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AS AUTONOMI AS POSSÍ VEI S

4.1 ECLOSÃO DA RAIVA

Em agost o de 1888, acont ece um f at o, nos ar r edor es de Jacobi na, cuj a l ei t ur a de uma das f or mas de aut onomi a sal t a aos ol hos.

O Capi t ão Fr ancel i no Fer r ei r a de Ol i vei r a encont r a, em um dos cer cados de sua Fazenda Medei r os, um gar r ot e. Pr i mei r o, t ent a per suadi r o ani mal a sai r , não consegue. Resol ve i r at é a est r ada pr óxi ma e pedi r aj uda a um t r anseunt e, de nome Gui l her mi no, par a execut ar o t r abal ho. O companhei r o de Gui l her mi no, João Mar col i no da Si l va, ao chegar a uma el evação

da est r ada, avi st ou o cer cado e “ conheci o q’ o gar r ot e er á da sua ent r ega, t eve de vol t ar par a t omar pr oci denci as”3.

João Mar col i no, conheci do como João de Mar co, ao chegar ao cer cado, encont r a o Capi t ão Fr ancel i no bat endo no gar r ot e com um pau. El e apr esent a- se par a r et i r ar o gar r ot e, di zendo que o ani mal er a “ de sua ent r ega” e pede par a o Capi t ão não bat er mai s no bi cho. Responde o capi t ão: “ Dar ei n’ el l e at é por ci ma de V. ”4.

Nesse moment o, os depoi ment os di f er em mui t o, o Capi t ão, em sua Car t a de Denúnci a, di z que João de Mar co: “ por ompeo em i nj ur i as cont r a o di t o quei xoso, e ent r e el l as deo- l he as api t hdões de – pat i f e, bandal ho”5, of ensas negadas por João de

Mar co.

Em sua car t a, apr esent ando seu Aut o de Def esa, ai nda escl ar eceu mai s “ di zendo que el l e [ o capi t ão] não er á capaz par a t ant o que se est ava f i ado na sua cor br anca, que mai s br anco er á papel ”6. At é est e pont o, nenhuma das nar r at i vas do

caso encont r a di scor dânci a ou pont o de di ver gênci a, a não ser a Car t a de Denunci a, j á ci t ada aci ma.

3 Essa nar r ação é um r esumo f ei t o a par t i r da l ei t ur a das peças do

pr ocesso cr i me 33, 1158, 11. Ar qui vo Públ i co do Est ado da Bahi a ( APEBA) , Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158, document o 11.

4 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

document o 11.

5 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

document o 11. Car t a de Denúnci a, p. 2.

6 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

document o 11. Aut o de Def esa Escr i t a de João Mar col l i no, p. 5 passi m.

Na cont i nuação dos acont eci ment os, apar ecer am as mai or es di ver gênci as, t ant o dos envol vi dos di r et ament e como das t est emunhas.

Al gumas t est emunhas de acusação, Benedi ct o José de Ol i vei r a e José Cust odi o Pi nhei r o, j ur ar am t er ouvi do o quei xado, João Mar col l i no,

[ . . . ] chamar o quei xozo br anqui nho de mer da, br anco é papel que se l i mpa o cú com el l e, bor r a ci r ol l a, mas não ouvi o o quei xado chamar o quei xozo pat i f e nem bandal ho.7

Essas t est emunhas f or am decl ar adas, pel o pr ocur ador do quei xado, t odas dependent es do quei xozo, poi s er am “ al ugados” em sua pr opr i edade ou t r abal havam par a sua sogr a.

O Capi t ão i nsi st e, pr esent e nas i nqui r i ções às t est emunhas, em per gunt ar “ se o quei xado não apei ou do caval l o e puchou por uma f aca?” Fat o r espondi do posi t i vament e pel as t est emunhas de acusação, mas nas i nqui r i ções do pr ocur ador de João Mar col l i no, o Al f er es Pedr o da Si l va Car dozo, f i cou escl ar eci do por Gui l her mi no José “ que o quei xado apeou- se do caval l o e buscou por uma f aca par a f azer ci gar r o. ”8

Uma pequena pausa par a r el embr ar o mot e dest e t r abal ho: a aut onomi a. Essas pessoas se di sser am “ al ugados” , ou sej a,

7 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

document o 11. p. 15 e 15v; p. 16v e 17.

