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Doutrina dos atributos sensoriais e qualidades análogas

2 RECAPITULAÇÃO TEÓRICA

2.1 Delimitação Audiovisual

2.4.4 Fenômeno da Multissensorialidade

2.4.4.2 Doutrina dos atributos sensoriais e qualidades análogas

Segundo Marks, “A doutrina das correspondências entre atributos sensoriais coloca que certas dimensões da experiência sensorial são similares ou mesmo idênticas nestas diferentes modalidades” (MARKS, 1978, p. 50).

Desta maneira, Caznok nos diz que as correspondências entre os sentidos não seriam referentes às propriedades dos objetos que são externos a nós, mas sim um atributo do aparelho perceptivo. Os parâmetros comuns, de acordo com esta tendência, poderiam ser resumidos em extensão, intensidade, claridade e qualidade (CAZNOK, 2003, p. 116).

De acordo com este esquema, todas as sensações possuem algum grau de intensidade, do fraco através do moderado ao forte; possui alguma qualidade, que seja vermelho ou verde, azul ou amarelo, altura definida alta ou baixa, salgado, doce, azedo ou amargo, pungente, perfumado ou rançoso, macio ou duro, quente ou frio; possui algum espaço de tempo, do curto ao longo. (MARKS, 1978, p. 51)

a-) Extensão ou tamanho:

Seria o correspondente a todos os sentidos de possuírem a possibilidade de distinguir o tamanho do objeto – evento- através de sua extensão espacial, semelhante ao que ocorre com a visão e o tato, que percorrem e distinguem o tamanho ou extensão do objeto de maneira muito semelhante.

Com o sonoro29, o autor interpreta o conceito de extensão espacial com a sensação de largura (o qual denomina de volume aparente) que um som pode apresentar em função da quantidade de freqüências.

Existe, por exemplo, uma propriedade dos sons que é usualmente chamada de volume aparente, e que não é a mesma coisa que amplitude. Sons diferem não apenas em suas intensidades subjetivas, mas também com relação ao grau em que parecem preencher o espaço. Sons fortes e graves aparecem como mais massivos e parecem preencher um volume mais largo, enquanto sons fracos e agudos aparecem como mais finos, pequenos e parecem preencher apenas um pequeno volume. (MARKS, 1978, p. 53)

A idéia de extensão ou tamanho conforme Marks refere-se à quantidade de espaço ocupada por um objeto. Concordamos em pensar este atributo como sendo pertencente às percepções visuais e táteis na maneira como distinguimos diferentes tamanhos de um objeto com relação ao comprimento ou a largura. No entanto, não concordamos com a interpretação que o autor propõe com relação a este ser também um atributo do som.

De acordo com sua interpretação, o som possuiria uma propriedade que corresponderia a uma espécie de preenchimento de um volume, que denominou de volume aparente. Isso ocorreria principalmente em função da quantidade de freqüências e harmônicos que um som possuiria, e que o caracterizaria como mais “fino” ou mais “grosso”.

Essa característica do sonoro se assemelha muito às propriedades que Schaeffer denominou de calibre. Esta propriedade pode ser aplicada, segundo Chion, ao campo das

29 Pode-se cogitar que o parâmetro “extensão ou tamanho” com relação ao sonoro pode remeter,

devido ao seu uso comum, também a idéia de duração de um evento sonoro. No entanto esta não é a interpretação utilizada por Marks. Não entraremos em detalhes com relação a essa perspectiva, pois no momento nos limitamos apenas a apresentar a posição do autor com relação aos parâmetros descritos.

alturas, das intensidades e da duração e corresponde a quanto o som ocupa dentro deste campo (CHION, 1993, p. 108).

Por exemplo, com relação ao campo das alturas, o ruído branco ocupa toda a tessitura, ou seja, possui todas as freqüências em igual valor de intensidade. Isto corresponde ao valor máximo em relação ao calibre neste campo. Ao contrário, um som senoidal possui apenas uma freqüência e está no pólo oposto. Entre estes, há uma gradação, que não é perceptível de maneira escalonar, mas apenas como um valor.

