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EXPERIÊNCIA COMERCIAL

No documento OS NEGROS EM JACOBINA (BAHIA) NO SÉCULO XIX (páginas 186-194)

AS AUTONOMI AS POSSÍ VEI S

4.2 EXPERIÊNCIA COMERCIAL

O cost ume de mul her es e seus escr avi zados negoci ar em gêner os al i ment í ci os é bast ant e ant i go nas agl omer ações ur banas do Br asi l col oni al e i mper i al . Par a Mar i a Odi l a Lei t e da Si l va Di as, est a at i vi dade er a exer ci da pel as mul her es, poi s “ r ocei r os, qui t andei r os, vendi l hões er am at r i bui ções com conot ações pej or at i vas, de menospr ezo soci al ”15.

Em Jacobi na, esse padr ão per manece. Gr upos especí f i cos de comuni dades negr as, f r eqüent ando a f ei r a, t ant o como vendedor es como consumi dor es, chama a at enção ai nda hoj e, por sua f or t e pr esença e cost umes di f er ent es, t ant o na chegada à

15 DI AS, Mar i a Odi l a Lei t e da Si l va. Quot i di ano e poder em São Paul o

no sécul o XI X. 2. ed. ver . , São Paul o: Br asi l i ense, 1995. p. 52- 53; ver t ambém FI GUEI REDO, Luci ano. O avesso da memór i a: cot i di ano e t r abal ho da mul her em Mi nas Ger ai s no sécul o XVI I I . Ri o de Janei r o: José Ol ympi o; Br así l i a: EDUNB, 1993. p. 34 passi m.

f ei r a, como na f or ma de comer ci al i zação, assi m como na est r ut ur a e or gani zação da pr odução, comer ci al i zação e pr odut os especí f i cos of er eci dos aos compr ador es da r egi ão.16

A r egi ão par ece est ar acost umada com mul her es, vendendo mi udezas, al i ment os pr ont os e ger enci ando negóci os como t ambém com comer ci ant es af r odescendent es nest as f unções, pel o menos, desde o sécul o XI X. Na document ação a segui r anal i sada, f i cou expr essa essa f or t e pr esença.

Jaci nt a I zabel do Espí r i t o Sanct o, em 2 de agost o de 1847, est ava na casa de José Fer nandes, comer ci al i zando sua canj i ca. Manoel José Fer nandes of er eceu o pr odut o a Vi t or i no Al ves dos Rei s, e, pegando a canj i ca, não t i nha como comê- l a, ent ão pega um pavi o. Jaci nt a I zabel r ecl amou coment ando o cust o, t r ês vi nt éns pel o pedaço. Vi t or i no decl ar ou pagar quat r o. 17

Ao saí r em, houve uma pequena di scussão, a vendedor a t i r a o chi nel o e at i r a na di r eção de Vi t or i no, est e se desvi a e ar r emet e cont r a Jaci nt a com uma f aca. O r esul t ado f oi a mor t e de Jaci nt a.

16 O gr upo de comer ci ant es de Coquei r os f oi t ema de uma pesqui sa de

I ni ci ação Ci ent í f i ca de Már ci a Adr i ana Al ves dos Sant os, ex- al una do cur so de Hi st ór i a e ex- bol si st a PI CI M/ UNEB no pr oj et o “ A ci dade como espaço da di ver si dade cul t ur al ” e ger ou uma monogr af i a de f i nal de cur so no ano de 1999.

17 r el at o baseado no pr ocesso de Revi st a Cr i me, r éu: Vi t or i no Al ves

dos Rei s. I n: APEBA, Seção: Judi ci ár i o, sér i e: Cr i mes, r ef . 18/ 621/ 1.

Não f oi possí vel saber o f i nal da hi st ór i a, poi s o pr ocesso est á i ncompl et o, mas o apel o comuni t ár i o envol vendo par es nest e pequeno comér ci o f i cou bast ant e expl í ci t o. Das ci nco t est emunhas, duas f or am qual i f i cadas como cr i oul os e t r ês como par dos. Doi s pr esenci ar am o f at os, os out r os ouvi r am di zer por t er cei r os pr esent es.