8 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

t r abal havam par a o Capi t ão ou sua sogr a, mas sua consci ênci a t ambém est ava a ser vi ço dos i nt er esses do empr egador , poi s r esponder am às i nqui r i ções de f or ma a i ncr i mi nar o r éu. Est avam t ambém al ugadas sua aut onomi a e sol i dar i edade. E as f or mas de i nser ção no mer cado ai nda per manecem as mesma, decor r i do poucos meses após a Abol i ção.

A est r at égi a da def esa f oi de al egar a não decl ar ação das of ensas de “ bandal ho, pat i pe, br anqui nho de mer da e bor r a ci r oul l as” , t ent ando t ambém cont ext ual i zar o “ mai s br anco é papel ” , por ém “ o pr i mei r o suppl ent e do Jui z Muni ci pal em exer ci ci o o ci dadão José Ant oni o Val oi s Cout i nho” , condena José Mar col l i no “ [ . . . ] em um mez de pr i zão, e mul t a cor r espondent e a met ade do t empo e nas cust as” .9

As al egações de apel ação e os debat es ant er i or es t r anscor r er am em t or no das decl ar ações de “ br anqui nho de mer da” e do “ mai s br anco é papel que se l i mpa [ . . . ] com el e” . O pr ocur ador do quei xado, al f er es Pedr o da Si l va Car dozo, nas suas al egações de apel ação, não consi der ou est as expr essões como of ensas, poi s el as não podem:

[ . . . ] expor ao odi o ou di spr ezo publ i co; t ambem é cr i me de i nj ur i a, o at t r i bui r a al guem vagament e, i st o, e sem f act os especi f i cados, cr i me ou vi ci os, bom assi m t udo que possa pr ej udi car a r eput ação al hei a, e at é o di r i gi r a out r em pal avr as, gest os

9 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

ou si gnaes r eput ados i nsul t ant es na opi ni ão publ i ca.10

O pr ocesso ao qual me est ou r ef er i ndo, deu ent r ada em agost o de 1888, por t ant o al guns meses após a Lei de 13 de Mai o, l i ber t ando os escr avos em t odo o paí s, por ém nas pesqui sas f or am encont r adas mui t as pessoas envol vi das em out r as ocasi ões, gar ant i ndo ou cer ceando a aut onomi a dos escr avi zados.

Uma dessas pessoas envol vi das que apar ece em out r os document os, f oi o Al f er es Pedr o da Si l va Car dozo. El e apar eceu nos r egi st r o de car t as de l i ber dade, l i ber t ando doi s de seus escr avi zados, El i za e Pur eza, em 8 de j anei r o de 1887, e j ust i f i cando seu at o “ em nome de Deus, par a f i car qui t es com a Thezour ar i a de Fazenda”11.

As cont r adi ções dos si mpát i cos às causas emanci paci oni st as est ão pr esent es no Al f er es Pedr o da Si l va, ou sej a, def endi a os af r odescendent es per ant e a j ust i ça, mas mant eve pessoas escr avi zadas em sua casa, at é os debat es abol i ci oni st as f i car em ext r emados e a Lei de 13 de mai o j á se t or nar um f at o emi nent e.

O mesmo Al f er es apr esent ou a car t a de l i ber dade de Jul i ana, passada em 20 de j anei r o de 1863. Foi l ocal i zado, em out r os pr ocessos, como def ensor de out r os acusados pobr es e t ambém doou, em set e de j unho de 1883, a quant i a de Rs.

10 APEBA, Seção Judi ci ár i o, Pr ocessos Cr i me, Est ant e 33, Cai xa 1158,

document o 11. Al egações de Apel ação, p. 27 passi m.

11 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 43, p.

90$000, r ef er ent e às cust as de pr ocessos nos quai s havi a f unci onado como def ensor públ i co par a o Fundo de Emanci pação12.

Também f unci onou como pr ocur ador de Anna Gui l her mi na de Mi r anda, at uando no pr ocesso de of ensas f í si cas pr at i cadas cont r a sua escr ava Ur sul a, em pr ocesso no ano de 188313.