Desta forma, não consideramos este um atributo comum à percepção audiovisual sob o viés de nossa pesquisa por basicamente dois motivos. As características de calibre dizem respeito à percepção sonora. Podem remeter a uma percepção visual em função de uma analogia, uma semelhança ou pensamento metafórico que ocorre na percepção de uma estrutura sonora e de uma estrutura visual.

Ou seja, há uma propriedade que permite a distinção entre um pequeno e um grande, um largo e um fino, objeto visual - e que pode até ser medido de forma escalonar (metros, centímetros, por exemplo) – que é diferente daquela propriedade sonora, pois é de natureza distinta tanto em sua constituição física (“quantidade de freqüências sonoras”) quanto em sua percepção que não é escalonar e não possui medidas fixas. Pode-se até cogitar que, em função desta não possibilidade de se distinguir claramente medidas de

calibre, ocorra a necessidade da utilização de uma analogia visual para facilitar a apreensão desta característica.

Outra questão refere-se à sobreposição dos eventos sonoros e visuais. Imaginemos a título de exemplo, que houvesse a propriedade extensão como um atributo comum aos domínios sonoros e visuais. Haveria, portanto, um “som largo” e um “som fino”, um “objeto visual largo” e um “fino”.

Como observamos a respeito do contrato audiovisual as características tanto do sonoro quanto do visual se alteram quando sobrepostos, pois se influenciam mutuamente e emprestam suas características entre si. Desta forma, quais seriam as características que se destacariam ao se sobrepor um “objeto visual fino” a um “som largo”, e vice-versa, e também dentro das várias possibilidades de cruzamento entre as terminologias advindas do termo “extensão”? O som seria percebido como mais “fino”? Ou o objeto visual como mais “grosso”? Este objeto sonoro mais “fino” não seria mais “fino” porque haveria um outro objeto sonoro mais “largo”?

Entre as possíveis respostas estariam: Um som grave (no qual se percebem várias freqüências) se relaciona melhor a um objeto visual grande e largo; Um som agudo a um objeto visual fino e pequeno; ou mesmo, um som grave relacionado a um objeto pequeno possuiria uma característica de anedota, de lirismo, de contradição, pois esta não é uma condição comum na natureza visto que normalmente objetos pequenos emitem freqüências agudas; entre outras.

No entanto, estas questões sugerem as mesmas problemáticas da sobreposição de cores e freqüências sonoras. São propriedades advindas de uma percepção específica cujas relações ocorrem por meio de algum tipo de sinestesia, metáfora ou analogia, muito em função de valores culturais específicos ou da lembrança de que na maior parte dos casos um objeto cujo tamanho é pequeno emite uma freqüência aguda.

Desta forma, torna-se difícil pensar uma generalização da idéia de extensão como um atributo comum aos domínios sonoro e visual principalmente se considerarmos eventos visuais e sonoros fixados. Neste caso, as possíveis relações que ocorreriam entre estas propriedades específicas seriam determinadas em função apenas do contexto no qual elas estão inseridas, e poderia ser qualquer relação, pois o que emergiria e se destacaria como atributo audiovisual seriam outras propriedades, tais como aimantation spaciale,

b-) Intensidade:

Corresponde a uma gradação que está presente em todos os sentidos de distinguirem sensações fracas, médias e fortes de alguma maneira. “A subjetiva força das sensações é uma das mais salientes dimensões. Luzes, sons, toques, cheiros, gostos, dores – tudo isto pode percorrer a gama do suave ao forte” (MARKS, 1978, p. 53).

A intensidade apresenta uma problemática muito semelhante à da extensão com relação à sobreposição dos eventos sonoros e visuais. Há tendências de se relacionar “intensidades sonoras fracas” a “intensidades de luminosidade fracas”, “sons fortes” a “luminosidades fortes”, e assim por diante. Mas, novamente, um “som fraco” sobreposto a uma luz forte não faria com que percebêssemos este som como mais forte, ou ao contrário, esta luminosidade como mais fraca? Ou mesmo, estaríamos errados se estabelecêssemos um contexto audiovisual fixado sobrepondo “sons fortes” a “luminosidades fracas”?

