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Existem dois limites aceitos sem restrições pela maioria dos professores e pesquisadores das ciências da natureza. A inevitável abordagem pedagógica interdisciplinar nas séries iniciais da educação básica e a compartimentalização nos níveis mais avançados. O debate que se desenrola há muito tempo refere-se à dificuldade de se definir em que ponto da linha do tempo educacional se dá ou tem início a transição. Mesmo quando hipóteses razoáveis são apresentadas em favor de uma definição, observa-se a dificuldade de implementação das propostas pedagógicas. É com esta perspectiva de uma fase experimental que devemos encarar a presente proposta.

De acordo com as modernas abordagens pedagógicas das ciências da natureza, independente do caráter disciplinar ou interdisciplinar, dois parâmetros essenciais devem ser predefinidos: conceitos-chave e contextos pedagógicos. Os primeiros devem ser tratados de modo mais fiel possível à sua definição científica, ao passo que os contextos pedagógicos devem ser selecionados entre aqueles relevantes para a vida cotidiana do aluno.

É quase unanimidade entre professores e pesquisadores educacionais a hipótese de que aprendizagem significativa inicia com a boa escolha de conceitos-chave, e tem seu caminho pavimentado através de contextos pedagógicos relevantes para a experiência cotidiana do público-alvo. Apenas como ilustração, transcrevo alguns comentários sobre o uso de energia como conceito-chave:

There is a general agreement among science teachers on the importance of choosing the teaching of energy as a focus of interest in the science curriculum, since this is a central idea which provides an important key to understanding of the way things happen in the physical, biological and technological world. (Driver; Millar, 1986)

Energy is a unifying concept in physics, and its teaching can no longer be viewed as a notion that looks different to learners in different science domains. (Le Maréchal; El Bilani, 2008)

Biologists use energy to describe the relationships between organisms in an ecosystem; chemists routinely interpret chemical reactions by tracking energy changes; geologists use the conservation of energy to build models that describe plate tectonics; astrophysicists rely on energy conservation when deducing the shape and structure of the universe. Regardless of its application, the law governing energy is strikingly simple – the total amount of energy in any closed system must be the same at any two points in time. (Nordine, 2007)

Pelas razões expostas, os conceitos de energia e matéria podem ser pedagogicamente abordados a partir de inúmeros contextos, entre os quais, meio ambiente e desenvolvimento sustentável parecem ser suficientemente relevantes. A proposta curricular apresentada a seguir tem uma estrutura que pode se ajustar a diferentes contextos. Como referência, vou centralizar a discussão a seguir na licenciatura em física. Geralmente, a grade curricular dessa licenciatura consiste basicamente em um bloco de disciplinas externas (educação, matemática e química) e um bloco de disciplinas da física: mecânica, termodinâmica, ótica, eletromagnetismo, física nuclear, teoria quântica, tópicos de física contemporânea, entre outras. Em cada uma dessas disciplinas, os conceitos de energia e matéria são abordados. E em cada uma delas, fenômenos naturais são utilizados em artefatos industrializados. Portanto, os conceitos de energia e matéria e as aplicações tecnológicas poderiam constituir um tripé para o desenvolvimento da grade curricular. É possível cobrir toda a área da física, assim como da biologia e da química, a partir desse tripé, embora não seja trivial a definição do melhor encadeamento conceitual.

O mapa conceitual abaixo ilustra uma possibilidade. É interessante observar que os conceitos podem ser facilmente agrupados nos blocos temáticos sugeridos nos PCN: vida e ambiente, terra e universo, tecnologia e sociedade.

O projeto pedagógico de uma licenciatura interdisciplinar em ciências da natureza pode ser desenhado para permitir que o licenciado atue em todos os níveis da educação básica. Ou seja, durante os três primeiros anos os alunos cursam componentes curriculares interdisciplinares, o que lhes dá o direito de atuar como professor de ciência no ensino fundamental, e os prepara para disciplinas avançadas de biologia, física e química, cursadas no quarto ano,

oportunidade em que o aluno escolhe uma especialização (biologia, física ou química), para adquirir o direito de lecionar sua especialidade no ensino médio. Portanto, podemos denominar os três primeiros anos de licenciatura em ciências, e o quarto ano de licenciatura em física, em biologia ou em química. Em cada semestre da licenciatura em ciências, será oferecida uma ou mais disciplinas de humanidades para estabelecer o contexto sociocultural do tema científico tratado no período. Cabe salientar que esse tipo de proposta curricular permite que o aluno obtenha quatro diplomas em seis anos.

Inspirado no projeto Science Teacher Training in an Information Society (STTIS), quanto à escolha do conceito de energia como centro difusor do currículo, o presente projeto pedagógico é absolutamente inédito quanto à proposta curricular. Embora similar em vários aspectos aos cursos oferecidos pela USP- São Carlos, Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP), e Universidade Federal do ABC (UFABC), a presente proposta difere dessas em aspectos fundamentais da concepção pedagógica da abordagem interdisciplinar. Difere também de exemplos inspiradores encontrados em instituições estrangeiras, conforme relato a seguir.

Não há consenso quanto ao melhor formato de uma abordagem pedagógica interdisciplinar das ciências da natureza. Nikitina e Mansilla (2003), da Harvard Graduate School of Education, distinguem três estratégias. A primeira, que elas denominam essentializing (não identifico um vocábulo equivalente em português) baseia-se na identificação de conceitos-chave pertencentes a duas ou mais disciplinas. A segunda estratégia é denominada contextualizando, e é bem conhecida pela comunidade brasileira. Finalmente, a terceira, talvez a mais utilizada, denomina-se centrada em problema. Trata-se da estratégia mais conhecida como resolução de problemas. Pessoalmente, considero limitada essa classificação. Contextualização e resolução de problemas não são estratégias distintas. Na verdade, é muito conveniente que estejam presentes em qualquer abordagem pedagógica, quer seja disciplinar, multidisciplinar ou interdisciplinar.

A primeira estratégia referida pelas autoras coincide com a nossa proposta, sendo matéria e energia os conceitos-chave primários, e artefatos o resultado da utilização desses conceitos pela humanidade, constituindo-se assim em conceito-chave secundário.