Fez t udo i sso t al vez par a compensar os er r os da j uvent ude ou o r emor so quando, em busca do l ucr o f áci l obt i do nas negoci ações de car ne humana, compr ou no di a 4 de out ubr o de 1858, uma meni na de nome Ser api ana, do sr . Rodosi no Pi nt o da Fonceca, por Rs. 590$000 e a vendeu em 27 de dezembr o do mesmo ano por Rs. 1. 000$00014. Ou er a apenas uma t r ansação comer ci al

e el e especi al i zar a- se em def ender negr os, pobr es e escr avi zados ou er a mui t o r el i gi oso.

Depoi s di sso t udo, pel o menos uma f or t e si mpat i a por essas pessoas t enha nasci do nel e, achando, por t ant o, nor mal João Mar col i no pagodear do Capi t ão Fr ancel i no, al cunhando- o de “ br anqui nho de . . . ” . Tal vez, t ambém, f ossem comuns na ci dade essas expr essões, por t ant o passar i am desper cebi das pel o j ui z. Ou, ai nda, o Capi t ão er a de um gr upo pol í t i co cont r ár i o ao pr ocur ador , por t ant o podi a ser chamado de “ pat i f e e bor r a ci r oul l as” .

12 APEBA, Seção: Col oni al e pr ovi nci al , Sér i e: Gover no, Câmar a de

Jacobi na, Maço: 1330.

13 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 40, p.

38v.

14 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 25a, p.

O supl ent e de Jui z descar t ou as of ensas de “ bandal ho, pat i f e e bor r a ci r oul l as” , mas o mai or peso par a seu ver edi ct o f oi o acusado gabar - se, “ per ant e pessoas no mer cado da f ei r a da Fr eguezi a do Ri achão, dest e t er mo” , de suas decl ar ações na pr i mei r a audi ênci a do Juí zo de Jacobi na.

O j ui z sent i u- se of endi do pel a descr i ção det al hada dos f at os ocor r i dos, f ei t a por João Mar col l i no, com t odas as pal avr as pr of er i das e t r anscr i t as no pr ocesso, al ém di sso el e t ambém, pr ovavel ment e, sent i a- se br anco como papel .

O Jui z em exer cí ci o, nest e caso, f oi o ver eador mai s vot ado, sua r enda pr esumi da na l i st a de vot ant es de 1878 er a de 800$000 r éi s o dobr o da mai or i a dos out r os el egí vei s, cr i ador , assi m como o quei xoso, Capi t ão Fr ancel i no Fer r ei r a de Ol i vei r a. I st o deve t er pesado, t ambém, na hor a do j ul gament o.

Por t ant o as r el ações ent r e os gr upos ét ni cos/ r aci ai s/ cr omát i cos na r egi ão de Jacobi na não er am t ão

ami st osas como se pr essupunha e os âni mos est avam aci r r ados naquel e moment o, l ogo após a Abol i ção.

Foi a Abol i ção a desencadeador a dessas desar moni as?

A meu ver , a r espost a é negat i va. Havi am coi sas mai s pr of undas no r el aci onament o ent r e os gr upos popul aci onai s, ocasi onando t ai s desavenças. Tal vez a Abol i ção t enha apenas dado cor agem par a João Mar col i no expr essar - se, poi s os sent i ment os de r ai va cont r a os br ancos, naquel e moment o de expl osão, f or am sol t os e ecoar am daquel e cer cado par a os t r i bunai s.

Não consegui l ocal i zar mai s nenhum vest í gi o de João Mar col i no, nem mesmo no pr ocesso apar eceu sua cer t i dão de pr i são e sol t ur a, por ém est a sua at i t ude de enf ezament o e denúnci a f i cou nos pr ocessos do t r i bunal . Tal vez t enha- l he r endi do um mês de pr i são e o di spêndi o de suas economi as, mas deve t er val i do a pena cont ar a hi st ór i a na Fei r a, j unt o de seus companhei r os de bar e caval gada.

No documento OS NEGROS EM JACOBINA (BAHIA) NO SÉCULO XIX (páginas 179-186)