Mar i a Odi l a Lei t e da Si l va Di as, assi m f al ou desse pequeno comér ci o, par a o cont ext o de São Paul o:

No comér ci o ambul ant e coexi st i am escr avos de ganho, al ugados ou que se al t er navam no ser vi ço domést i co de suas pr opr i et ár i as, com f or r os e br ancos pobr es, r ocei r os, cai pi r as, que gr avi t avam em t or no das casi nhas e vi as de acesso às pont es da ci dade [ . . . ] a t r oca em vi nt éns, t omando f ei ções que t r ancendi am o ní vel pur ament e econômi co par a se r evest i r do sent i do cer i moni al de um r i t ual comuni t ár i o.18

No Li vr o de Not as númer o 22, pági na 11, r egi st r o do di a 27 de out ubr o de 1852, escr i t o pel o Tabel i ão Lui z Gonzaga da Maya, do acer vo guar dado no Ar qui vo Públ i co do Est ado da Bahi a, seção Judi ci ár i a, encont r ei o r egi st r o de uma doação mui t o est i mul ant e, par a a pesqui sa, t r azendo uma mul her ger enci ando uma casa de negóci o e t ambém de um negr o t r abal hador nest e set or .

18 DI AS, Mar i a Odi l a Lei t e da Si l va. Quot i di ano e poder . . . , op. ci t . ,

Nel e, o par do Rami r o, escr avo da f al eci da Roza Cândi da d´ Ant as Ful genci o, r ecebi do em l egí t i ma pel o f i l ho da def unt a, José Bent o d´ Ant as Coel ho, conqui st a sua al f or r i a, at r avés dessa doação com a segui nt e j ust i f i cat i va:

[ . . . ] f oi o par do Rami r o a quem a Mãi do Suppl i cant e t i nha em gr ande est i mação negoci ando em l oj a de por t a aber t a em a caza a pr aça da Fei r a j á hoj e pr opr i edade do Suppl i cant e[ . . . ]19

A conqui st a da l i ber dade, ent ão, t em como mai or j ust i f i cat i va as apt i dões do ex- escr avi zado no comér ci o de por t a aber t a de pr opr i edade de sua ant i ga dona em um pont o comer ci al ment e i mpor t ant í ssi mo e pr ovavel ment e mui t o l ucr at i vo.

Tal vez as at i vi dades do est abel eci ment o est i vessem a car go do pr ópr i o Rami r o, encar r egado de t odas as at i vi dades, por t ant o com uma aut onomi a r el at i vament e gr ande. I sso t or nava- o i ndi spensável par a o her dei r o da casa comer ci al . Por ém f or am i mpost as condi ções par a a l i ber t ação, dest acando mai s ai nda o t i no comer ci al de Rami r o:

[ . . . ] a cont i nuar a mor ar com o suppl i cant e, negoci ando como at é agor a na pr opr i a caza em que est á, e que ahy o suppl i cant e o t omar á por sóci o no negoci o, ent r ando el l e nos l ucr os e pr ej ui zos como mi ei r o, e quando por mor t e do l i ber t o que não t em

19 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 22, p.

nenhum her dei r o, f i car par a o suppl i cant e os bens que ent ão possui r como em paga da al f or r i a.20

A soci edade of er eci da par ece um pr êmi o pel os bons ser vi ços pr est ados por Rami r o dur ant e a gest ão de Roza Cândi da na l oj a da pr aça da Fei r a, por ém a cl áusul a col ocando o pr ópr i o doador como benef i ci ár i o no caso de mor t e do ex- escr avi zado par eceu est r anha, ou sej a, Rami r o t r abal har i a, acumul ar i a bens, mas com sua mor t e el es vol t ar i am a seu ant i go senhor .