Como no tópico anterior, é o contexto que determinaria esta relação. Qualquer intensidade sonora poderia ser sobreposta a qualquer intensidade luminosa. O que entraria em jogo neste caso, como também no tópico anterior, seriam as mesmas propriedades de

aimantation spaciale e syncrèse.

c-) Claridade:

Marks atribuiu a idéia de claridade como uma qualidade sensória comum a diversos sentidos a Hornbostel. “De acordo com Hornbostel, a claridade de luzes, toques, sons, odores não são apenas análogos entre si, mas podem ser iguais ou idênticos” (MARKS, 1978, p. 56).

Através de experimentos com pessoas onde combinaram cores, sons de altura definida e odores, nos quais buscavam verificar as relações de claridade entre essas

sensações de tal forma que uma cor associada a um som de altura definida seria associada, segundo os participantes da pesquisa, a um odor específico da mesma maneira que este odor seria associado aquele mesmo som de altura definida. Isto levaria a concluir que estas três sensações possuiriam a mesma qualidade de claridade. Em seguida, reproduziremos trechos desta pesquisa de Hornbostel apresentada por Marks.

Primeiro, seus sujeitos tentaram combinar a claridade de uma superfície cinza à claridade de um odor – este passo resultou em uma equação entre uma mistura de 40% branco, 60% preto por um lado e benzol30 de outro. Segundo, os sujeitos tentaram relacionar a claridade de uma freqüência sonora aquela do mesmo odor – isto resultou em uma equação entre uma freqüência de 220-Hz e benzol. A relação final consistiu de uma superfície cinza e freqüência, e isto produziu como valores – uma equação entre 41% branco, 59% preto e uma freqüência de 220 hz – que foi quase idêntica aquela da primeira parte. (MARKS, 1978, p. 56)

No entanto, há outras variáveis que também foram observadas. “Um som complexo, composto de várias freqüências, parecem ser menos claras do que uma freqüência pura com a mesma nota fundamental e amplitude” (MARKS, 1978, p. 59). Da mesma forma, foi verificado que a claridade é correlacionada tanto ao aumento da freqüência quanto ao aumento da amplitude ao perguntar a uma dúzia de pessoas para julgar a claridade de freqüências puras através de variações da freqüência da nota e de sua amplitude (MARKS, 1978, p. 59).

Novamente, o que questionamos na utilização deste atributo como pertencente aos domínios sonoro e visual assim como o coloca Marks, é a utilização de uma espécie de metáfora que determina esta relação e também de não considerar a influência que ocorre da sobreposição destes domínios.

30 Benzol corresponde ao benzeno impuro utilizado industrialmente. O benzeno é um líquido

Com relação ao domínio visual, percebemos, por exemplo, cores mais clara ou mais escura e podemos controlar esta propriedade através da saturação e do brilho destas cores.

No sonoro, é comum utilizarmos expressões nas quais consideramos determinado som como sendo mais claro que outro, mas esta é apenas uma forma de expressão. Uma metáfora retirada da percepção visual e difundida culturalmente para facilitar a descrição deste som.

Desta forma o exemplo do experimento de Hornbostel que relaciona a claridade de uma cor a um som nos remete aos mesmos questionamentos da relação entre cores e sons de atura definida.

