ao órgão responsável pelo atraso.

Apresenta uma eficácia diminuída no âmbito processual, tendo em conta que o PGR e os Conselhos são órgãos administrativos (e não judiciais). As suas decisões não têm força vinculativa que teria a decisão de um tribunal de recurso, por exemplo. Ainda que a decisão conclua pela existência de atrasos injustificados, ela não produz efeitos sobre os do processo ou a validade dos atos já praticados e nem ocorre um desvio ou alteração ao normal andamento do processo.

Por outro lado, citando GERMANO MARQUES DA SILVA320, «seria conveniente a obrigatoriedade de decisão expressa sobre a prorrogação dos prazos, em vez de se aguardar pelo incidente de aceleração processual, exigir que a autoridade responsável pela fase respetiva, tivesse de promover junto de outra a prorrogação do prazo, justificando mais tempo, como a partir das alterações introduzidas no Código de 2007 sucede no domínio do segredo da justiça (art. 86.º)».