Essas cl áusul as nos r emet em ao car át er de cont r at o da escr avi dão ext r apol ando at é seus l i mi t es. Al ém di sso, o pat er nal i smo f i ca expl i ci t ado nas condi ções post er i or es da l i ber dade. O ex- escr avo devi a a obr i gação de t r abal har com o ex- senhor e i nst i t uí - l o como her dei r o, em compensação, o ex- senhor dever i a pr ot eger o ex- escr avo.

A cl áusul a, por ém, f oi quest i onada pel o cur ador do l i ber t ando e r evi st a no pr ópr i o r egi st r o ant es das assi nat ur as e do at o consumado, f i cando Rami r o senhor de seus bens e podendo di spor del es em t est ament o a quem bem ent endesse.

O r egi st r o t ambém dei xou expr essa a aut onomi a conqui st ada, no t empo de escr avi zado, por Rami r o que consegui u acumul ar bens e at é const r ui r uma casa de mor ada na ent r ada da Vi l a onde mor ava, nos t empos de cat i vo:

20 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 22, p.

Mas por que no t empo do cat i vei r o o di t o Doado t i nha f ei t o huma mor ada de caza na ent r ada d’ est a Vi l l a, que chama do seo domi ni o, mas que na f ór ma da Lei he pr opr i edade do Cazal do Pai do Doadôr , decl ar ou est e que vi st o como o l i ber t o f i cava i sent o da ul t i ma condi ção el l e seo pr i mei r o senhor l he não t omava a caza, mas decl ar ava que est a f azi a d’ esde j á par t e da Soci edade com o doadôr sem que el l e doado l i ber t o podesse por si soment e em t empo al gum vender a di t a caza, por que só poder i a f azer se o doador l i ber t ant e consent i sse na venda assi gnando ambos na Escr i pt ur a.21

Apesar da exi st ênci a l egal do pecúl i o do escr avi zado só t er si do f or mal i zada com a l ei de set embr o de 1871, o r egi st r o expõe est e uso cost umei r o de acumul ação de bens como r ot i nei r o na r egi ão, apesar de t er si do cont est ado pel o pr i mei r o dono do ex- escr avi zado. Por ém, no segundo moment o, expl i ci t a o car át er pat er nal i st a nest a r el ação, o ex- senhor de Rami r o e pai do at ual senhor José Bent o, como dádi va, abr e mão de um bem em f avor de seus pr ot egi dos, cumpr i ndo o papel de chef e f ami l i ar .

O document o dei xa a ent ender t ambém uma cer t a i ndependênci a r el at i va par a o comér ci o, de que o escr avo Rami r o gozava. Aut onomi a per di da no at o da al f or r i a com uma cl áusul a de pr oi bi ção de negóci os f or a da soci edade. Al ém

21 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 22, p.

di sso, a casa const r uí da com os l ucr os dessas at i vi dades f i cava agor a par a a soci edade. Como bom negoci ador Rami r o sabi a abr i r mão de cer t os det al hes par a conqui st a de um bem mai or .

A doação da l i ber dade, ao i nvés de r est i t ui r , par ece t er t omado a l i ber dade de Rami r o obr i gado a i r mor ar com seu novo sóci o e ex- senhor , per dendo par t e t ambém de seus pecúl i os, poi s sua pequena pr opr i edade passou a ser da soci edade. Mas o pr eço par eceu r azoável , poi s el e passou a comer ci al i zar em uma casa onde agor a er a sóci o e poder i a obt er e acumul ar novos l ucr os, t al vez super i or es aos auf er i dos com suas at i vi dades f or a da l oj a. I st o t ambém t r azi a r esponsabi l i dades novas, poi s os event uai s pr ej uí zos t ambém ser i am di vi di dos.