Além disso, como nas outras propriedades apresentadas, esta relação não prevê a sobreposição de um “som claro” a uma “cor clara” entre outros cruzamentos. Não questiona a influência do contrato audiovisual que o contexto impõe à percepção deste atributo, no qual, por exemplo, poderíamos perceber um som como mais claro se este estiver sobreposto a uma cor clara, ou então outro tipo de influência, não tão óbvia, que poderia haver.

d-) Qualidade:

A sensação de qualidade é a dimensão que parecem demonstrar as menores similaridades entre as modalidades e se assemelha mais às qualidades secundárias apresentadas acima na “Doutrina das informações equivalentes”. A idéia central da qualidade como sensação comum a vários sentidos, é a capacidade de todos os sentidos possuírem a idéia de qualidade e de que esta pode ser apresentada em algum tipo de gama, como a gamas das cores para o visual e a gama dos sons de altura definida para o sonoro.

Estas gamas podem ser mais facilmente discretizadas e escalonadas facilitando o discernimento destas escalas como as gamas das cores para o visual – azul/ vermelho/ amarelo/ etc. - e a gama dos sons de altura definida para o sonoro – dó/ ré/ mi/ etc. -, mas também se apresentarem como valores que não permitem tal discretização, ou então que não é possível perceber a distinção entre os eventos desta discretização tal como é o caso da percepção de intensidade do sonoro – forte/ fraco – e da claridade de uma cor – mais clara/ mais escura.

Se for pensada como relação entre qualidades entre os diferentes sentidos, como por exemplo, relacionar sons a cores, esta propriedade se assemelhará mais a idéia de sinestesia apresentada acima, e que apresenta uma grande quantidade de relações diferentes entre essas qualidades como pode ser observado nas relações apresentadas nos exemplos do tópico sinestesia e que apresentaremos mais um diferente na seqüência desta apresentação.

Em um teste de Simpson, Quinn e Ausubel, destacado por Marks, os autores tentaram determinar, ou pelo menos verificar se há essa possibilidade, a relação de cor e altura do som (restringidas a freqüências puras, senóides).

[...] de 125 a 12.000 Hz, todas tocadas a intensidades entre 40 e 50 db. A tarefa das crianças era simplesmente nomear a cor31 que parece ‘estar com’ cada som [...] As cores que foram nomeadas mostram alguma relação regular da freqüência32. Violeta e azul eram predominantemente associadas com freqüências graves, laranja e vermelho com freqüências intermediárias, verde e amarelo com freqüências agudas. (MARKS, 1978, p. 67)

Se observarmos sob o viés da relação audiovisual, no entanto, notamos que a qualidade consiste de um atributo abstrato, uma idéia, que pode ser encontrada e aplicada aos diversos sentidos e que não corresponde à observação da relação entre o sonoro e o

31 Tradução livre de hue

visual, mas sim da forma como cada domínio em separado articula em gamas determinadas atributos que emergem especificamente a seus sentidos.

As relações de qualidade entre o sonoro e o visual que normalmente se estabelecem são comparações entre estas gamas através de algum tipo de semelhança, metáfora, ou mesmo de algum tipo de experimento no qual a maioria dos participantes relacionou uma possível qualidade – entre tantas outras – de um domínio com a qualidade de outro domínio.

Notamos esta tendência mais acima também em outros parâmetros que não foram considerados como qualidades pelo autor tais como a extensão, a intensidade e a claridade e apresentam problemáticas semelhantes sob o viés que estamos tomando em nossa pesquisa e em nosso trabalho prático.

Há o estabelecimento de um atributo comum que corresponde mais a uma idéia abstrata – às vezes simplificada ou mal interpretada - que pode ser encontrada e aplicada aos diversos sentidos não considerando a influência que ocorre da sobreposição dos eventos sonoros e visuais e que, na maioria das vezes, nos faz perceber estas qualidades que emergem aos sentidos em específico de maneira diferente se estes não estivessem sobrepostos.

Desta forma, dificilmente poderíamos propor algo como uma qualidade audiovisual, na qual determinaríamos objetos audiovisuais bem definidos e estabelecer uma espécie de gama ou escala a esta qualidade. O que poderia ser proposto é pensar em momentos audiovisuais nos quais ocorrem determinadas e variadas relações de qualidades entre o sonoro e o visual regida consideravelmente pelos fatores de syncrèse e aimatation