A est r at égi a de José Bent o D’ Ant as Coel ho f oi de “ pr emi ar ” Rami r o com sua l i ber dade, r ecompensando sua f i del i dade à mãe do doador . Tor nou- o devedor dest e gr ande passo na vi da do ex- escr avi zado.

O ex- senhor t ent ou conqui st ar a conf i ança de Rami r o of er ecendo soci edade na casa de negóci os. I sso i mpl i cava, t ambém, l ucr os par a José Bent o, mas el e quer i a gar ant i as da f i del i dade exi gi ndo a vi nda de Rami r o par a per t o de seus ol hos, mor ando na mesma casa, e i mpedi ndo os negóci os aut ônomos ef et uados f or a da soci edade.

Nor mal ment e, acont eci a o i nver so: o escr avi zado saí a das vi st as de seu senhor , consegui a di nhei r o suf i ci ent e, vol t ava e compr ava sua l i ber dade. Est e t i po de conqui st a subver t e

t ot al ment e o padr ão e nos l eva a pensar em t odas as possi bi l i dades de negoci ações par a mant er a aut onomi a r el at i va ou conqui st ar a desej ada l i ber dade.

Al guns anos depoi s, em 22 j unho de 1864, ocor r eu o di st r at o, ext i ngui ndo a soci edade ent r e os cônj uges José Bent o D’ Ant as Coel ho e Mar i a Er mi l i ana D’ Ant as, e o l i ber t o Rami r o José de Fi guei r edo22. Nest e moment o, a conqui st a é t ot al .

No i nvent ár i o de José Bent o Dant as Coel ho, i ni ci ado em 22 de j ul ho de 186723, na r el ação dos bens dados a i nvent ar i ar ,

não apar eceu nada l embr ando at i vi dades comer ci ai s, t ampouco i st o f oi menci onado al guma at i vi dade ou casa comer ci al . For am ar r ol ados os segui nt es escr avi zados:

Quadr o 11 – Rel ação de escr avos do i nvent ár i o de José Bent o Dant as Coel ho

NOME COR I DADE OFÍ CI O VALOR Ger vazi o Par do 23 anos Of i ci al de

sapat ei r o 700$000 I nnocenci o Par do 8 anos Não menci onado 400$000 Fr anci sco Par do 15 anos Não menci onado 500$000 Fi del i s Par do 5 meses Não menci onado 50$000 Paci f i ca Par da 5 meses Não menci onado 50$000 Fl or ênci a Par da 40 anos Não menci onado 400$000 Sel i doni a Par da 23 anos Não menci onado 500$000 Secundi na Par da 9 anos Não menci onado 300$000 Dul cel i na Par da 3 anos Não menci onado 150$000 TOTAL GERAL 3. 050$000

Font e: APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Test ament os, r ef . 02/ 662/ 1121/ 18.

O val or t ot al dos escr avi zados r epr esent ou al go em t or no de 45% do t ot al do mont e mor , f oi cal cul ado em 6. 803$200 r éi s,

22 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Li vr os de Not as de Jacobi na, n. 30 23 APEBA, Seção: Judi ci ár i a, Test ament os, r ef . 02/ 662/ 1121/ 18.

r evel ando um f or t e i nvest i ment o na mão- de- obr a. Por ém chamou mi nha at enção o f at o de que, dos nove escr avi zados do pl ant el , set e são cr i anças ou j ovens, apesar de cont ar ent r e os bens do casal duas pr opr i edades na ár ea r ur al .

Não é possí vel saber o f i nal desse caso, não f oi encont r ado mai s nenhum r egi st r o ou document o sobr e Rami r o par a aj udar a compl et ar est e quebr a- cabeça. O desapar eci ment o de Rami r o das f ont es pode i ndi car sua saí da de Jacobi na e ef et i va l i ber dade par a pr at i car suas habi l i dades de negoci ant e em out r o l ocal , mas i st o são apenas suposi ções.

No documento OS NEGROS EM JACOBINA (BAHIA) NO SÉCULO XIX (páginas 186-194)